José Augusto Fontoura Costa
Professor titular de Comércio Internacional da Faculdade de Direito da USP

No final de 2020, União Europeia e China concluíram as negociações do Comprehensive Agreement on Investment (CAI), acordo de investimentos que envolve dois dos três maiores players do comércio e investimento internacionais. Antes do acordo, a proteção e promoção dos investimentos estrangeiros era tratada entre as partes por meio dos 25 tratados bilaterais de investimentos que os Estados-membros da União Europeia assinaram com a China. O CAI somente foi possível após o Tratado de Lisboa de 2009, que permitiu que a Comissão Europeia tivesse competência para negociar a temática dos investimentos estrangeiros diretos em nível europeu.
Para compreender esse acordo, porém, é importante olhar em perspectiva e observar as diferenças com os já bem conhecidos tratados de promoção e proteção recíproca de investimentos. Esses acordos têm as regras de proteção dos investimentos e investidores estrangeiros como sua coluna vertebral e a arbitragem entre investidores e Estados como sua dentição. Seu foco é contra ações dos Estados soberanos que possam prejudicar os investidores estrangeiros já instalados nesse território, tais como expropriações arbitrárias ou intervenção na remessa de lucros das empresas aos países de origem. No CAI, é marcante a ênfase na garantia de acesso dos investidores aos mercados e, uma vez instalado e operante, na responsabilidade do investimento em relação a todas as pessoas afetadas por ele. Caso essas obrigações e deveres não sejam cumpridos e uma controvérsia internacional se instaure, o CAI prevê a arbitragem entre Estados.
O acordo confere maior abertura para a entrada de investidores nos territórios das partes, estabelecendo o denominado tratamento nacional, que significa que os investidores estrangeiros não poderão ser tratados de forma menos favorável que aquela concedida aos investidores nacionais, e eliminando alguns requisitos de entrada. Por exemplo, as partes não poderão impor determinadas condições para a entrada para os investidores, como requisitos de conteúdo local, de transferência de tecnologia, de pesquisa e desenvolvimento e, até mesmo, requisitos de nacionalidade para os membros das diretorias das empresas (Senior Management and Board of Directors and Performance requirements).
Pela primeira vez, a China se comprometeu com uma lista negativa que definirá setores nos quais o investimento estrangeiro é proibido, a menos que o investidor atenda a certas condições. Assim, tudo o que não está na lista, não poderá ser submetido a tais requisitos. Dentre os setores abarcados estão o setor de manufatura, automotivo e, também, o setor de serviços. Neste caso, a China estará se vinculando a liberalizar setores que vão além dos compromissos já realizados no âmbito do GATS, Acordo sobre o Comércio de Serviços da Organização Mundial do Comércio (OMC). Dessa forma, empresas europeias de serviços financeiros, ambientais, de informática, de construção, de transporte aéreo auxiliar e de transporte marítimo internacional terão melhor acesso à China, além de empresas dos setores de saúde (health care).
Tanto o lado europeu quanto chinês se comprometeram a manter o espaço regulatório (policy space) de alguns setores considerados sensíveis, como energia e infraestrutura, agricultura, pesca, mineração ou serviços públicos, etc.
Além disso, o acordo também proíbe restrições quantitativas no que diz respeito à entrada e estadia temporária de funcionários da UE ou da China. Esses poderão trabalhar até três anos nas subsidiárias da outra Parte, sem restrições como testes de mercado de trabalho ou cotas. Representantes de investidores também terão permissão para visitar livremente o país antes de realizar um investimento. Assim, o trabalho não circula livremente, mas segue a concretização do aporte de capital, dando maior conforto ao investidor.
Ganha destaque também o compromisso de respeito à sustentabilidade em sua forma mais ampla, algo que já vem sendo incluído nos acordos preferenciais de comércio negociados pelo bloco europeu há algum tempo e é um dos pontos em que a China sofre maior pressão internacional, especialmente em função de sua flexibilidade para questões trabalhistas e para que assuma compromissos ambientais e climáticos mais ambiciosos. Lembrando que, em 2020, a China comprometeu-se a alcançar a neutralidade de carbono antes de 2060.
Esperam-se benefícios do CAI para ambos os lados. Para os europeus a China não é mais apenas uma alternativa para obter mão de obra barata, mas como potencial fonte de capitais e tecnologia, além da atração exercida por um mercado interno pulsante. Investir na China com a cobertura de um acordo internacional de investimentos se tornou mais fácil e seguro, reduzindo riscos de atuação unilateral do governo de Pequim, assim como afastando exigências, como a de parceria com empresas chinesas. Investir na Europa também é um bom negócio, sobretudo para obter maior acesso ao mercado e se beneficiar da integração de cadeias produtivas.
A posição brasileira atual, com considerável abertura unilateralmente oferecida a investimentos estrangeiros, não parece exigir um instrumento similar ao CAI. Não obstante, a necessidade de compreender os acordos internacionais de investimentos como um instrumento capaz de abranger com efetividade os aspectos prévios à entrada dos investimentos e resguardar os espaços regulatórios nacionais é posta em evidência por um acordo dessa dimensão. Enquadramentos jurídicos bem estruturados ajudam a estabilizar expectativas, geram maior previsibilidade e segurança jurídica e facilitam os fluxos econômicos internacionais. Isso certamente interessa a qualquer país, inclusive os da América Latina e da África, receptores importantes de investimentos chineses.
O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça: