Leonardo e Silva de Almendra Freitas

Como já ressalvamos, se há uma ocasião capaz de fazer o STF se sentir tentado a revisitar os critérios desenvolvidos para balizar a modulação da eficácia temporal de julgamentos tributários, ainda que à custa do profícuo “romance em cadeia” até aqui escrito, é, sem dúvida, a dos embargos de declaração opostos pela PFN no RE 574.706/PR, leading case do Tema 69/RG (“inclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins”), na linha da célebre máxima atribuída a Oliver W. Holmes Jr., um dos mais notáveis juízes que já tiveram assento na Suprema Corte norte-americana, segundo a qual “hard cases make bad law”<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
E razões semelhantes aconselham que não se dê de barato para a outra investida da PFN, qual seja, a “mutilação” da tese através da interpretação severamente restritiva formalizada pela já notória Solução de Consulta COSIT 13/2018, por mais claro que seja que, no fim do dia, trata-se de buscar, sob o color de singela integração, a prevalência da lógica vencida no julgamento, sendo sintomática a correspondência entre a argumentação fazendária e, p. ex., um dos principais fundamentos do voto do ministro Gilmar Mendes (letra “D”, págs. 133-137 do acórdão).
<a href="http://conteudo.jota.info/jota-pro-tributos"><img class="aligncenter wp-image-259015 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/07/cta-jota-pro-tributos.jpeg" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
E quanto maior vai se tornando o grau de sofisticação dos argumentos e contra-argumentos desenvolvidos a propósito dessa dimensão da tese mais aconselhável se faz ouvir, novamente, Oliver W. Holmes Jr., para quem “às vezes é melhor insistir no óbvio do que enveredar pelo obscuro”.
E, nesse caso, o “ponto seguro” parece estar, justamente, na própria origem da tese em vias de ser confirmada ou retificada, cumprindo, então, resgatá-la, retrocedendo ao estado da questão antes do julgamento do RE 240.785/MG, antecessor do RE 574.706/PR.
Em resumo, o que se tinha era o seguinte: tão pacífica quanto a inclusão do ICM(S) na base de cálculo das contribuições sociais incidentes sobre o faturamento (Súmulas 258/TFR, 68 e 94/STJ) era a exclusão do IPI para os mesmos fins (Súmula 161/TFR), discrímen que restou oficializado pela Lei Complementar 70/1991 (art. 2º., par. ún., “a”) e pela Lei 9.718/1998 (art. 3º., §2º., “I”, antes da redação trazida pela Lei 12.973/2014).
À época, o lugar comum sugeria que, enquanto o IPI era cobrado “por fora”, o ICM(S) o era “por dentro”, nuance técnico-contábil que, se até podia explicar, certamente não se prestaria a justificar tamanho distanciamento para fins jurídico-tributários.
Foi essa a “disfuncionalidade” que o RE 240.785/MG pretendeu corrigir, através da neutralização de uma das raras diferenças estruturais entre IPI e ICMS: o paralelo com o tratamento dado ao IPI foi particularmente explorado pelo voto condutor e por vários apartes do ministro Marco Aurélio.
O RE 574.706/PR não apenas reafirmou o peso dessa variável como o intensificou: praticamente todos os votos vencedores deram grande significância à exclusão do IPI, destacando-se a expressa invocação pelos ministros Celso de Mello e Rosa Weber de parecer da lavra do professor Humberto Ávila que feriu cirurgicamente esse ponto<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Pois bem. Ao que nos consta, nunca se chegou sequer a sugerir que, posto ser o IPI também informado pela não-cumulatividade, somente o saldo líquido efetivamente “recolhido” à Fazenda Nacional deveria ser desconsiderado no cálculo das contribuições incidentes sobre o faturamento. A própria LC 70/1991 refere-se textualmente ao IPI “destacado”. Então, o que seria impensável para o IPI surge, sem mais, como “óbvio” para o ICMS? Quid juris?
Klaus Tipke utiliza a expressão “conglomerado de impostos” como antítese do que considera desejável em termos de racionalidade sistêmica da ordem jurídica tributária<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. O cenário pré-RREE 240.785/MG e RE 574.706/PR fornecia uma eloquente evidência de que o ponto do mestre alemão não estava confinado ao ambiente acadêmico, tendo aqueles leading cases como que atendido aos anseios do célebre professor.
Mas o esforço voltado ao realinhamento entre IPI e ICMS ficará na metade do caminho se apenas parte do imposto estadual (“recolhido”) for expurgada na apuração das contribuições PIS/Cofins, pois, independentemente do desfecho dos embargos de declaração da PFN, continuará a ser excluída a totalidade do imposto federal (“destacado”).
Em alentado parecer juntado ao caso-paradigma (e-DOC 188), a ex-ministra Eliana Calmon esboça uma “solução de compromisso” segundo a qual, para a determinação do indébito passível de devolução, deveria ser deduzido o ICMS embutido no preço das aquisições que geraram créditos na apuração das contribuições sujeitas ao regime não-cumulativo.
Mas, apesar da inegável razoabilidade do critério, ele parece só ser sustentável de lege ferenda, estando a legislação atualmente em vigor muito longe de ser inequívoca nesse sentido, sendo sintomático o entendimento da Receita Federal a respeito do próprio IPI: como evidencia com clareza a lógica da Solução de Consulta COSIT 579/2017, a exclusão da parcela do imposto na apuração das contribuições devidas pelo vendedor não obsta, necessariamente, a sua consideração na determinação do crédito a que faz jus o adquirente.
O Poder Judiciário já terá dado sua (grande) contribuição com correção de rumos pretendida pelos RREE 240.785/MG e RE 574.706/PR. Que o Poder Legislativo cumpra seu papel corrigindo, se assim entender, essa outra “disfuncionalidade”...
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> FREITAS, Leonardo e Silva de Almendra. “O Estado da Arte da Modulação Temporal Tributária no Âmbito do Supremo Tribunal Federal: Critérios e Prognósticos”. In: Revista Fórum de Direito Tributário. a. 16, n. 94, Belo Horizonte: Editora Fórum, 2018, pp. 171-189.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> “3.5 Excluir da base de cálculo das contribuições aquilo que é cobrado a título de IPI, mas não aquilo que advém do ICMS, apenas porque a técnica de cobrança desses tributos é diferente, é inverter a ordem das coisas, interpretando a Constituição com base na legislação, e não a legislação com base na Constituição. É simplesmente interpretar o ordenamento jurídico de cabeça para baixo”. (Pág. 194 do acórdão)
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> TIPKE, Klaus. “Sobre a Unidade da Ordem Jurídica Tributária”. Trad.: Luís Eduardo Schoueri. In: Direito Tributário: Estudos em Homenagem a Brandão Machado. Coord.: SCHOUERI, Luís Eduardo; e ZILVETI, Fernando Aurelio. São Paulo: Dialética, 1998, pp. 60-70.

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JOTA

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