Igor Pereira Oliveira

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stf">STF</a>) exigiu o condicionamento da execução das transferências especiais (provenientes da Emenda Constitucional 105/2019) ao atendimento dos requisitos constitucionais da transparência e da rastreabilidade (<a href="https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15368982140&amp;ext=.pdf">ADI 7.695 DF</a>), com vistas a enfrentar uma problemática exposta pelo ministro relator do STF:
<blockquote class="jota-article__citation">Ora, se é o parlamentar que IMPÕE em que o dinheiro será gasto, exige-se, caso mantido o instituto na Constituição, inovações simétricas nos sistemas de controle, a fim de que a Constituição seja cumprida, tal como menciona a PGR na presente ADI. Se assim não ocorrer, teremos um perigoso e inconstitucional “jogo de empurra”, em que, ao certo, ninguém se identifica como responsável pela aplicação de parcela relevante do dinheiro público. 13. Nesse atípico “jogo”, o parlamentar pode argumentar que apenas indica, mas não executa; o Executivo pode informar que está apenas operacionalizando uma “emenda impositiva”; e o gestor estadual ou municipal pode alegar ser mero destinatário de algo que vem “carimbado”.</blockquote>
<h3><a href="https://conteudo.jota.info/marketing-lp-newsletter-por-dentro-da-maquina">Quer saber os principais fatos ligados ao serviço público? Clique aqui e se inscreva gratuitamente para receber a newsletter Por Dentro da Máquina</a></h3>
Em fevereiro de 2021, a consultoria da <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/camara-dos-deputados">Câmara dos Deputados</a> alertou que embora proporcionem um ganho na agilidade de repasse de recursos da União para os demais entes, as transferências especiais trazem um déficit de transparência e controle social dos recursos da União (<a href="https://www2.camara.leg.br/orcamento-da-uniao/estudos/2021/nota-tecnica-_-transferencia-especial-art-166-a-modalidade-restrita-as-emendas-individuais-versao-15-fev-2021#:~:text=A%20transfer%C3%AAncia%20especial%20prevista%20no,n%C3%ADvel%20de%20compromisso%20e%20controle.">Nota Técnica 02/2021</a>).
Em agosto deste ano, a mesma consultoria legislativa comentou que os questionamentos afetos à constitucionalidade da EC 105/2019 relacionam-se ao conflito potencial com o princípio federativo, “ao se admitir a supressão do papel da União na definição do destino dos recursos próprios” (<a href="https://www2.camara.leg.br/orcamento-da-uniao/estudos/2024/nota-tecnica-_-39-2024-transferencias-especiais-_-repercussao-da-decisao-do-stf-adi-n-7688-df/view">Nota Técnica 39/2024</a>). 
No âmbito do Tribunal de Contas da União (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/TCU">TCU</a>), a avaliação da prestação de contas do presidente da República ressaltou que do total de R$ 7,23 bilhões empenhados na função encargos especiais, R$ 7,08 bilhões (98%) foram relativos às transferências especiais:
<blockquote class="jota-article__citation">Os valores dessas transferências têm crescido ano-a-ano. Em valores corrigidos pelo IPCA, o montante empenhado via transferências especiais foi de R$ 756,69 milhões em 2020; de R$ 2,26 bilhões em 2021 e de R$ 3,47 bilhões em 2022 (<a href="https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/redireciona/acordao-completo/ACORDAO-COMPLETO-2664337">Acórdão 1124/2024-Plenário</a>).</blockquote>
Adaptando-se à nova regra constitucional, o TCU evidenciou que a fiscalização sobre a regularidade das despesas efetuadas pelo ente federado é de competência do sistema de controle local, incluindo o respectivo tribunal de contas, limitando-se a Corte de Contas federal à fiscalização sobre o cumprimento das condicionantes que legitimam a transferência especial (<a href="https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/redireciona/acordao-completo/ACORDAO-COMPLETO-2551830">Acórdão 518/2023-Plenário</a>).
Além disso, o <a href="https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/redireciona/acordao-completo/ACORDAO-COMPLETO-2617354">Acórdão 1758/2023-Plenário</a> sinalizou que eventuais contribuições do Poder Legislativo para aprimoramento da modalidade de transferência especial poderiam tornar obrigatória por lei a divulgação, em plataforma centralizada de acesso geral, de informações e documentos relativos às despesas com a aplicação dos recursos.
Contudo, o ministro relator do TCU fez questão de ressaltar que “o Legislativo tem colaborado com a concretização do princípio constitucional da publicidade dos atos da Administração Pública, em todos os níveis da Federação, inclusive e em especial no que se refere à gestão de recursos públicos”.
O cenário exposto, desafiador do ponto de vista de relações interinstitucionais, atrai pelo menos três ponderações.
A primeira, relacionada à ADI 7.695 DF e à sinalização do Acórdão TCU 1758/2023-Plenário. As deliberações enfrentam uma questão fundamental e, em certa medida, óbvia no Estado democrático de Direito: a inafastável transparência para o efetivo controle social, que, em regra, independente do “ordenador de despesas”, da fonte de recursos ou do ente federado recebedor.
A segunda, tem relação com as causas do problema. A EC 105/2019 possibilita um repasse célere de recursos diante da demora pretérita de liberação pelo governo federal. 
Contudo, o <a href="https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/redireciona/acordao-completo/ACORDAO-COMPLETO-2386193">Acórdão 86/2020-Plenário</a> demonstrou, em resposta ao Congresso Nacional, que a demora para liberação era proveniente, geralmente, do não atendimento (ou do atendimento intempestivo) pelos entes locais a requisitos básicos e fundamentais (confecção de projeto, obtenção de licenciamento ambiental, titularidade da área objeto da intervenção).
Dessa forma, a busca (legítima) pela celeridade no repasse de recursos federais apenas transferiu o problema, sem enfrentá-lo adequadamente em um contexto de governança multinível.
Terceiro e último, o debate atual me fez lembrar uma situação possivelmente enfrentada pelo U.S. Government Accountability Office (GAO), a instituição superior de controle dos Estados Unidos, ao enviar ao Congresso norte-americano um relatório sobre fragmentações, sobreposições e duplicidades na intervenção governamental.
O relatório anual, registre-se, é uma obrigação legalmente instituída em 2010 pelo próprio Congresso (Public law 111–139. 124 Stat 29). A organização <a href="https://www.openthebooks.com/assets/1/6/Duplication_Nation_-_GAO_Oversight_Report_FINAL.pdf">Open the Books</a> evidenciou:
<blockquote class="jota-article__citation">The first GAO report was published in March 2011, titled “Opportunities to Reduce Potential Duplication in Government Programs, Save Tax Dollars, and Enhance Revenue.” It includes 81 areas where duplication was wasting money, with similar or overlapping objectives, providing similar services to the same populations, or where agencies or Congress could take action to reduce the cost of government operations or enhance revenue collections. Congress hated it. The appropriators were irate because it made them look bad, and they enjoyed having their own pots of money to spend however they pleased, regardless of whether others were spending on the same things.</blockquote>
Diante das contribuições do TCU e da consultoria legislativa, dos potenciais efeitos positivos da decisão do STF na ADI 7.695 DF e da participação fundamental do Legislativo na destinação de recursos federais, reitero meu raciocínio de <a href="https://www.jota.info/artigos/desafios-atuais-nao-devem-ofuscar-historico-harmonioso-entre-instituicoes-de-controle-19042021">artigo de opinião</a> em 2021 sobre a busca por uma atuação coordenada na rede de controle: os desafios momentâneos decorrentes do relacionamento interinstitucional não devem ofuscar os esforços históricos das instituições brasileiras para uma atuação harmônica, inclusive no enfrentamento de um déficit de transparência e controle social.
*
Eventuais opiniões são pessoais e não expressam posicionamento institucional do TCU

Plenário da Câmara dos Deputados / Crédito: Valter Campanato/Agência Brasil

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

Um déficit de transparência e controle social

O papel fundamental do STF na ADI 7.695