Democracia

Um malvado favorito: o ativismo judicial em tempos de Covid-19

Malvado ativismo judicial se mostra, exclusivamente hoje, um ‘malvado favorito’ para a democracia

Imagem do filme "Meu malvado Favorito". Crédito: Reprodução/Youtube

No filme infantil Despicable Me – no Brasil, Meu Malvado Favorito – o vilão Gru tem suas empreitadas freadas por três adoráveis órfãs que querem tê-lo como pai. As jovens passam influenciar sua vida de uma forma extremamente positiva, de maneira que o protagonista acaba se tornando, de fato, um “malvado favorito”.

Ainda jovem e imatura, a democracia brasileira tem como corolário o sistema de freios e contrapesos insculpido no art. 2º da Constituição da República: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. A ideia de checks and balances – encabeçada pelo filósofo Montesquieu, no século XVII e XVIII, e influenciada pelas ideias de John Locke e Aristóteles – prevê atribuições típicas e atípicas para cada uma das três funções do Estado.

O objetivo é que elas sejam livres para operar dentro de suas respectivas competências, mas que, concomitantemente, não haja abusos no exercício de cada uma. Dessa maneira, o Estado Democrática de Direito vem a cumprir suas duas razões-de-ser: o efetivo controle do Poder do Estado e a garantia de liberdades individuais e de direitos das minorias.

O ativismo judicial, já há certo tempo, vem sendo debatido como um delicado “remédio” para as omissões decorrestes das funções legislativa e executiva do Estado. Afinal, é a dosagem que distingue o remédio do veneno.   Ao passo em que o Judiciário deve zelar pela Constituição da República, devendo atuar de maneira independente para alcançar esse fim, não se pode olvidar da sua necessária harmonização com os poderes constituídos politicamente.

No Brasil, afinal, o magistrado não possui mandato, nem tampouco conquista o poder-dever de dizer o direito – jurisdictio – através do voto popular. Dessa forma, pode atuar de maneira independente, sem dever satisfações à opinião pública ou a um grupo específico da sociedade. Embora agasalhados por essa independência, impera ressaltar que os poderes executivo e legislativo são constituídos pelo mais significativo exercício da cidadania: o voto popular.

Diferente daqueles que conquistam a toga, em regra, por concurso público, os legisladores e os chefes da função executiva têm um robusto background de legitimidade para exercerem com independência suas atribuições. O mandato é uma “procuração” da sociedade civil para que os políticos, eleitos por ela, representem-na da melhor maneira. Isso, irrefutavelmente, deve ser respeitado pela função judiciária do Estado.

Nesse sentido, episódios da recente história brasileira mostram como o ativismo judicial, não raro, demonstrou-se um “malvado” à democracia. Pondo o mérito das decisões à margem, é, no mínimo, estarrecedor para um jurista ler em reportagens que “O STF aprovou a criminalização” de certo ato, como foi noticiado após o julgamento da ADO 26 e do MI 4733, que resultou na criminalização da homofobia e da transfobia. Repete-se: o mérito de tal decisão é louvável, mas o presente debate se atém ao ativismo na função judiciária do Estado.

O mesmo ocorreu no julgamento acerca da vaquejada como prática desportiva e cultural da região nordeste (ADI 4.983/CE, Rel. Min. Marco Aurélio). Posteriormente, todavia, vislumbrou-se um contragolpe do Legislativo Federal –  clássico exemplo “ativismo congressual” (ou efeito backlash) – através da proposta de emenda à Constituição (PEC 50/2016) do então senador Otto Alencar (PSD-BA). Resultado: apenas oito meses após o julgamento da ADI 4.983, a Mesa do Congresso Nacional já promulgava a Emenda Constitucional 96, que passou a liberar práticas como as vaquejadas e os rodeios em todo o território brasileiro

Some-se a isso o fato de possuirmos um Supremo Tribunal Federal completamente ilhado, em que seus membros formam onze tribunais isolados, independentes e intransigentes. Sepúlveda Pertence afirmava que eram “onze ilhas que formavam um arquipélago”, todavia estes autores, em clara reprodução da ideia posta em “Os Onze”, obra de Felipe Recondo, anuem que os membros da Corte mais se parecem com onze Estado independentes, que sequer formam “bloco” a “arquipélago” algum.

Decisões monocráticas como, à guisa exemplificativa, a do ministro Marco Aurélio que, em 2016, determinou o afastamento do então presidente da função legislativa federal, o senador Renan Calheiros, demonstram claramente um desequilíbrio na ideia de Montesquieu. Na oportunidade, diga-se de passagem, a Mesa do Senado da República, em ato assinado por seus integrantes, decidiu desobedecer expressamente à decisão monocrática até que o plenário do Supremo Tribunal Federal julgasse o caso.

Malgrado todo o exposto até aqui, é preciso salientar que, hoje – de forma inusitada – em tempos de isolamento social e reconhecido estado de calamidade pública, os membros do Supremo Tribunal Federal vêm (até o momento) demonstrando, finalmente, uma postura dialógica, harmoniosa e uníssona. Não poderia ser diferente.

Se é cediço que, em “condições normais de temperatura e pressão” o Direito (através da função legislativa) já não consegue acompanhar as transformações da sociedade, o que esperar do atual estado gerado pelo vírus SARS-CoV-2 (ocasionador da doença COVID-19)?

Naturalmente, hoje, o processo legislativo se mostra demasiadamente moroso e insuficiente para suprir as novas demandas da sociedade durante a crise decorrente da pandemia enfrentada. O que faz do Poder Legislativo um agente muitas vezes bem-intencionado, mas incapaz de suprir de maneira efetiva e tempestiva as novas demandas sociais. Por outro lado, vê-se uma cristalina crise orgânica no alto escalão do Executivo Federal, o qual se mostra em verdadeira “guerra fria” interna, sob o comando de um Presidente da República cada vez mais isolado (não por acaso) das demais instituições do Estado Democrático de Direito brasileiro.

Diante da falta de protagonismo e efetividade por parte de ambos os poderes políticos, é substancial que a Jurisdição, excepcionalmente (repete-se!), agigante-se no papel de garantir direitos. Nunca antes se precisou de um judiciário tão vanguardista, ativista e emancipador. Continuando a analogia feita ao filme Meu Malvado Favorito, a pandemia que hoje enfrentamos faz as vezes das “órfãs” do filme, as quais transformam o vilão em uma espécie de “pai”.

Mesmo os mais críticos à atuação expansiva do Judiciário têm de reconhecer isso, sob pena das novas situações que emergem nesse período de crise não serem tuteladas pelo Estado. Das três funções estatais previstas por Montesquieu, é o Judiciário que possui meios de tutela adequada, tempestiva e efetiva de direitos – nesse ponto se reconhece a importância do democrático Código de Processo Civil de 2015, o qual pareceu se preocupar com a não neutralidade do “tempo” no processo.

Os autores deste artigo advogam, sim, que são as leis o “círculo de giz” sob o qual o magistrado deve pautar sua atuação. E deve fazê-lo com motivação técnica, distante de protagonismos e excessos. Todavia, é pouco crível que, sem um Judiciário altivo e responsivo, em tempos de Covid-19, as inusitadas formas de vilipêndio a direitos estivessem sendo disciplinadas com a necessária pontualidade.

Inequivocamente, o “malvado” ativismo judicial se mostra, exclusivamente hoje, um “malvado favorito” para a democracia. Trata-se de uma “válvula de escape” valiosa diante da intempestividade do Legislativo Federal e da postura figurativa do Executivo Federal na gestão da presente crise.

Sem essa postura diligente e intervencionista do Estado-juiz, seriam os cidadãos as vítimas da lentidão legislativa e das confusões internas do Executivo. Reconhece-se, pois, que – tão somente em tempos de Covid-19 – deve a função judiciária do Estado mostrar sua responsividade e sua preocupação com a efetiva feitura de justiça material aos inusitados casos concretos que vêm emergindo, diuturnamente, nas Cortes de Justiça do país. Não há, em análise apriorística, outros meios de garantir de maneira adequada, efetiva e tempestiva as demandas emergenciais da sociedade civil.