Fabiana de Menezes Soares

Thiago Álvares Feital

A falta de acesso a itens básicos que garantam a dignidade menstrual é um problema que afeta radicalmente os direitos humanos de mulheres, meninas e homens transgênero. A questão é agravada pelo fato da menstruação ainda ser um tema tabu, o que tende a dificultar o seu debate na esfera pública.
Mas, em que medida, não cuidar das mulheres gera impactos também econômicos?
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
Será que essa variável pode causar problemas quanto ao impacto de políticas públicas, notadamente, saúde e educação?
Será que que o investimento em saúde básica possui efeitos que ultrapassam a camada higiênica?
Em <a href="https://www.nexojornal.com.br/colunistas/2018/Por-que-temos-t%C3%A3o-poucas-mulheres-na-pol%C3%ADtica-e-por-que-isso-importa">março de 2018</a>, o Prof. Cláudio Ferraz<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> apontou para custos sociais da misoginia. Nada mais adequado ao presente artigo a verificação de estudos desenvolvidos que assinalam danos ao sistema democrático pelo afastamento das mulheres das escolas, mercado de trabalho e vida pública. Dentre os estudos mencionados, chama a atenção, primeiramente, a análise de <a href="https://economics.mit.edu/files/792">Raghabendra Chattopadhyay e Esther Duflo</a>. Após cartografem duas centenas de vilas indianas com o escopo de verificarem se e como a presença feminina alterava a vida dessas comunidades, o resultado apontou a ocorrência de maiores investimentos que beneficiaram mulheres.
Obviamente, você pode estar se perguntando se beneficiar mulheres provoca algum tipo de bem social a justificar um tipo de legislação que melhore suas condições de vida. Pois bem, um outro estudo citado e protagonizado por <a href="https://www.aeaweb.org/articles?id=10.1257/pol.6.2.164">Sonia Bhalotra e Irma Clots-Figueras</a> se debruçou sobre o caso de assembleias estaduais que elegeram mais mulheres e evidenciou a queda na mortalidade infantil e o aumento de crianças que conseguiram concluir o ensino fundamental.
Por fim, é curioso que um assunto “íntimo e individual” possa alcançar interesses inconfessáveis contrários aos ambientes de integridade e conformidade. <a href="http://sites.bu.edu/fisman/files/2015/11/fairersex.pdf">David Dollar, Raymond Fisman, e Roberta Gatti</a> ao analisarem o índice de corrupção criado pelo Banco Mundial com associação dos dados de maior representatividade feminina e sua maior proporção no parlamento perceberam que o índice diminui. Em outra vertente, <a href="https://www.idp.edu.br/blog/laipp/mulheres-sao-menos-corruptas-que-homens/">Fernanda Brollo e Ugo Troiano</a> associaram dados das auditorias da Controladoria Geral da União – CGU (sim, dados são essenciais para avaliações de impacto) e eleições municipais com as votações apertadas entre mulheres e homens, os municípios e evidenciaram que a menor incidência de corrupção ocorreu nas cidades nas quais as mulheres ganharam.
Segundo o <a href="https://www.unicef.org/brazil/media/14456/file/dignidade-menstrual_relatorio-unicef-unfpa_maio2021.pdf">Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF)</a>, no Brasil, mais da metade das alunas do 9º ano dos estados de Roraima, Mato Grosso, Acre, Espírito Santo, Pará, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e Distrito Federal não contam com pelo menos uma das seguintes condições mínimas: acesso a água, saneamento e a possibilidade de realizar uma higiene adequada. Denominadas de condições WASH — acrônimo, em inglês, formado pelas palavras água (water), saneamento (sanitation) e higiene (hygiene) — estes são justamente os elementos básicos que garantem uma gestão digna da menstruação.
Obviamente, estas condições básicas devem estar acompanhadas da existência de absorventes menstruais, dispositivos essenciais e insubstituíveis para pessoas que menstruam. Em relação ao acesso a absorventes, também são preocupantes os dados brasileiros. Recorrendo à Pesquisa de Orçamentos Familiares (IBGE), <a href="https://www.unicef.org/brazil/media/14456/file/dignidade-menstrual_relatorio-unicef-unfpa_maio2021.pdf">UNFPA e UNICEF concluíram que</a>
a média de gasto com absorventes por unidade de consumo, juntando todas as declarações de compra individuais da respectiva família, é de R$ 12,97. Quando levamos em consideração a quantidade de meninas e mulheres em idade fértil na família, a média do gasto com absorvente por mulher se reduz a menos que a metade, com média de R$ 5,92. Nessas condições, da soma declarada nas despesas individuais dividida pelo total de mulheres em idade fértil nessa mesma UC [unidade de consumo], o valor médio para uma menina negra é de R$ 5,45, 18% a menos que para uma menina branca.
Atrelando-se a outras formas de desigualdade, como a desigualdade de renda e a desigualdade racial, a ausência destes elementos básicos relacionados à menstruação — denominada de pobreza menstrual — é um problema público que prejudica a fruição plena de direitos humanos substantivos como o direito à educação, à saúde e ao trabalho. Na <a href="https://reliefweb.int/sites/reliefweb.int/files/resources/226792e.pdf">definição</a> adotada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) a administração da higiene menstrual é adequada quando
mulheres e meninas adolescentes estão usando material de higiene menstrual limpo para absorver ou coletar sangue, que possa ser trocado com privacidade, e tão frequentemente quanto necessário, por toda a duração do ciclo menstrual, usando sabão e água para lavar o corpo como requerido, e tendo acesso a estrutura para descartar os materiais de higiene menstrual usados.
Como qualquer outro direito social, a concretização do direito à dignidade menstrual depende da participação ativa dos Estados na elaboração de políticas públicas adequadas. Também como qualquer direito social, depende da alocação de recursos financeiros. Dentre as possíveis formas de financiamento, há alguma controvérsia sobre a utilização de mecanismos tributários — como a <a href="https://direitosp.fgv.br/sites/direitosp.fgv.br/files/arquivos/reforma_e_genero_-_final_1.pdf">isenção</a> de tributos sobre o consumo — já que a literatura contemporânea inclina-se majoritariamente <a href="https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3723750">contra a utilização de isenções</a> em tributos do tipo IVA (caso do ICMS que, no Brasil, é cobrado sobre absorventes). Contudo, se há controvérsia na discussão tributária, parece não haver nenhuma polêmica acerca das soluções financeiras para sanar a questão. Dentre elas, naturalmente, está a distribuição de absorventes às pessoas mais vulneráveis pelo Estado.
Neste sentido, o Projeto de Lei (PL) n.º 4.968/2019, de autoria de 35 deputadas e deputados, que cria o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual, é uma iniciativa mais do que meritória. Na forma do seu <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2064840&amp;filename=SBT+1+CEURG+%3D%3E+PL+4968/2019">substitutivo</a>, o PL prevê a inclusão de absorventes nas cestas básicas entregues no âmbito do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e a sua distribuição gratuita. Os produtos seriam adquiridos pelo Poder Público em processo licitatório, no qual se daria preferência de aquisição, em igualdade de condições, como critério de desempate, a produtos feitos com materiais sustentáveis. Os absorventes seriam distribuídos a estudantes de baixa renda matriculadas em escolas da rede pública de ensino; mulheres em situação de rua ou em situação de vulnerabilidade social extrema; mulheres apreendidas e presidiárias, recolhidas em unidades do sistema penal; e  mulheres internadas em unidades para cumprimento de medida socioeducativa.
O projeto corrige uma omissão importante em matéria de direitos humanos. Além de acarretar na violação de diversos direitos sociais substantivos, como a pobreza menstrual gera um ônus excessivo para as pessoas que menstruam — ônus ao qual os homens cisgênero, pobres ou não, não estão sujeitos — a omissão nesta matéria pode ser caracterizada também como uma violação do dever de não-discriminar, obrigação que em matéria de direitos humanos é, segundo os Princípios de Limburgo, <a href="https://www.refworld.org/docid/48abd5790.html">imediata</a> e <a href="https://digitallibrary.un.org/record/1323479">incondicional</a>.
Por esta razão, seria de se esperar que o projeto fosse integralmente sancionado pelo Presidente da República, mas para surpresa e indignação dos que acompanharam a sua tramitação, ao sancionar o projeto — que foi transformado na <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/Lei/L14214.htm">Lei n.º 14.214/2021</a>, em 6 de outubro — Jair Bolsonaro vetou todos os dispositivos que garantiam a oferta gratuita de absorventes higiênicos femininos. Sendo este o objetivo principal do Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual, na prática, os vetos tornam o programa letra morta.
Em sua <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/Msg/VEP/VEP-503.htm">mensagem de veto</a>, argumenta-se que o projeto não indicou fonte de custeio das despesas decorrentes do Programa, o que violaria os artigos 16, 17, 24 e 26 da Lei de Responsabilidade Fiscal. A justificativa é flagrantemente falsa, uma vez que o substitutivo aprovado mencionava em seu artigo 6º a fonte de custeio<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> das despesas com a execução do Programa. Além disso, o <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2296272">relatório</a> aprovado na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher analisou expressamente o impacto financeiro da proposta, de forma muito mais analítica do que a que se costuma verificar em projetos de concessão ou prorrogação de incentivos fiscais genéricos<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Não bastasse isso, o <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2064836&amp;filename=PPP+1+CEURG+%3D%3E+PL+4968/2019">parecer</a> proferido em Plenário também concluiu pela adequação financeira e orçamentária da matéria.
Diante destes elementos, torna-se questionável a justificativa técnica dos vetos em questão. Tudo indica se tratar de mais uma decisão de cunho ideológico por parte do governo federal. A resposta da sociedade civil, justa e necessária, veio na forma de um <a href="https://drive.google.com/file/d/1EiaOoT3CaF75vmjCOz2FGxo_WPQ5ijwU/view?usp=sharing">ofício ao Congresso Nacional</a><a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. Assinado, até o momento, por quase 80 entidades — dentre elas o Observatório para a Qualidade da Lei, o qual os autores integram — o ofício pede a derrubada dos vetos.
Esperemos que o Congresso Nacional corrija essa flagrante injustiça, cuja manutenção é sintoma da baixa qualidade dos gastos públicos, mancha a biografia de quem diz defender a qualidade dos gastos em saúde, educação e a melhoria dos indicadores das liberdades civis no Brasil e, em última instância, viola o espírito da cidadania assegurado pelo art. 5º da Constituição da República.
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<blockquote class="jota-article__citation"><a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Claudio Ferraz é professor da University of British Columbia e da PUC-Rio e diretor científico do JPAL (Poverty Action Lab) para a América Latina</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation"><a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> “Art. 6º. As despesas com a execução das ações previstas nesta Lei correrão à conta das dotações orçamentárias disponibilizadas pela União ao Sistema Único de Saúde para a Atenção Primária à Saúde, observados os limites de movimentação, empenho e pagamento da programação orçamentária e financeira anual.” Comisssão  especial  destinada  a  proferir  parecer ao projeto de lei nº 4.968/2019 e seus apensados. Substitutivo aos Projetos de Lei nº 4.968/2019, nº 5.474/2019,  nº 6.340/2019, nº 428/2020, nºº 1.547/2021, nº 1.664/2021, nº 1.807/2021, nºº 2.092/2021, nº 391/2021, nº 61/2021, nº 672/2021, nº 2.653/2021, nº 2.780/2021, nº 2.652/2021 e nº 1999/2021. Disponível em: <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2064840&amp;filename=SBT+1+CEURG+%3D%3E+PL+4968/2019">https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2064840&amp;filename=SBT+1+CEURG+%3D%3E+PL+4968/2019</a> Acesso em: 08 out. 2021.</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation"><a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> “Identificamos aproximadamente 26,1 milhões de mulheres na faixa etária entre 12 e 51 anos como potenciais beneficiárias do programa, inscritas   no   Cadastro   Único,   baseado   em   dados   de   dezembro   de   2020 extraídos do Tabulador do Cadastro Único do Ministério da Cidadania. […] Se  adotarmos que  um ciclo menstrual pode  demandar em médio o uso de 20 absorventes e como custos unitários para absorventes R$0,30, R$0,55 e R$0,80, encontramos as seguintes estimativas de impacto orçamentário anual, para o quantitativo de mulheres encontrado na Tabela 1, que não reflete o público-alvo do programa, mais amplo, mas nos dá uma ideia da magnitude do programa.” Comissão de defesa dos direitos da mulher. Parecer da Relatora Deputada Professora Rosa Neide. Disponível em: <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2296272">https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2296272</a> Acesso em: 08 out. 2021.</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation"><a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Iniciativa capitaneada por Tathiane Piscitelli, que coordena, ao lado de Núbia Castilhos, o grupo de pesquisa Tributação e Gênero da FGV São Paulo.</blockquote>

A dignidade menstrual e o PL 4.968/2019

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Uma questão de veto ou de vida?

A dignidade menstrual e o PL 4.968/2019