Pandemia

O direito-dever de se vacinar contra a Covid-19

Apesar da determinação legal, os protestos contra a vacinação ressurgem com novas vestes e velhos argumentos

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Em 16 de novembro de 1904, o governo federal decretou o estado de sítio em meio aos amplos protestos da “Revolta da Vacina”. Embora a vacinação contra a varíola fosse obrigatória em todo território nacional desde 1884, José Murilo de Carvalho observa que as ações mais rígidas para o enfrentamento da doença foram percebidas como um “despotismo sanitário” contra a liberdade individual[1].

A repercussão desses protestos chegou ao Supremo Tribunal Federal. A Corte, que afirmara a inconstitucionalidade da entrada compulsória de agente sanitário para desinfecção de domicílio contra a febre amarela sem autorização legal em 1905 (RHC 2.244), reviu esse posicionamento e passou a reconhecer a competência das autoridades administrativas para imposição de medidas de profilaxia.

As políticas, adotadas sob a liderança de Oswaldo Cruz, foram compreendidas como avanços em prol da saúde pública, valendo o registro do ministro Pedro Lessa, para quem o Estado devia “obrigar, pelo emprego da força material, ao cumprimento do preceito higiênico, eficaz e inócuo, àqueles que por ignorância, por preconceito ou por qualquer outro motivo inadmissível não satisfizessem esse dever moral”[2] .

Quase cem anos depois, uma grande pandemia volta a assustar o mundo. A Organização Mundial de Saúde estima que, até 26 de outubro de 2020, o número de contagiados pelo vírus COVID-19 era superior a 42 milhões, e o de pessoas mortas ultrapassava 1 milhão[3]. As vidas perdidas e os sofrimentos acumulados se somam aos impactos econômicos e sociais negativos da doença, que serão percebidos por muito tempo até que a ciência ofereça soluções para o controle de sua disseminação. As notícias mais promissoras indicam o sucesso de testes de vacinas, que poderão ser uma política de saúde pública eficaz para a redução de novos surtos.

A Lei n. 13.979/2020, aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo Presidente da República, tornou concreta a resposta a essa preocupação ao dispor que as autoridades políticas, no âmbito de suas competências, poderão determinar a vacinação compulsória contra o COVID-19 (art. 3º, III, alínea ‘d’). Apesar da determinação legal e da passagem de mais de cem anos na “Revolta da Vacina”, os protestos contra a vacinação ressurgem com novas vestes e velhos argumentos.

A baixa adesão a recentes campanhas de vacinação é um fenômeno de várias causas. Uma explicação recorrente para a essa resistência é encontrada na afirmação de que a liberdade individual impede que o Estado proíba que a pessoa seja obrigada a adotar uma conduta para proteção de sua saúde. A constatação de que um problema complexo não pode ser solucionado por uma resposta simples volta a ter lugar, quando se pretende contrapor a autonomia individual a medidas voltadas à proteção da saúde pública.

A primeira advertência a ser feita é a de que pessoas frequentemente decidem mal, movidas por preconceitos e intuições infundadas. Os últimos meses confirmaram que a propagação de informações erradas foram elemento decisivo no aumento de casos de COVID-19 e na administração de cuidados equivocados no tratamento de doentes. O tempo necessário para o desenvolvimento de pesquisas, com a indispensável revisão das conclusões obtidas, não deve desacreditar o conhecimento científico como parâmetro da decisão a ser tomada, quando em jogo escolhas irreversíveis sobre bens de elevada importância, como a vida. A confiança excessiva na capacidade humana de deliberação objetiva é muitas vezes uma escolha irracional.

Mais: A decisão de não se vacinar contra o COVID-19 não tem consequências limitadas à pessoa que assim escolhe. A disseminação do vírus está fortemente relacionada aos cuidados que devemos ter em proteger o restante da população quando usamos máscaras, mantemos o distanciamento social e observamos cuidados de higiene. A profilaxia é feita como prática de cooperação ativa a favor da proteção dos demais indivíduos. A frequente proclamação do direito de proteção à saúde não deve eliminar o dever inerente à nossa participação em comunidade política quanto ao zelo para com a saúde de todos os seus integrantes.

A vacinação contra doenças transmissíveis demonstra que o direito de proteção à saúde é, em verdade, um direito-dever. Nessa categoria, o titular do direito tem uma pretensão perante o Estado para que uma determinada prestação seja realizada, contudo simultaneamente é-lhe imposto dever voltado à realização do objeto do direito, dada a importância que a sua concretização tem para a coletividade e para a satisfação do interesse geral[4].

O reconhecimento da proteção à saúde como um direito-dever enfatiza que a sua proteção excede a esfera de transigência individual, pois os benefícios de sua realização se estendem à toda sociedade. Um exercício simples de empatia basta para concluir que o peso de nossas más escolhas não precisa ser suportado pelas demais pessoas.

A obrigatoriedade da vacina não implica a prisão de quem se opuser à medida. Há um amplo leque de instrumentos de incentivo à vacinação que se ajustam à preservação da liberdade e da autonomia individual. A sanção pelo descumprimento do dever pode se limitar à esfera administrativa e ao cerceamento de ampla locomoção de pessoas que não tenham sido imunizadas. Ações educativas e campanhas que mostrem os benefícios da vacinação podem ser respostas mais eficientes para que o Estado cumpra seu dever de promover a saúde pública e amplie a compreensão da urgência de adoção de medidas que façam frente à propagação do COVID-19.

“O que devemos uns aos outros?”, título de livro publicado por Thomas Scanlon, ex-professor da Universidade de Harvard, pode ser o mote da reflexão que devemos ter sobre a decisão de sermos vacinados contra a COVID-19. A reiteração do egoísmo e da ignorância somente trará mais dor e sofrimento desnecessário. Em saúde pública, a liberdade individual nunca está separada dos compromissos coletivos assumidos para coexistência mútua.


Episódio desta semana do ‘Sem Precedentes‘, podcast sobre STF e Constituição, analisa a judicialização precoce da vacinação contra a Covid-19 no STF. Ouça:

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[1] Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. 3. Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 98

[2] Emília Viotti da Costa. O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania. 2. ed. São Paulo: Editora UNESP, 2006, p. 45.

[3]Disponível em:  https://www.paho.org/pt/covid19. Consulta em 27 de outubro de 2020.

[4] Gregorio Peces-Barba Martínez. Curso de derechos fundamentales: teoría general. Madrid: Universidad Carlos III de Madrid y Boletín Oficial del Estado, 1999, p. 462.