Pandemia

Um Direito Econômico de ‘guerra’

Desafio é reformular a ação do Estado para que possa induzir investimento e criar valor e renda

Polícia Militar de Alagoas vai às ruas da capital Maceíó para fiscalizar cumprimento das medidas de isolamento. Crédito: Marcio Ferreira/Fotos Públicas

Diante dos efeitos disruptivos da pandemia da Covid-19 sobre toda a economia, disseminando a insolvência, de um lado, nos setores industriais, comerciais e de serviços e, de outro, nas concessões públicas, levando os agentes econômicos a invocar nos tribunais o princípio da força maior para justificar o não cumprimento de suas obrigações, o Judiciário e demais órgãos do sistema de Justiça brasileiro se encontram diante de uma encruzilhada.

Por um lado, o ativismo de um Judiciário sobrecarregado pelas demandas da crise passa pela interpretação desse princípio, que é indeterminado por sua natureza. No âmbito das relações privadas, disciplinadas pelo Código Civil, a autorização judicial indiscriminada do descumprimento dos contratos pode causar um efeito dominó, com distorções nas cadeias produtivas, desarticulando o setor privado.

No campo do Direito Administrativo, eventual rigidez no enforcement das obrigações das concessionárias pode levar o desequilíbrio econômico-financeiro ao limite dramático da inviabilidade dos serviços públicos. Dada a ausência de um balizamento minimamente objetivo, é grande a chance de erro na dose, seja ela contra ou a favor dos contratos assinados.

Por outro lado, contudo, em meio às demandas inéditas e urgentes da crise, não se pode exigir dos tribunais soluções que, dada sua configuração institucional e sua lógica decisória, eles não têm condições de produzir no curto prazo.

Essa encruzilhada envolve problemas relevantes. Um deles diz respeito à efetividade da Constituição. Em tempos normais, onde há crescimento econômico, avanço tecnológico, algum equilíbrio social, comportamentos sedimentados e expectativas comuns de justiça, a Constituição é um marco normativo que tem como desafio combinar estabilidade e flexibilidade ou adaptabilidade às mudanças econômicas, sociais e culturais.

A combinatória é difícil, pois se privilegiar a estabilidade, ela se desatualiza e é ultrapassada pela evolução da história. E, se privilegiar a flexibilidade ou adaptabilidade, mudando incessantemente, corre o risco de perder suas referências normativas e a capacidade de balizar as expectativas da sociedade.

O que dizer então com relação aos tempos difíceis como os atuais, marcados por incertezas, imprevisibilidades e inevitabilidades decorrentes da pandemia, exigindo respostas que nem o direito positivo nem o sistema de Justiça têm condições de responder de modo coerente, garantindo um mínimo de segurança jurídica?

Diante de situações inéditas, geradoras de tragédias humanitárias e debacles econômicas, que exigem respostas imediatas por parte dos governantes, o que fazer quando a ordem jurídica pressupõe, para sua revisão e reforma, mecanismos com um tempo funcional mais lento do que o tempo da saúde pública e o tempo da economia?

Evidentemente, por mais que uma Constituição possa ser revista, isso não acaba colidindo com sua vocação para a estabilidade, que é condição para que possa durar?

Essas indagações não são novas. Elas foram formuladas, por exemplo, após a quebra da Bolsa de Nova York, no final da década de 1920. Quando a Grande Depressão eclodiu, houve quem criticasse qualquer interferência estatal, sob a justificativa de que o mercado saberia se autorregular.

O governo Herbert Hoover, que começara oito meses antes da crise, revelou-se tíbio ao enfrentá-la. Republicano, portanto um conservador pró-mercado, Hoover enfatizava a responsabilidade pessoal dos indivíduos por seu destino e alegava que o cuidado dos desvalidos da recessão era de responsabilidade local, não do governo federal.

Derrotado na campanha pela reeleição, foi sucedido por Franklin Roosevelt, um democrata eleito com base num programa de intervenção econômica e social, o New Deal, voltado à recuperação econômica e à proteção das classes mais prejudicadas pela crise.

Entre outras medidas, esse programa previa a criação da National Recovery Administration, um órgão de planejamento de alcance nacional com a prerrogativa de gerir uma espécie de economia de guerra.

O New Deal não apenas envolvia um conjunto de ações regulatórias nos campos econômico e social, como também abria caminho para a promoção de direitos e implementação de programas sociais fundamentais para a eficácia das liberdades básicas dos cidadãos.

Contudo, apesar de ter sido bem recebido pela sociedade, algumas de suas inovações regulatórias – especialmente a National Recovery Administration – foram declaradas inconstitucionais pela Corte Suprema, sob a alegação de que a Constituição americana não permitia o “socialismo”, gerando com isso fortes tensões políticas entre o Executivo e o Judiciário.

Um século depois, guardadas as devidas proporções, o que se espera entre nós é um direito econômico para uma economia de guerra – mais precisamente, uma matriz jurídica para uma espécie de New Deal num contexto pós-keynesiano, de políticas basicamente fiscalistas e hostil a medidas anticíclicas.

Evidentemente, esse direito econômico para tempos de guerra não pode ser uma cópia do experimento rooselveltiano, quando ainda pouco se falava no que Schumpeter descreveria em 1942 como processo de destruição criativa.

E quando também não se imaginava o alcance do desemprego estrutural causado pela substituição do trabalho braçal pelo trabalho robotizado nem o fenômeno da transterritorialização dos mercados e o surgimento de cadeias globais de valor, com as indústrias de diferentes países conectadas para a fabricação de um determinado produto.

Do ponto de vista substantivo, agora o desafio é reconstruir o conceito de interesse público e reformular a ação do Estado para que possa, além de enfrentar a crise sanitária, induzir investimento e criar valor e renda em contexto de isolamento social.

E isso requer criatividade para unir a dinâmica virtual da economia (e-commerce, por exemplo) com a infraestrutura e a logística físicas do transporte, desde que respeitados os protocolos sanitários.

Exige, igualmente, uma ampla discussão sobre a possibilidade de o Estado alavancar, com o instrumento das compras públicas, empreendimentos privados capazes de realizar uma substituição de importações de testes de diagnóstico, insumos e equipamentos hospitalares, dentre tantos outros itens que o momento possa sugerir. Esse enorme desafio demanda ainda uma nova arquitetura jurídica – criativa, flexível e pragmática.

Como já dito, o New Deal enfrentou forte resistência por parte da Suprema Corte, para a qual circunstâncias extraordinárias – o equivalente ao que hoje se chama de força maior – não justificariam tanta interferência regulatória no mercado.

Mas o governo Roosevelt conseguiu superar essas resistências e implantá-lo sem colocar em risco a estabilidade institucional da democracia e a integridade da ordem jurídica. Os embates entre os Poderes tornaram-se referência para o constitucionalismo moderno.

Entre outros motivos, porque eles deixaram claro que uma Constituição democrática é um projeto em contínua construção, de tal modo que o desenvolvimento de seus princípios estruturantes e fundantes pode ser realizado pelos poderes constituintes – inclusive o sistema de Justiça.

Todavia, caminhar nessa linha com o objetivo de tentar evitar uma tragédia humanitária, uma desestruturação das cadeias de produção e um apagão no âmbito do Direito Civil e do Direito Administrativo esbarra em várias dificuldades.

Uma delas é a insensibilidade e o despreparo do presidente da República. Outra, é a notória incapacidade que seu governo tem demonstrado para formular programas anticíclicos, aumentar gastos públicos para aliviar sofrimentos e impedir quebras generalizadas, coordenar um direito econômico de guerra e afastar o risco de desarticulação do setor privado e de colapso das concessões de serviço público.

Dificuldades como essas vêm elevando os dilemas sobre o princípio jurídico de força maior a um patamar insolúvel. E, aí, não há condição alguma de os tribunais, julgando caso a caso, de forma aleatória, descentralizada e descoordenada, fazerem milagre, dado o efeito dominó das quebras contratuais em todos os setores da economia.