Pandemia

Um por todos, todos por um: o bolsonarismo pode unir o STF?

A nós parece que o contexto de profunda crise institucional pode impulsionar a presença mais acentuada do continente

Ministro Dias Toffoli, presidente do STF, ao lado do presidente da República, Jair Bolsonaro. Foto: Carolina Antunes/PR

Desde que a pandemia de COVID-19 desembarcou no Brasil não passa um dia sem que os principais veículos de comunicação noticiem a atuação do Supremo Tribunal Federal. Faz-se conta de mais de 70 ações propostas contra atos do governo Bolsonaro.

E embora as mais espetaculares tenham sido proferidas individualmente – as liminares de Luís Roberto Barroso e Marco Aurélio Mello, no caso dos conflitos federativos; e de Celso de Melo e Alexandre de Moraes, nos recentes inquéritos que investigam atos criminosos imputados ao presidente e assessores do governo – mais de 90% das decisões da Corte são colegiadas.

Em um tribunal marcado pelo protagonismo individual de seus ministros, particularmente via o exercício monocrático de suas competências constitucionais, esta é uma novidade.

Não se trata de negar a dinâmica decisória que há algum tempo se estabeleceu no STF – e que se popularizou entre os cientistas sociais pela preferência do termo ministocracia (Arguelhes e Molhano, 2018) à supremocracia (Vieira, 2008) na representação do protagonismo político da Corte. Quem poderia negar a extensão dos efeitos da decisão liminar de Gilmar Mendes que suspendeu a nomeação de Lula como ministro da Casa Civil? Ou a congênere determinação de Alexandre de Moraes que recentemente derrubou a nomeação do diretor-geral da Polícia Federal?

Tampouco se ignora o impacto do conjunto de alterações institucionais que ampliou o escopo do plenário virtual tendo em vista a urgência decisória que se estabeleceu em face das crises sanitária e de saúde pública, provocadas pela pandemia de COVID-19 – e a consequente redução dos níveis de deliberação em prol da eficiência. O presidente do STF, Dias Toffoli, tem se empenhado, inclusive, em tornar públicas as iniciativas deste cariz, oferecendo dados (nem sempre incontestáveis, mas ilustrativos) da capacidade do tribunal, colegiadamente, de dar respostas céleres às demandas que chegam diariamente.

Antes, o que se pretende é compreender as articulações entre as dimensões individual e colegiada de atuação do Supremo Tribunal Federal, aproveitando a oportunidade que o quadro recente de protagonismo na gestão e solução da crise política que se aprofundou com a pandemia de COVID-19 proporciona.

Aproveitamo-nos, aqui, portanto, da possibilidade de retirar de um cenário de crise política o que de melhor ele nos oferece para análise: a revelação da “estrutura profunda do tribunal” – aquilo que se vê para além da superfície (Arguelhes, 2019). Estamos cientes, por outro lado, dos limites de representatividade do padrão de atuação do STF e até de possíveis vieses que o foco excessivo na conjuntura pode gerar.

Daí que convém esclarecer que é de se esperar que os ministros tenham suas próprias agendas – derivadas da variação de seu perfil – e que, eventualmente, elas se choquem entre si. E isso vem acontecendo, sobejamente, quando se considera o exercício da jurisdição criminal pelo STF – a parcela mais politizada de sua atuação. Em tempos de “normalidade institucional” a consequência se expressa em antagonismos – e em alguns casos em desentendimentos públicos – entre os ministros, os quais contribuem para o desgaste da imagem do Supremo.

A conturbada conjuntura política que atravessamos, de resto agravada por uma crise epidemiológica mundial que também produzirá desastrosas consequências de ordem econômica, traz consigo enormes desafios às instituições brasileiras em geral, e ao STF, em particular.

A estratégia de unilateralismo presidencial, atravessada por arroubos marcadamente autoritários, impulsionou uma reação institucional articulada, de contenção, que envolveu o STF e lideranças políticas em todos os níveis de governo. E isto se deu a despeito da adoção de um perfil de baixa intensidade de atuação do presidente da Corte, ministro Dias Toffoli, bastante preocupado em conciliar e amortecer potenciais conflitos com o Executivo, muitas vezes a despeito da afirmação da independência do judiciário.

Mas o protagonismo que o STF veio a assumir, nesta conjuntura, não chega a espantar. Seja como decorrência de um desenho constitucional que confere importantes competências à corte, seja porque a judicialização de temas próprios da arena política por atores minoritários encontra-se em alguma medida incorporada à dinâmica política brasileira.

Todavia, um dado novo parece surgir: embora as onze ilhas – alegoria com a qual se passou a designar os ministros do Supremo para caracterizar o padrão de atuação do tribunal – permaneçam em seu isolamento parece haver uma crescente preocupação com o reforço da dimensão colegiada da corte.

E não apenas nos autos: afagos públicos antes impensáveis entre os ministros Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso são um desses sinais. São também bons indicadores as votações unânimes em temas politicamente sensíveis – como as que envolveram o conflito federativo em face das medidas de isolamento social e restrição de mobilidade em razão da pandemia, ou a tentativa de tornar mais restritiva a Lei de Acesso à Informação. Por fim, dados recentes apontam que 90% das decisões que envolvem atos do governo foram colegiadas.

Servindo-nos da metáfora que oferece o conceito de ministrocracia argumentamos que se o STF, em situação de normalidade institucional, atua sobejamente, de fato, como onze Ilhas; sob intensa pressão, as ilhas podem transmudar-se em continente. Continente e ilhas atuariam de forma tacitamente concertada, num arranjo único que, ao longo do tempo, reforçou o papel institucional da corte na arena política, ainda que, paradoxalmente, tenha enfraquecido sua dimensão colegiada. O resultado, todavia, não deixaria de ser o que se denominaria como um “jogo de ganha-ganha”, na medida em que a agência de alguns de seus ministros acabou por ampliar os espaços de atuação de toda a instituição.

Exemplo paradigmático foi o julgamento da AC 4070 – DF, de relatoria do então ministro Teori Zavascki, no qual o STF se atribuiu uma controversa competência constitucional para afastar parlamentar do exercício da Presidência da Câmara dos Deputados.

O momento era oportuno para afirmar a competência e consolidar uma mudança institucional endógena em benefício da própria corte porque o então deputado federal Eduardo Cunha, parlamentar em questão, era uma unanimidade nacional negativa. E a ação do relator – que decidiu monocraticamente, embora tenha consultado previamente alguns de seus pares (Recondo; Weber, 2019) – foi fundamental para configurar o contexto do julgamento: ao invés de decidir se poderia afastar Eduardo Cunha, o colegiado deliberou sobre sua possível recondução, algo absolutamente indesejado pela opinião pública, por grande parcela do meio político e também pela própria corte.

A conjuntura atual flerta com aquele episódio, em pelo menos um aspecto importante: sobressai a dimensão da articulação entre a atuação do continente e a das ilhas. É dizer: as votações unânimes que têm se sucedido no STF não parecem expressar apenas um consenso juridicamente fundado em face das variadas medidas do governo Bolsonaro, mas também um sinal de que as ilhas tendem a se transmudar em continente porque o que está em jogo, em última instância, é a manutenção da capacidade institucional e legitimidade da corte diante da profunda crise política que ameaça a própria democracia no Brasil.

Não seria demais supor que, caso não tivesse perdido o objeto – pelo imediato recuo de Bolsonaro na nomeação de Ramagem ao comando da PF – o mandado de segurança que abrigou a decisão liminar do ministro Alexandre de Moraes, teria sido concedido por maioria acachapante no plenário. E isso a despeito das verdadeiras convicções de cada um dos ministros sobre o acerto do colega, de que suas próprias trajetórias já deram testemunho.

O ponto é que o contexto atual, de debacle democrático, a demandar, em primeira ordem, a manutenção da posição institucional do STF na gestão e solução da crise política que enfrentamos, pode induzir uma redução das disputas públicas entre ministros, mesmo quando, eventualmente, decisões monocráticas forem proferidas em temas controversos.

E, neste sentido, não nos parece que a atitude isolada do ministro Marco Aurélio Mello, em reprimenda pública ao seu colega, ministro Alexandre de Moraes, no caso que envolveu a suspensão da nomeação do diretor da Polícia Federal, possa fazer frente à tendência explicitada. Afinal, o ministro Marco Aurélio Mello parece ser a personificação da “exceção que confirma a regra” quando se trata de análises voltadas à compreensão do padrão decisório dos ministros e do tribunal. A sua trajetória no STF é marcada pela anticolegialidade, o que já lhe rendeu a alcunha de “mister divergência” entre os especialistas.

Particularmente, foi de sua lavra a decisão monocrática que, nos idos de 2016, determinou o afastamento de Renan Calheiros da presidência do Senado (ADPF 4502), gerando uma enorme tensão na relação entre o Supremo e o Congresso, quando o país já atravessava momento político delicado. É dizer: nada mais inócuo, do ponto de vista da construção de indicadores sobre o padrão de relação entre as ilhas e continente, do que considerar a declaração pública do ministro Marco Aurélio Mello na análise.

Por fim, também não deveria surpreender um eventual aumento no volume de decisões unânimes (ou com ampla margem) em temas sensíveis, inclusive confirmando monocráticas, algo que seria bem mais difícil não fosse a atual conjuntura. Embora muitos possam apontar, com certa razão, para a permanência da ação isolada das ilhas, a nós parece que o contexto de profunda crise institucional pode impulsionar a presença mais acentuada do continente.