Hector Augusto Berti Corrêa

Marcela Elvira Matumoto Cosentino

No dia 17 de dezembro, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, na ADI 6.587/DF, que a vacinação contra a Covid-19 é compulsória, de modo que União, estados e municípios poderão obrigar seus cidadãos, mediante aprovação de lei, a tomarem o imunizante, vedado o emprego da força física.
Passado um mês, finalmente a vacina parece ter chegado. Neste breve texto, analisamos, sob à luz da economia comportamental do direito e do paternalismo libertário, os seguintes tópicos: (i) a interpretação do STF sobre o art. 3, III, d da Lei 13.979/2020, que prevê a realização da vacinação compulsória; (ii) quais elementos influenciam o indivíduo a decidir se vacinar ou não; e (iii) quais medidas indiretas poderão ser adotadas pelos governos, de acordo com o grau de intervenção na autonomia privada e liberdade individual.
<a href="https://conteudo.jota.info/saude" rel="attachment wp-att-291836"><img class="size-medium wp-image-291836 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-saude-cta.jpeg" alt="" width="300" height="300" /></a> O conceito de vacinação compulsória do STF à luz do paternalismo libertário
No começo de dezembro, o <a href="https://saude.ig.com.br/coronavirus/2020-12-12/cresce-numero-de-brasileiro-que-nao-pretendem-tomar-vacina-contra-covid-19.html" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Instituto Datafolha divulgou pesquisa</a> que mostrou que ao menos 22% da população brasileira não pretende se vacinar contra a Covid-19, fato que poderia resultar em impactos significativos tanto no número de vidas salvas como, também, na retomada da atividade econômica. Neste contexto, a ADI 6586/DF cuidou de analisar a constitucionalidade da vacinação compulsória, prevista no art. 3º, III, d da Lei nº 13.979/2020.
Na ocasião, o ministro-relator, Ricardo Lewandowski, não fez uma diferenciação entre os sentidos de “compulsoriedade” ou “obrigatoriedade”, de forma que ambos os termos deveriam ser traduzidos em medidas proporcionais e razoáveis.
Desta forma, o ministro afastou em definitivo a possibilidade da vacinação pelo emprego da força física, o que caracterizaria uma afronta à intangibilidade do corpo, à inviolabilidade do domicílio, à propriedade, à intimidade e, principalmente, à dignidade da vida humana.
Por outro lado, decidiu o tribunal que é lícita a adoção de medidas indiretas de constrangimento, como a restrição de direitos e a permanência em determinados lugares. Em outros termos, o STF buscou conciliar a colisão de diferentes valores jurídicos, quais sejam a liberdade individual e o direito coletivo à saúde pública, em favor da efetividade de uma futura campanha de imunização. Embora tenha sido uma posição eminentemente liberal, não o foi nos termos do paternalismo libertário.
Foi liberal em seu sentido welfarista porque preservou a autodeterminação sobre o próprio corpo e o pensamento, com vistas à proteção da comunidade e em desfavor de opiniões particularistas. Não foi libertária porque previu a possibilidade da adoção de mecanismos indiretos de constrangimento que podem, efetivamente, levar à mudança de opiniões pessoais<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
<blockquote class="jota-article__eye">Tal debate é importante pois, para uma certa corrente da economia comportamental, não seria legítimo que o Estado se utilizasse de determinados mecanismos regulatórios, principalmente quando tendem a alterar a vontade do indivíduo.</blockquote>
Isso posto, fato é que a decisão exarada pelo STF definiu os limites das estratégias que poderão ser adotadas pelos gestores públicos. Cabe-nos, neste sentido, contribuir com possíveis caminhos, libertários ou não, que podem ser seguidos com o fim de aumentar a adesão à vacinação.
Como o contexto colabora ou atrapalha a vacinação
Para a economia comportamental, notadamente para Kahneman, decisões individuais são resultado da interação entre dois sistemas de pensamento distintos e a arquitetura de escolha. O Sistema 1, que tem como característica a rapidez e automaticidade, utiliza-se de atalhos mentais, as heurísticas, para resolver questões diárias.
Por essa razão, muitas vezes o indivíduo acaba agindo de modo considerado irracional. Já o Sistema 2, mais demorado e reflexivo, privilegia um raciocínio mais dialógico e complexo. Completando essa estrutura, a <a href="https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2536504" target="_blank" rel="noopener noreferrer">arquitetura de escolha</a> se presta como o contexto do agir individual, podendo ser apresentado tanto como um ambiente físico quanto informacional. Não seria diferente com relação à vacinação.
Um bom exemplo que pode afetar a escolha racional é o da heurística do afeto. Nela, o viés emocional, ligado ao Sistema 1, tende a orientar e predominar o julgamento sobre riscos em detrimento dos dados científicos. <a href="https://www.researchgate.net/publication/50907309_The_Influence_of_Narrative_v_Statistical_Information_on_Perceiving_Vaccination_Risks" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Betsch, Ulshöfer e  Renkewitz</a>, em pesquisa sobre a influência e narrativas na percepção dos riscos de vacinas, concluíram que as narrativas de efeitos adversos influenciam negativamente na percepção dos supostos perigos das vacinas, diminuindo, frequentemente, a importância individual atribuída aos dados estatísticos.
Neste sentido, são dignas de nota outras heurísticas capazes de afetar a ponderação entre riscos e benefícios da vacinação: (i) a preferência pelo presente em comparação com possíveis riscos desconhecidos e futuros (aversão à ambiguidade); (ii) otimismo na valoração dos dados estatísticos (reais ou não); (iii) interpretação de informações baseadas em um ponto de vista inicial resistente (viés de confirmação), e (iv) a influência do tecido social na tomada de decisão (comportamento de manada).
Assim sendo, gestores públicos precisam ter em mente que, alterando a arquitetura de escolha, é possível utilizar-se das próprias heurísticas como estratégia de estímulo da vacinação. Por meio de diferentes instrumentos indiretos, inclusive jurídicos, pode-se aumentar o sucesso das campanhas de vacinação a um custo baixo.
Estratégias: dos nudges às medidas mais interventivas
Diante da recente decisão do STF, a União, os governos estaduais, do Distrito Federal e dos municípios poderão adotar diferentes estratégias para aumentar a adesão às campanhas de vacinação contra a Covid-19.
Tais medidas poderão ser mais ou menos restritivas às liberdades individuais, variando desde o uso de sanções e restrições de direitos, bem como de estímulos indiretos. Um bom exemplo deste último, e que preservaria ao máximo a liberdade individual, é o uso de <a href="https://dash.harvard.edu/bitstream/handle/1/16205305/shortguide9_22.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">nudges</a>, medidas economicamente neutras que alteram a arquitetura de escolha, tornando a vida dos indivíduos mais simples, segura e fácil.
Neste sentido, nudges, ou simplesmente empurrões, serviriam como uma forma de mostrar às pessoas as vantagens das vacinas, estimulando-as a tomá-las, corrigindo os possíveis desvios cognitivos e utilizando-se deles, quando for o caso, para catalisar o sucesso da campanha. São exemplos de nudges que podem auxiliar no êxito da vacinação os governos:
a) Simplificação da burocracia e promoção da conveniência: governos devem evitar ao máximo entraves burocráticos que impeçam a imunização, afastando requisitos documentais em demasia. Além disso, devem atuar aumentando a comodidade e diminuindo os custos individuais, oferecendo o imunizante em locais diversos. Nesse sentido, o Plano de Vacinação do Município de São Paulo pretende oferecer centros de vacinação em lugares de grande circulação de pessoas, como metrôs, shoppings, terminais de ônibus, trens e por sistema de drive-thru.
b) Normas sociais e coerência histórica: governos devem enfatizar que a maioria das pessoas no Brasil, e no mundo, estão dispostas a tomar a vacina, a fim de utilizar o comportamento de manada em favor da campanha. Neste sentido, como feito pelo governo da Indonésia, campanhas com figuras públicas e digital influencers recomendando a vacina poderão catalisar o convencimento. Neste sentido, mencionar campanhas de vacinação anteriores, seu sucesso e o nível de adesão a elas pelos indivíduos pode servir como forma de convencimento, ativando o Sistema 2, já que com isso se provoca uma comparação, do indivíduo, com seu comportamento pretérito.
c) Transparência, informações e estratégia de comunicação institucional: governos devem divulgar amplamente os resultados efetivos da campanha de imunização, dentro e fora do país, a fim de oferecer um feedback positivo em relação aos resultados promissores. Além disso, devem elaborar estratégias de comunicação que considerem os vieses e heurísticas, de forma a não criar uma avaliação de risco deturpada em relação à vacinação. Campanhas em redes sociais, valendo-se de relatos individuais sobre o benefício da vacinação, podem ativar a heurística do afeto e influenciar decisões pró-vacinação por meio do Sistema 1.
d) Lembretes: assim como tem feito a União Europeia, enviar mensagens pessoais, via SMS ou e-mail, pode ser uma forma de salientar a importância da campanha, não deixando-a cair no esquecimento.
Tratam-se, pois, de medidas que não podem nem mesmo ser vistas como propriamente jurídicas, mas que têm um potencial impacto na efetividade da vacinação a um baixo custo.
Porém, e ainda se valendo da economia comportamental, mas agora associada ao direito, é possível aumentar ainda mais a eficácia das campanhas, sobretudo quando medidas libertárias não se fizerem suficientes.
A obrigatoriedade da vacinação (ou compulsoriedade, nos termos da ADI 6.587/DF) está presente na Lei nº 6.259/1975, o Programa Nacional de Imunizações, pela previsão de medidas coercitivas indiretas.
Nela, está prevista a exigência da apresentação do atestado ou carteira de vacinação para (i) o recebimento do salário família (art. 67 da Lei nº 8.213/1991); a (ii) matrícula em instituições de ensino; e (iii) para o recebimento de benefícios sociais (nos termos da Portaria nº 597/2004 do Ministério da Saúde).
Além das medidas já existentes, outras poderiam condicionar o exercício de direitos desde que comprovada imunização: (i) emissão de documentos diversos, como passaporte e carteira de motorista; (ii) inscrição em concursos públicos; (iii) permanência em determinados locais públicos; e (iv), em um cenário pessimista e desigual, a proibição, entre os próprios estados brasileiros, do trânsito de pessoas que não apresentarem um passaporte de imunidade. Tanto melhor será o quanto não precisarmos dessas medidas.
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O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Neste sentido: “A diferença reside no âmbito dos lesados a proteger: no welfarismo, terceiros e a comunidade e sociedade; no paternalismo, o decisor (cidadão individual). Até numa lógica de ética prática e consequentalista, a primeira é mais facilmente justificável e enquadra-se nas funções e tarefas do Estado. A segunda, pelo contrário, anima o debate em torno da ingerência do Estado e da limitação (abusiva) da autonomia privada, num possível atentado ao direito à autodeterminação e desenvolvimento pessoal, dimensões fundamentais da dignidade da pessoa humana”. SARAIVA, Rute. Entre o paternalismo e o Estado libertário: a ética e constitucionalidade de uma nova regulação comportamental, p. 21-22.

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JOTA

Como a economia comportamental pode aumentar a efetividade das campanhas de vacinação?

Vacinação, compulsoriedade e mecanismos de convencimento

Como a economia comportamental pode aumentar a efetividade das campanhas de vacinação?