Flávio Luiz Yarshell

Viviane Siqueira Rodrigues

A mais recente novidade no tema da arbitragem coletiva é o <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2367421">PL 2925/2023</a>, que se propõe a alterar a Lei 6.385, de 7 de dezembro de 1976, e a Lei 6.404, de 15 de dezembro de 1976, para dispor sobre a transparência em processos arbitrais e o sistema de tutela privada de direitos de investidores do mercado de valores mobiliários. O objetivo do projeto é aperfeiçoar a proteção dos investidores de companhias abertas no Brasil e, para tanto, além de propor novas regras sobre as ações de responsabilização civil do administrador e do controlador contra danos causados à companhia (arts. 159 e 258 da LSA<a href="https://mail.google.com/mail/u/0/#m_5109706432695966560__ftn1">[1]</a>), o PL também aborda a arbitragem societária coletiva.
<h3><a href="https://www.jota.info/produtos/poder ?utm_source=cta-site&amp;utm_medium=site&amp;utm_campaign=campanha_poder_q2&amp;utm_id=cta_texto_poder_q2_2023&amp;utm_term=cta_texto_poder&amp;utm_term=cta_texto_poder_meio_materias">Tenha acesso ao JOTA PRO Poder, uma plataforma de monitoramento político e regulatório  com informações de bastidores que oferece mais transparência e previsibilidade para empresas. Conheça!</a></h3>
Nesse cenário, uma primeira coisa é certa: desde que respeitado o devido processo legislativo, o Congresso é o fórum mais adequado para se debater e eventualmente concluir pela arbitrabilidade da tutela coletiva dos direitos dos acionistas minoritários. Isso não por causa da natureza dos direitos dos minoritários – que tem induvidoso caráter patrimonial disponível e, portanto, são objetivamente arbitráveis do ponto de vista individual – mas sim por causa da indisponibilidade e da indispensável previsibilidade da tutela coletiva desses direitos.
Relativamente à legitimidade de agir na ação coletiva (judicial ou arbitral), o escopo do projeto é – adicionalmente aos legitimados extraordinários já previstos em lei – atribui-la também aos próprios legitimados ordinários, isto é, aos investidores, desde que respeitem algumas condições: (i) sejam da mesma espécie ou classe de valores mobiliários (o que atende ao requisito de homogeneidade dos direitos individuais); (ii) representem percentual igual ou superior a 2,5% dos valores mobiliários da mesma espécie ou classe ou possuam valor igual ou superior a R$50.000.000,00 (cinquenta milhões de reais), atualizados anualmente pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/IPCA">IPCA</a>), critérios estes que poderão ser modificados pela CMV com a fixação de escala em função do valor do capital social ou o uso de outros parâmetros que vierem a ser estabelecidos em regulamentação; (iii) sejam titulares de valores mobiliários no momento imediatamente anterior à ocorrência dos danos alegados, ainda que tenham alienado posteriormente sua participação.
Assim, a proposta quer tornar dispensável a exigência hoje prevista na legislação da existência de associação de investidores pré-constituída com antecedência de 1 ano. Os próprios investidores, desde que reunidos em número suficiente conforme indicado, teriam representatividade numérica para defender os interesses de todos da mesma espécie ou classe, o que significa verdadeira legitimação extraordinária conferida a membros do grupo, hipótese hoje ainda inexistente no sistema de tutela coletiva (com exceção da figura do autor popular).
Na hipótese de prevalecer essa outorga de legitimidade extraordinária para membros do grupo, importante será o PL explicitamente adotar mecanismos para mitigar o risco de colusão entre o membro do grupo e o causador do dano. Desde logo, sem embargo da representatividade presumida pela lei, será lícito que Judiciário e Tribunal arbitral possam controlar a representatividade adequada em concreto. Além disso, a <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/CVM">CVM</a> deverá atuar no processo e poderá assumir o polo ativo da demanda em caso de desistência. Eventualmente, poder-se-ia cogitar de ausência de coisa julgada da sentença de improcedência por insuficiência de provas. Contudo, na premissa de que efetivamente exista representatividade adequada e que já há mecanismos de reforço de atuação em prol dos minoritários, talvez fosse possível evoluir, em prol da responsabilidade das partes e da segurança jurídica, para fazer valer a regra de eficácia preclusiva da coisa julgada em toda sua extensão.
Com relação à coisa julgada em caso de procedência do pedido, o PL prevê que a condenação poderá ser “genérica”, mas como tal descreve uma decisão que contenha parâmetros claros e precisos para o cálculo das indenizações individuais; e que fará coisa julgada erga omnes, exceto quanto aos investidores que tiverem optado pela propositura de ações individuais. A autoridade da coisa julgada para todos, nos termos em que proposta, iria além do que o atual sistema de tutela coletiva prevê porque, hoje, mesmo os titulares de direitos individuais que tenham optado por sua própria demanda individual podem se beneficiar da sentença coletiva (portanto, de procedência), desde que requeiram a suspensão do processo individual em 30 dias a contar da ciência do ajuizamento da ação coletiva, consoante o art. 104 do CDC (preceito que, no entanto, não é considerado cogente porque, na prática, tem fraquíssima aplicação).
A proposta poderia ser boa, na medida em que, firmada a premissa da representatividade adequada do(s) autor(es), ter-se-ia avançado no sistema brasileiro para se adotar regra de opt out na tutela coletiva. Contudo, assim infelizmente não ocorreu porque o Projeto insiste na possibilidade da convivência entre demanda coletiva e individuais; chega ao ponto de permitir o ingresso de investidores como litisconsortes; e, ao tratar da autoridade da coisa julgada, limita-se a estabelecer a vinculação nos casos de procedência, mas não de improcedência. Como no sistema brasileiro, a regra é a vinculação in utilibus, tudo acabaria por permanecer da mesma forma.
Sobre a escolha do método de solução de disputas dos minoritários, o PL abarca a possibilidade de cláusula compromissória arbitral, prevendo essencialmente que o processo será público e seguirá as demais regras no que for compatível com a arbitragem, com possibilidade de a CVM dispor sobre os limites da publicidade e as hipóteses de confidencialidade admitidas. Ainda, prevê, como proposta de alteração da Lei 6.404/76, que compete às instituições arbitrais dar publicidade aos seus precedentes, e que a CVM poderá dispor sobre regras procedimentais adicionais a serem exigidas das instituições arbitrais, em particular explicitando o procedimento para a reunião dos processos arbitrais nas hipóteses de conexão e continência. Exigir das instituições arbitrais previsões claras sobre reunião de processos sem dúvida é medida salutar porque é sabido que, na ausência de aplicação subsidiária do Código de Processo Civil, a falta de clareza de regulamentos pode propiciar decisões conflitantes, o que não é desejável na esfera transindividual em que a uniformidade é altamente esperada.
A bem da segurança jurídica, o PL em questão também poderia ser uma ótima oportunidade para o Congresso definir de uma vez por todas a eficácia da transação celebrada pelo legitimado extraordinário, tema que não é pacífico na jurisprudência<a href="https://mail.google.com/mail/u/0/#m_5109706432695966560__ftn2">[2]</a>. O PL ressalva que a transação na ação coletiva não prejudicará os investidores que não sejam parte da demanda, seguindo a lógica vigente no CDC, de que a atuação do legitimado extraordinário – inclusive em sede de composição – terá eficácia somente em benefício dos demais interessados.
Essa lógica, todavia, não promove a maior eficiência do processo coletivo, como a experiência mostra hoje, com mais de 30 anos de vigência do CDC, período no qual a capacidade do processo coletivo de reduzir a litigância individual foi extremamente reduzida. Enquanto a sentença proferida no processo coletivo e o acordo celebrado pelo legitimado extraordinário não puderem alcançar obrigatoriamente todos os legitimados ordinários, a decisão mais racional que estes poderão tomar será aguardar o desfecho do processo coletivo e promover a sua própria ação individual, por falta de incentivos suficientes para o contrário.
Ao não tocar no tema da liquidação, espera-se que não fiquem dúvidas de que a liquidação individual da sentença arbitral coletiva – se e quando necessária – deve ser tratada em arbitragem, para que não haja uma ruptura de cognição. Pode-se e deve-se considerar o uso de mecanismos facilitadores de cálculos e de impugnações, bem como pagamentos administrativos aos beneficiários da sentença, mas não é possível desatrelar a atividade cognitiva condenatória daquela de liquidação.
Acreditamos que a tramitação do projeto será uma excelente ocasião para que a vontade popular, em ambiente democraticamente adequado para tanto, manifeste-se sobre a conveniência ou não da arbitragem societária coletiva em nosso país.
___________________________________________________________________________________
[1] As mudanças propostas para as demandas previstas nos arts. 159 e 258 da LSA são tema para outro trabalho.
2 No sentido da possibilidade de vinculação do colegitimado: STJ, REsp 1656874/SP; Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. 13/11/2018; TRF4, apelação cível 5009822-82.2015.4.04.7200, Rel. Des. Rogerio Favreto, Terceira Turma, j. 29/6/2021. Em sentido contrário: TRF4, apelação cível 5012007-25.2017.4.04.7200, Rel. Des. Rogerio Favreto, Terceira Turma, j. 7/10/2021.

breno-assis-r3WAWU5Fi5Q-unsplash

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

PL ressalva que a transação na ação coletiva não prejudicará os investidores que não sejam parte da demanda

Um novo capítulo da arbitragem societária coletiva: o PL 2925/2023

Tramitação do PL será uma ótima ocasião para que a vontade popular manifeste-se sobre a conveniência ou não da arbitragem societária coletiva