Bernardo Strobel Guimarães

Estefânia Maria de Queiroz Barboza

Lucas Sipioni Furtado de Medeiros

Foi com profundo pesar que recebemos a notícia de falecimento de Frederick Schauer, renomeado professor da Faculdade de Direito da Universidade da Virgínia, nos Estados Unidos.
Brilhante filósofo e autor de diversos livros que transitam entre a Teoria e Filosofia do Direito, o Direito Constitucional e o Raciocínio Jurídico, tais como Playing by the rules (1991), Thinking like a lawyer (2009) e The force of law (2015), Schauer deixa um legado incomparável. Escrever este breve texto explorando alguns pontos de sua teoria foi a forma que encontramos de homenageá-lo. Com ele, esperamos, quem sabe, instigar novos leitores a conhecerem sua obra, que certamente merece ser mais estudada no Brasil.
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Um primeiro ponto de destaque é que Schauer era um positivista. Mas um positivista normativo; um positivista que rejeitava uma abordagem puramente descritiva do Direito. Não sendo aqui o espaço adequado para explorarmos os intermináveis debates sobre a viabilidade ou não de uma teoria positivista se assentar sobre bases prescritivas, Schauer entendia que isso não só era possível como necessário.
Segundo ele, o positivismo é, acima de tudo, uma teoria que avança considerações normativas a respeito de como uma dada sociedade “[…] deve entender o direito e como essa sociedade deve criar um conceito de direito que incorpora esse entendimento”.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
O positivismo de Schauer é normativo porque ele não se limita a descrever como o Direito é e funciona à luz de um ordenamento jurídico particular. Embora concorde com os positivistas descritivos quanto à centralidade exercida pelas regras para a determinação e a aplicação do Direito,<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> Schauer deles se desliga ao se preocupar não só com o lugar e a função das regras, mas também com o modo pelo qual elas são aplicadas.
É dessa articulação entre uma concepção positivista de Direito com uma tese normativa sobre o raciocínio jurídico que surge o positivismo presumido, teoria segundo a qual as regras jurídicas possuem uma força institucional presumida, e não absoluta; isto é, ao mesmo tempo em que constrangem/limitam a atuação do intérprete na sua aplicação, permitem que ele as supere caso isso seja exigido pelas circunstâncias que envolvem o caso concreto.
O positivismo presumido reforça o papel central e coercitivo das regras no sistema jurídico sem retirar a possibilidade de o aplicador deixar de aplicá-las caso a exigência dessa não aplicação supere a força institucional da própria regra.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>
Há uma presunção de que as regras devem ser aplicadas “[…] a menos que razões particularmente exigentes possam ser fornecidas para não aplicá-las”.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> Aos juízes é possível deixar de aplicar uma regra não quando acreditam que ela é ruim, “[...] mas quando, e somente quando, as razões para a não aplicação são percebidas pelo tomador de decisão como particularmente fortes.”<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>
Isso quer dizer que as regras devem ser aplicadas pelos juízes independentemente do que eles pensam ser o mais justo ou mais correto. Novamente: existe uma presunção não absoluta em favor do resultado gerado pela aplicação literal da regra que somente pode ser derrotada quando o juiz identificar a existência de razões especialmente fortes que demandam a superação desse resultado.<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>
Mas então, considerando a importância e centralidade das regras, não seria melhor defender um método de interpretação mais próximo do textualista clássico?
Schauer acredita que não, já que jamais podemos perder de vista a possibilidade de produção de um Direito moralmente iníquo. Nesse contexto, o positivismo presumido possui uma grande vantagem em relação ao formalismo puro: o universo de considerações normativas para além da regra não está totalmente fechado para o juiz, afinal, é impossível que ele identifique no caso sob julgamento razões particularmente exigentes que autorizam a não aplicação da regra caso ele não leve em consideração no seu raciocínio considerações extrajurídicas.<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>
O positivismo presumido, ao mesmo tempo que não atribui ao juiz uma tarefa de aplicação mecânica da lei, tem o mérito de buscar controlar eventuais abusos interpretativos. Há, ademais, a prescrição de uma postura psicológica que deve ser assumida pelo juiz: ele não deve buscar ativamente razões que autorizam a não aplicação da regra.
Muito pelo contrário. A ideia é que o juiz dê apenas uma olhada de relance, realize uma checagem preliminar e precária sobre as considerações subjacentes à regra, não sendo admitido o seu engajamento ativo na procura por razões extrajurídicas/factuais que possam levar à superação da regra.<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a> Não é o papel do juiz procurar incessantemente razões que possam justificar a não aplicação da regra, em uma tentativa de fazer prevalecer a sua vontade a qualquer custo. A sua postura inicial deve ser sempre a de subserviência ao Legislativo, cujas decisões estão amparadas pela soberania popular.
Um sistema decisório guiado pelo positivismo presumido guarda deferência ao princípio da segurança jurídica ao restringir a atividade interpretativa/decisória dos juízes ao mesmo termo que admite que resultados ultrajantes gerados pela aplicação literal das regras sejam evitados.
É uma teoria que: (i) não desconsidera o caráter argumentativo e interpretativo da prática jurídica; (ii) não perde de vista que o juiz muitas vezes não se contenta em aplicar a literalidade da lei, recorrendo a outras espécies de argumentos/métodos de interpretação mesmo quando é o caso de aplicação literal; (iii) leva a sério a argumentação jurídica, o princípio democrático e o dever de fundamentação das decisões ao somente admitir a não aplicação de um texto normativo promulgado pelos representantes do povo caso o juiz demonstre fundamentadamente que a sua aplicação levará a resultados extremamente injustos ou indesejáveis.
Vale notar, ainda, que a determinação da força institucional das regras à luz de um caso concreto não é incumbência exclusiva dos juízes, mas definida também, e principalmente, pelos legisladores no momento de sua criação.<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a> As regras possuem uma força institucional que é independente do resultado que sua aplicação gerará, não sendo o papel do Judiciário decidir, caso a caso, se ela se justifica ou não.
Com efeito, o resultado indicado pela regra é, por si só, uma razão para ação particularmente forte – daí a noção que as regras possuem uma força institucional presumida. Logo, as razões particularmente exigentes que possibilitam, em um dado caso concreto, a superação da regra devem ser superiores não só às razões que o magistrado possui para aplicar a regra, mas também ao valor da regra em si, enquanto produto de um processo legislativo democrático e protetora de determinados valores e/ou princípios tidos como importantes pelo legisladores.
Nas palavras de Schauer, o positivismo presumido é um método de decisão que prescreve que os juízes devem assumir o resultado indicado pela regra como uma razão para ação que é independente das circunstâncias factuais do caso concreto, e isso mesmo quando […] esse resultado diverge do resultado que seria indicado pela aplicação direta das justificações que subjazem a regra, e mesmo quando esse resultado diverge do resultado que seria alcançado, dentro de uma determinada teoria substantiva da decisão, pela aplicação direta de todas as considerações relevantes reconhecidas por essa teoria substantiva da decisão.<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>
Em resumo, o positivismo presumido é um modelo decisório pautado na ideia de que as regras jurídicas possuem uma força que jamais pode ser desconsiderada pelo julgador, salvo em situações excepcionais, entendidas como situações em que as circunstâncias que envolvem o caso concreto indicam ao juiz a existência de razões particularmente exigentes que justificam a não aplicação da regra.
O foco está na expressão particularmente exigentes, e isso porque as regras devem ser aplicadas pelos juízes independentemente do que eles pensam ser o mais justo ou mais correto; somente em situações em que a aplicação leve a resultados extremamente injustos ou absurdos é que estaria aberta a possibilidade de sua não aplicação.
Para fechar: esperamos que esse breve texto seja lido como um convite à leitura das obras do próprio Frederick Schauer, que oferecem insights valiosos para o nosso tempo. Ele escreveu sobre temas macros de teoria e filosofia do direito, liberdade de expressão, precedentes judiciais, direito probatório, entre muitos outros temas que ainda hoje ocupam o centro de muitos debates não só no Brasil, mas no mundo. Compreender a natureza do fenômeno jurídico e respeitar o seu modo de ser são essenciais, especialmente em momentos de crise. E, neste ponto, a ausência de Schauer será sentida profundamente.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> “[…] should understand law and how that society should create the concept of law that embodies this understanding.” Em SCHAUER, Frederick. Normative legal positivismm. In.: SPAAK, Torben; MINDUS, Patricia. The Cambridge companion to legal positivism. Cambridge: Cambridge University Press, 2021, p. 72-73.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Inclusive, para ele, são as regras que diferenciam o Direito do mero exercício do poder ou da prática desmedida do jogo político SCHAUER, Frederick. Playing by the rules: a philosopical examination of rule-based decision-making in law and in life. Oxford: Clarendon Press, 1991, p. 167.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> SCHAUER, Frederick. Playing by the rules. p. 196-197.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> “[…] unless particularly exigent reasons can be supplied for no applying it.” Em SCHAUER, Frederick. Playing by the rules. p. 203.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> “[…], but instead when, and only when, the reasons for overriding are perceived by the decision-maker to be particularly strong.” Em SCHAUER, Frederick. Playing by the rules. p. 204.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> SCHAUER, Frederick. Formalism. The Yale Law Journal. Vol. 97, n. 04, 1988. Disponível em: &lt;https://philpapers.org/rec/SCHF-48&gt;. Acesso em 02 set. 2024, p. 547.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> SCHAUER, Frederick. Rules and the rule of law. Harvard Journal of Law and Public Policy. p. 677.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> SCHAUER, Frederick. Rules and the rule of law. Harvard Journal of Law and Public Policy. p. 677.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> SCHAUER, Frederick. Playing by the rules. p. 100.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> “[…] that result diverge from the result that would have been indicated by direct application of the justifications lying behind the rule, and even when that result diverges from the result that would have been reached, within a given substantive theory of decision, by direct applications of all relevant considerations recognized within that substantive theory of decision.” Em SCHAUER, Frederick. Playing by the rules. p. 100.

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JOTA

Renomado professor escreveu sobre temas macros de teoria, liberdade de expressão e precedentes judiciais

Uma singela homenagem a Frederick Schauer

Renomado professor de Direito escreveu sobre temas macros de teoria, liberdade de expressão, precedentes judiciais, entre outros