Thális Andrade

Continuando a odisseia de que já falamos <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/um-cavalo-de-troia-no-processo-administrativo-fiscal-parte-1-16032023">noutra oportunidade</a><a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, a <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023-2026/2023/Mpv/mpv1160.htm">MP 1160/2023</a> trouxe um segundo presente de grego além da alteração da regra do voto de qualidade. Cuida-se de artifício menos debatido (mas muito pior ao contribuinte), que foi a modificação no valor de alçada recursal e a posterior mudança no rito das impugnações dentro da Delegacia da Receita Federal do Brasil de Julgamento (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/DRJ">DRJ</a>).
Isso porque o artigo 23 da <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l13988.htm">Lei 13.988/2020</a> foi inserido trazendo a figura do “contencioso administrativo fiscal de pequeno valor, assim considerado aquele cujo lançamento fiscal ou controvérsia não supere 60 salários mínimos”, devendo nestes casos o julgamento ser realizado em instância única pela DRJ. Por sua vez, a MP 1160, em seu artigo 4º, destacou que “aplica-se o disposto no art. 23 ao contencioso administrativo fiscal de baixa complexidade, assim compreendido aquele cujo lançamento fiscal ou controvérsia não supere mil salários mínimos”. 
Portanto, a MP 1160 altera o conceito de “contencioso administrativo fiscal de pequeno valor” quantitativamente – ao subir o valor de alçada para mil salários mínimos – e qualitativamente, falando numa “baixa complexidade” de cunho econômico. Da forma que foi posta, novamente da Medida Provisória emergem contradições, pois reputa como “complexa” a controvérsia que supere R$ 1.302.000, não havendo correlação com os fatos do caso, muito menos com os argumentos trazidos pelas partes.
Deixemos então de lado o debate sobre a complexidade para nos ater ao direito ao duplo grau recursal administrativo.
É fato que o Judiciário já se pronunciou pela inexistência de direito fundamental a um recurso nessa esfera. O Superior Tribunal de Justiça (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/STJ">STJ</a>), por exemplo, já defendeu que o duplo grau obrigatório não é inerente ao contencioso administrativo (EAg 459.961/RJ). Esse entendimento igualmente ecoou no STF, que também decidiu que o duplo grau não é absoluto no âmbito jurisdicional, sendo que a instância única no contencioso administrativo não viola o alegado direito ao mencionado instituto (AgR em RE 794.149/CE). A posição, aliás, havia sido aplicada anos antes em sede de repercussão geral no processo judicial, decidindo-se pela impossibilidade de recurso em execução fiscal, quando o valor fosse inferior a 50 ORTNs (ARE 637.975/MG).
No entanto, o mesmo STF decidiu quando do julgamento da ADI 1976 que “a exigência de depósito ou arrolamento prévio de bens e direitos pode converter-se, na prática, em determinadas situações, em supressão do direito de recorrer, constituindo-se, assim, em nítida violação ao princípio da proporcionalidade”. O precedente veio a culminar na edição da Súmula Vinculante 21 do STF, que pôs fim ao obstáculo ao direito à ampla defesa e contraditório na esfera administrativa. Portanto, o STF movimenta-se entre a defesa de uma instância única administrativa e o afastamento de obstáculos ao exercício do direito de defesa no âmbito administrativo.
Ora, mesmo que se alegue que a ausência de obstáculos ao direito de petição administrativa não se relaciona com a supressão ao direito recursal nessa mesma esfera, cumpre nos registrar como defensores da facilitação do comércio, que a Norma 10.5 da Convenção de Quioto Revisada (CQR) – já internalizada pelo Decreto 10.276/2020 e em vigor no Brasil – prescreve que um importador possa buscar a revisão dessa decisão administrativa por meio de “recurso a um órgão independente daquele que proferiu decisão”. 
Portanto, no âmbito do Direito Aduaneiro, não caberá mitigar o direito recursal por subterfúgios de valor de alçada, complexidade, etc. A garantia convencional aduaneira é cristalina e não impõe qualquer limitação de direito a um recurso para “órgão independente”, fora da DRJ.
Essa posição terá, inclusive, apoio em voto de ministros do STF que já se posicionaram que normas limitadoras do direito ao duplo grau de cognição administrativo esbarram no Princípio da Revisibilidade Administrativa, de modo que o objetivo prático de norma limitadora parece ser o de forçar o recebimento dos créditos tributários menores com assento no pressuposto de que a atuação administrativa do contribuinte é meramente protelatória, o que viola o postulado da isonomia<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. Esse entendimento foi fundamentado em escritos da também ministra do STF Cármen Lúcia, que defendeu que direito à revisão ou recurso administrativo está vinculado ao direito à ampla defesa, sendo aquele uma forma de exercer essa garantia. Assim, o recurso é um segundo momento de defesa, agora na instância e perante o juízo recursal competente<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Aliás, parte da doutrina vai além nesta defesa, colocando o direito ao duplo grau recursal como garantia que decorre da própria Constituição Federal, ou seja, independe de lei para que se concretize, ou seja, o duplo grau entendido como a dualidade de instâncias, com a garantia, conferida ao interessado, de promover o reexame recursal, está posto, com letras candentes, nos incisos LIV e LV art. 5º da Lei Maior<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
E não se pode se falar que a criação de Turmas Colegiadas na DRJ, trazidas pela Portaria MF 20, de 17 de fevereiro de 2023, atendam a esses ditames. A recente Portaria regulamentar das causas de baixa complexidade traz um segundo presente de grego, indicando a possibilidade recursal para o contribuinte que não tenha atingido a “complexidade financeira” de mil salários mínimos, podendo sua impugnação ser analisada monocraticamente pela DRJ em primeira instância, e facultando-se um mero direito de revisão pelo órgão colegiado dentro da mesma DRJ como instância recursal fosse. Pior, a mesma norma não prevê qualquer direito de revisão para aqueles contribuintes cuja controvérsia seja inferior a 60 salários mínimos, colidindo frontalmente com a Norma 10.5 da CQR.
Portanto, conclama-se as seccionais da OAB<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> e demais setores da sociedade a não compactuarem com as negociações no âmbito da MP 1160, tampouco tolerar a supressão de direito a recurso ao Carf. Admitir essas alterações processuais pode implicar na aceitação de mais presente de grego dentro das muradas do Estado democrático, dizimando-se a garantia conquistada a duras penas pelos contribuintes “troianos”.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Vide artigo “Um cavalo de Troia no Processo Administrativo Fiscal – parte 1”, publicado em 16.03.2023, disponível em: <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/um-cavalo-de-troia-no-processo-administrativo-fiscal-parte-1-16032023">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/um-cavalo-de-troia-no-processo-administrativo-fiscal-parte-1-16032023</a>. Acesso em 16.03.2023.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> STF, Recurso Extraordinário nº 767.336, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 16.06.2014, Dj 20.06.2014.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Princípios Constitucionais do processo administrativo no Direito brasileiro. Revista de Informação Legislativa, v.34, n. 136, p. 5-28, out./dez., 1997. p. 22
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> FERRAZ, Sergio e DALLARI, Adilson Abreu. Processo Administrativo, 2ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 212-213.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Defendemos em 02 de março de 2023, na 1ª Conferência de Direito Marítimo, Portuário e Aduaneiro realizada pela Comissão de Direito Marítimo, Portuário e Aduaneiro da OAB/SP essa necessidade de as seccionais se posicionarem neste embate. Vide OAB/SP, Perspectivas para Comércio Exterior em 2023, a partir de 2h27m25s. Disponível em: <a href="https://www.youtube.com/watch?v=9t0nVfjOHGk">https://www.youtube.com/watch?v=9t0nVfjOHGk</a>. Acesso em 10.03.2023.

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JOTA

As alterações trazidas pela Medida Provisória 1160/2023 ao valor de alçada recursal

Um cavalo de Troia no processo administrativo fiscal – parte 2

As alterações trazidas pela Medida Provisória 1160/2023, conhecida como MP do Carf, ao valor de alçada recursal