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Vacinação de crianças: o que fazer quando pais não autorizam?

Constituição é base suficiente para referendar o direito à vacinação das crianças

Vacinação de crianças
Crédito: Unsplash

Enquanto a vacinação contra a Covid-19 já é realidade para 75% da população, seria plausível imaginar que esse índice reflete a confiabilidade da medida e a ampla adesão à ciência. Mas a aprovação pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) da vacinação de crianças de 5 a 12 anos abriu um novo debate sobre assunto.

Enquanto os grupos negacionistas aproveitam o ensejo para tentar reacender os questionamentos às vacinas, surgem conflitos familiares que colocam em situação de vulnerabilidade a saúde das crianças. Mas, antes mesmo da chegada da Covid-19, já havia na legislação e na jurisprudência brasileiras caminhos a serem adotados nas situações em que um dos pais ou os dois resistem em imunizar os filhos.

Antes de tudo devemos lembrar que a saúde é um direito fundamental, previsto no artigo 6º da Constituição para todos os cidadãos brasileiros – e as crianças, obviamente, estão incluídas nesse espectro. Mas o artigo 227 é ainda mais específico ao definir que: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, [entre outros direitos] a saúde”. E o § 1º completa: “O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança”.

Partindo unicamente do texto constitucional há, portanto, base suficiente para referendar o direito à vacinação das crianças e estabelecer que a responsabilidade é não somente dos pais, mas também do Estado e da sociedade.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) veio ainda reforçar a Constituição e especificou em seu artigo 14: “É obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias”. A lei também assegura o “acesso integral às linhas de cuidado voltadas à saúde da criança e do adolescente, por intermédio do Sistema Único de Saúde, observado o princípio da equidade no acesso a ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde” (art. 11).

Em situações práticas, isso significa que, ainda que o poder familiar mereça todo o respeito, há situações em que cabem questionamentos, e existem medidas que podem ser adotadas do ponto de vista prático.

O viés da liberdade religiosa tem sido apresentado por alguns genitores que rejeitam a vacinação, inclusive citando que este é um direito previsto no artigo 5º da Constituição Federal. Por outro lado, o direito à vida também é um direito constitucional, assim como o direito à saúde anteriormente citado. Portanto, em situações assim, há que se fazer a ponderação entre direitos e, sem dúvida, prevalece o direito à vida.

Tal confronto de princípios fundamentais tramitou em 2019, portanto antes da atual pandemia, no Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG). A Corte determinou que pais que se recusavam a vacinar os filhos sob argumentos religiosos colocassem em dia todas as vacinas do esquema de imunização pendentes. O julgado utilizou o entendimento de que cabe ao poder público prover políticas voltadas à saúde das crianças e adolescentes. Para os magistrados, o dever dos cuidados preventivos se estende aos pais e não pode ser negligenciado por motivos particulares.

Durante a vacinação de adolescentes, já houve menores que não puderam se vacinar, por serem impedidos pelos responsáveis legais. Nesses casos, os próprios jovens, que já apresentam plena capacidade de se comunicar e, em geral, têm acesso a meios de comunicação, podem recorrer ao Conselho Tutelar ou a algum familiar que possa ajudá-los a buscar auxílio jurídico. Em casos em que não houver acordo, até mesmo um curador pode ser designado pelo Ministério Público a representar o menor, para ajuizar uma ação em busca do direito à vacina.

Quando os pais de crianças menores se omitem em relação à imunização, o Conselho Tutelar ou o Ministério Público podem ser acionados por familiares, pessoas próximas ou mesmo representantes da escola.

No caso de pais separados ou mesmo pais que estão casados, mas divergem sobre o assunto, também é possível que um dos genitores recorra ao Judiciário para garantir o direito à saúde da criança. E nas situações em que há guarda em questão, os cuidados relacionados à vacinação podem inclusive ser levados em consideração pelos magistrados para definir como será o regime de cuidados da criança. Vale observar, contudo, que esta jamais deve ser uma moeda de troca nos litígios de família.

Como em todas as disputas familiares, especialmente as que envolvem crianças, técnicas de mediação e conciliação devem ser prioritárias, de modo a se chegar o mais perto possível de um consenso. Se, ainda assim, um dos posicionamentos for incisivo no sentido de deixar vulnerável a saúde da criança, cabe ao Poder Judiciário definir medidas mais incisivas. Independentemente do tema em pauta, prevalece o melhor interesse da criança, sempre.

Iniciativas do Estado também podem vir por meio da gestão pública, como já ocorreu no Brasil, com a exigência da vacinação completa para participar de programas assistenciais ou para fazer matrícula em escolas.

Em muitos aspectos a pandemia da Covid-19 tem exigido um aperfeiçoamento não somente da saúde, mas da gestão do país e das posturas da sociedade e das famílias. Quando há crianças envolvidas, isso é ainda mais urgente. Que tenhamos sabedoria para recorrer ao melhor da doutrina e da jurisprudência e estabelecer novos entendimentos quando necessário.