Juliana da Cunha Mota

No começo deste ano, a Autoridade Europeia de Proteção de Dados (EDPB) parece ter declarado guerra a modelos de negócio baseados em anúncios personalizados em sede de ação iniciada pela NOYB, organização fundada por Max Schrems, conhecido ativista de direito à privacidade. Em suma, a Autoridade entendeu que, não obstante o modelo de negócios da Meta ser baseado na coleta de dados pessoais de seus usuários para oferecimento de anúncios direcionados e personalizados, a empresa não pode usar a base legal de execução de contrato para justificar esse tratamento de dados.
Para maior contexto, antes da entrada em vigor do Regulamento Geral de Proteção de Dados Europeu (GDPR), a Meta coletava o consentimento de seus usuários para oferecer-lhes conteúdo personalizado, inclusive anúncios, com base no tratamento de seus dados pessoais. Entretanto, o GDPR prevê um regime mais rigoroso para a coleta desse consentimento – ele deve ser livre e informado, pode ser revogado a qualquer momento e cabe ao controlador provar que houve a coleta do consentimento. Portanto, provavelmente ante os novos obstáculos para o uso desta base legal, a Meta alterou sua política de privacidade. Passou a justificar esse tratamento de dados com base na execução de seu contrato de prestação de serviços. 
Logo após a entrada em vigor do GDPR, a organização NYOB entrou com <a href="https://noyb.eu/sites/default/files/2020-05/complaint-facebook.pdf">ações</a> perante a Autoridade Irlandesa de Proteção de Dados (DPC), alegando que a Meta estaria utilizando a base legal de execução de contrato indevidamente. Em outras palavras, o oferecimento de conteúdo personalizado não faria parte do serviço principal coberto pelos termos de uso da plataforma; logo, a Meta não precisaria utilizar esses dados para oferecer seu serviço. Caso desejasse processar esses dados para direcionar anúncios, deveria coletar o consentimento dos usuários. Em resumo, a NYOB alegava que a base legal ‘execução de contrato’ estava sendo utilizada como um subterfúgio para evitar que a Meta coletasse o consentimento de seus usuários.
Diante dessas alegações, a DPC preparou uma minuta de decisão, pela qual, dentre outros, entendeu que não havia ilegalidade no uso da base legal ‘execução de contrato’. Segundo a DPC, os serviços oferecidos pela Meta baseavam-se na premissa de personalização, inclusive de anúncios e publicidade direcionada. Dessa forma, não havia impedimentos legais para utilização desta base legal e nem seria obrigatório que a Meta coletasse consentimento dos usuários para essa finalidade. 
Avaliando criticamente o argumento apresentado pela DPC, parece-nos que essa autoridade se conforma com o fato de que a Meta está inserida numa lógica de mercado de capitalismo de vigilância. Portanto, era inevitável que coletasse e tratasse dados para oferecer publicidade direcionada – inclusive sem o consentimento de seus usuários, afinal, seu modelo de negócio estaria baseado nesse tratamento de dados. 
A teoria econômica do capitalismo de vigilância tem como principal expoente a professora de Harvard <a href="https://watermark.silverchair.com/9780262353946_caa.pdf?token=AQECAHi208BE49Ooan9kkhW_Ercy7Dm3ZL_9Cf3qfKAc485ysgAAAq0wggKpBgkqhkiG9w0BBwagggKaMIIClgIBADCCAo8GCSqGSIb3DQEHATAeBglghkgBZQMEAS4wEQQMQW8R7RqCaqzR3oRhAgEQgIICYIPUg74mhGcN1bFA9mWJLh58Ey3aPNj739nqOdF5ABWXPsavkAn9Wh3rROrnyuTaeU0nisEALWBvuGH4GoRo824M1Q9z-FolaCXfKI9hqCYJ5K5xhHGxxoDNq3U47pJu1VwfQeYCXcmMPLJaPs_sY2YJMrvojr0C7eKR8pVZXsNIRZ-I9HPyj33e4UDQ6U3LCt-offqmJvGj-wG0GDIt68nxWDJVJJIg5eL0FepGNCStDmQSWZyyrNkmjBUEt3-GbMRh0JC7mGi-HfZMU-tBXFqEafo6rGb8YJuovDrFNSFlZVY-wL2N5TzofURHWocEXU2oWuPTcpiLLfsMe3bNz36Z_xGOFV5hzH1BTECCw42UBn58p9gQGlLEjME0BZcJxs60R0I7_Ds7tWBGo_T4FXD6cGwwdYU-wfp45nJ69ma5gae9h5cEluL60_z__NHGA_wfnUDUWrB3ytDHqIOuHDmTCdiKLvkE_7i3ZDgLn-G-DUJiqYtU_w5gSXGtE70CWa9jt_-WmYNAgoRbGLXJuxEghtJ1KoDD2LCW-EGmMHljdhOcDkNOT5DY0w6HH__5XDAga-K1JzWyz1eNYcci0pjKg4LNmUJXnTDnHGZIPWnTrlhIOyqCTNaa8gbypYQswbXHx5edZ8Bf8PcGpqygfp2VhGl2XqK46i38w-CpEiuocGeONMWrhbX4_UTpjIJkYb8fW6In31fNZxKlmbZXfC9Cek_kl0t-fphKRV-DCuKixpOvQnZcqMWmiIJY0ZtkIAgJpwJnqPvHplAOxELXvtsk0PeVEOj60dAnmI8QZn8H">Shoshana Zuboff</a>, que explica que essa seria uma nova era do capitalismo, iniciada em meados dos anos 2000, quando o Google passou a utilizar metadados associados às pesquisas realizadas por seus usuários para personalizar anúncios.  Em outras palavras, ela explica que essa nova fase do capitalismo se baseia na tomada forçada de dados pessoais de indivíduos por capitalistas que, por sua vez, passam a controlar aspectos da sua personalidade e experiências no mundo. Capitalistas de vigilância começam a tentar prever necessidades de seus usuários para, então, lhes direcionar conteúdos. A pergunta que fica é: como evitar um abuso desses agentes econômicos? Deveriam as autoridades de proteção de dados apenas conformar-se com a inevitabilidade do uso de dados pessoais a qualquer custo? Para responder a essas perguntas, devemos continuar analisando o curso da ação apresentada pela NYOB contra a Meta.
A decisão da DPC, apesar de possuir um caráter favorável à Meta era apenas preliminar, ela ainda deveria ser submetida à avaliação de outras autoridades de proteção de dados (Concerned Supervisory Authorities – CSAs). Durante o processo de avaliação, não houve consenso entre as CSAs sobre a possibilidade de uso da base legal de execução de contrato para oferecimento de publicidade direcionada. 
A questão foi submetida, então, à apreciação da EDPB que, por sua vez, <a href="https://edpb.europa.eu/news/news/2022/edpb-adopts-art-65-dispute-resolution-binding-decisions-regarding-facebook-instagram_en">entendeu</a> pela impossibilidade de justificar o oferecimento de publicidade direcionada com base em execução contratual. Em outras palavras, a EDPB entendeu que o Facebook estava violando o GDPR desde a sua entrada em vigor, por tratar dados pessoais sem base legal adequada. Dessa forma, a DPC <a href="https://www.dataprotection.ie/en/news-media/data-protection-commission-announces-conclusion-two-inquiries-meta-ireland">acatou o entendimento do EDPB</a> e determinou a aplicação de multas à Meta.
Essa decisão pode representar uma declaração de guerra, pela Europa, ao mercado de publicidade direcionada — o qual sustenta uma infinidade de modelos de negócios de plataformas online. Isso porque, na impossibilidade de justificarem o tratamento de dados de usuários com base na execução contratual, caberá aos controladores obter o consentimento de seus usuários para esse tratamento de dados. Entretanto, conforme anteriormente mencionado, o processo para obtenção deste consentimento pode apresentar diversos obstáculos. 
Por exemplo, é possível garantir que haverá completa transparência na política de privacidade da Meta sobre como esses dados serão utilizados? Como garantir essa transparência se os dados forem utilizados para segregar os usuários em grupo para realização de inferências sobre sua personalidade? E se houver conflito com os segredos de negócio da empresa? E, talvez mais importante. como garantir que os dados serão adequadamente excluídos e não mais serão usados se o usuário revogar o consentimento?
A DPC divulgou que a Meta terá três meses para adequar suas operações. Caberá agora entender se a Meta adequará suas operações globalmente e passará a coletar o consentimento para oferecer publicidade direcionada a todos os seus usuários, independentemente de estarem sujeitos à legislação europeia ou não. Caso contrário, poder-se-á indagar se haverá reações por parte de outras autoridades de proteção de dados (inclusive, talvez, a <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/anpd">ANPD</a>), caso a Meta passe a oferecer um padrão mais elevado de proteção aos seus usuários europeus.
Finalmente, e talvez mais importante, devemos aguardar os desdobramentos dessa decisão para agentes econômicos inseridos numa lógica de capitalismo de vigilância: seria essa decisão uma declaração de guerra a este modelo de capitalismo, ou seria apenas uma tentativa de traçar um limite a este? Resta observar como se portarão as outras autoridades ao analisarem questões similares.

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JOTA

Aplicação de multas à Meta por falhas na proteção de dados aos seus usuários europeus esboça risco real da guerra

Uma declaração de guerra pela Europa contra a publicidade direcionada?

Aplicação de multas à Meta por falhas na proteção de dados aos seus usuários europeus e publicidade direcionada esboça risco real da guerra.