Graziella Testa

O processo disciplinar do vereador Gabriel Monteiro (PL) na Câmara Municipal do Rio de Janeiro ganhou a mídia nacional no último dia 28 de maio após a morte do ex-assessor Vinícius Hayden, que havia prestado depoimento contra o vereador no dia 25. O processo, que pode levar à cassação do vereador por acusações de estupro, assédio sexual e por ter forjado vídeos veiculados em suas redes sociais, ocorre pouco tempo depois da <a href="https://www.jota.info/legislativo/arthur-do-val-tem-mandato-cassado-pela-alesp-por-falas-sexistas-sobre-ucranianas-17052022">cassação do deputado estadual por São Paulo Arthur do Val</a> (sem partido) por áudios sexistas contra refugiadas ucranianas. Os casos surpreendem porque a maior parte das penalidades de parlamentares são resultado de processos judiciais, não de punição por pares.
O primeiro elemento que é comum aos dois casos é que as acusações envolvem diferentes faces de violência contra a mulher e os processos envolvem quebra de decoro. O decoro parlamentar é um conceito presente na Constituição, que estabelece que “é incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membros do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas”(CF/1988). A definição é vaga e os <a href="https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/regimento-interno-da-camara-dos-deputados">Regimentos Internos da Câmara dos Deputados</a> e do <a href="https://www25.senado.leg.br/web/atividade/legislacao/regimento-interno">Senado Federal</a> não são diferentes.
Algumas práticas específicas são descritas no hall de atitudes inaceitáveis, tais como “fazer acordo para a posse do suplente, condicionando-a a pagamento em dinheiro ou à prática de atos contrários aos deveres éticos ou regimentais dos deputados”(Código de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados). A maior parte das normas, no entanto, são gerais, como “perturbar a Ordem de sessão da Câmara ou das reuniões de comissão” (idem). É certo que o Código de Ética e Decoro da Câmara dos Deputados não se aplica às Casas Legislativas estaduais e municipais, que gozam de autonomia na atuação interna, mas estas costumam espelhar suas regras naquelas.
O decoro é uma espécie de moral para o comportamento legislativo, uma determinada forma de agir, um conjunto geral de critérios normativos que devem ser seguidos pelo representante. O decoro, em tese, se localiza em algum lugar entre o que é legal e o que é moral. Isto é, certamente tudo que é ilegal será quebra de decoro, mas nem toda quebra de decoro é ilegal. Do parlamentar se espera uma conduta mais do que moral, mas digna de seu cargo – essa é a origem da ideia de decoro.
<blockquote class="jota-article__eye">Assim, se no direito privado tudo que não está proibido está permitido e no direito público está permitido tudo que está expressamente determinado pela norma, o decoro parece se localizar em algum lugar entre a moralidade e a legalidade, numa zona que pode ser cinzenta.</blockquote>
Ao analisar a Câmara do Deputados nos anos 1990, a antropóloga Carla Costa Teixeira observa que o decoro funcionaria como um código de honra, que se referiria aos valores de um grupo numa determinada época. Não há como, portanto, falar de decoro sem localizar a questão temporal e socialmente. Isto é, uma determinada conduta poderia ser aceita numa determinada época mas rechaçada em outra. Os processos de cassação com base em condutas violentas contra as mulheres podem representar um passo a frente da sociedade como um todo, que passa a ser menos leniente com condutas outrora aceitas. Há, no entanto, outras variáveis que precisam ser levadas em conta antes que comecem as comemorações.
Outro elemento comum entre Gabriel Monteiro e Arthur do Val é que ambos exercem mandatos pela primeira vez e não tem fortes laços com partidos políticos. São frutos do discurso de renovação política e praticam uma comunicação direta com o eleitorado pelas redes sociais.
A estratégia desses parlamentares foi a de prescindir o comportamento coletivo, seja ele partidário, regional ou de grupo político, em prol de atuação individualizada. O cálculo desse tipo de comportamento provavelmente envolve poder mudar de partido e levar seu eleitorado consigo, aumentando seu “passe” no momento da janela partidária. É um comportamento racional, mas que não leva em conta momentos como esse, em que o comportamento partidário poderia aumentar suas chances de manter o mandato.
Caso emblemático nesse sentido é o do deputado estadual Fernando Cury (União Brasil-SP), que recebeu como pena pela importunação sexual a pena de seis meses de afastamento e já está de volta à atividade parlamentar. O deputado, que importunou sexualmente uma outra deputada sob as câmeras do plenário da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), deve agora responder na Justiça. Por que então Cury não perdeu seu mandato? O apoio político e o tempo de Casa podem ajudar a explicar o comportamento corporativista da Assembleia, que havia estabelecido uma pena ainda mais branda no Conselho de Ética. A punição foi aumentada em plenário.
Não interessa a ninguém o comportamento político e corporativista dos Conselhos de Ética de Câmaras e Assembleias. A ampliação da participação feminina nas arenas institucionais gera uma tendência a aumentar também a violência de gênero nesses espaços. Por outro lado, a pauta de defesa dos direitos das mulheres parece ter rompido a barreira entre esquerda e direita e já está presente mesmo no discurso conservador. Como o combinado não sai caro, este seria um bom momento para positivar essa questão em específico nos Regimentos e Códigos de Ética dos Parlamentos. A violência de gênero é tema muito sério para estar sujeita a conchavos corporativistas.

51356500710_fa7ec8335f_c

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Não interessa a ninguém o comportamento político e corporativista dos Conselhos de Ética de Câmaras e Assembleias

Um decoro, duas medidas

Não interessa a ninguém o comportamento político e corporativista dos Conselhos de Ética de Câmaras e Assembleias na cassação de mandatos