Thális Andrade

Na obra "Odisseia", Homero menciona a existência de um cavalo de Troia, que segundo a mitologia grega, seria um artefato de madeira gigante dado como presente pelos gregos aos troianos como um sinal de fim às hostilidades. Os troianos aceitam o presente e o colocam no interior de suas muralhas, permitindo que, durante a noite, os soldados escondidos no seu interior abrissem os portos da cidade para os outros demais combatentes que então surpreenderam os troianos e destruíram a cidade.
A história que abalou os troianos também pode abalar o Processo Administrativo Fiscal (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/paf">PAF</a>). Em 12 de janeiro de 2023, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, promoveu coletiva de imprensa para divulgar um “pacote de medidas fiscais” que, sob o argumento de reduzir a litigiosidade fiscal e evitar distorções tributárias, teriam como pilares fundamentais: (1) a volta do voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/carf">Carf</a>); (2) o aumento do limite de alçada recursal; (3) a possibilidade de a União recorrer após ser derrotada no Carf. Após a coletiva, foi publicada no Diário Oficial da União do mesmo dia a MP 1160, que concretizou os dois primeiros itens, ficando de fora, por ora, a possibilidade recursal.
Por sua vez, em 14 de fevereiro, a Ordem dos Advogados do Brasil (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/oab">OAB</a>) anuncia ter alinhado com o ministro da Fazenda um acordo para que, em casos decididos pelo voto de qualidade no Carf, os contribuintes deixem de pagar multas, e possam abater juros, parcelar em até 12 vezes os valores devidos, e realizar nova transação tributária.
A tentativa de acordo no curso da tramitação de uma MP que altera regras do PAF e patrocinada pela entidade mais representativa da advocacia, nos parece o primeiro “presente de grego” aos contribuintes troianos.
Isso porque, até a edição da MP 1160, de 12 de janeiro de 2023, vigorava o artigo 19-E inserido pela MP 899, de 16 de outubro de 2019, posteriormente convertida na Lei 13.988/2020. O dispositivo determinava que, no caso empate de votos no “julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário”, a conclusão da decisão deveria se dar em favor do contribuinte, implicando o cancelamento da cobrança<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Apesar de a alteração processual ter se dado por Medida Provisória, o Supremo Tribunal Federal (<a href="https://www.jota.info/stf">STF</a>) decidiu em três Ações Direta de Inconstitucionalidade<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> pela constitucionalidade do dispositivo.
Agora, a MP 1160 foi editada para revogar o artigo 19-E, restabelecendo a diretriz do voto de qualidade contida no § 9º do artigo 25 do Decreto 70.235/1972.
O primeiro fato que salta aos olhos é a afronta à proibição constitucional ao se utilizar novamente do instrumento da Medida Provisória para editar regras sobre direito processual penal e processual civil. A proibição existe justamente porque essa temática não pode ficar à mercê de alteração imediatamente aplicável, que pode não ser convalidada quando da conversão em lei<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. A caducidade do artigo 5º da MP criaria situações anti-isonômicas, pois uma mesma turma do Carf, ao julgar exatamente os mesmos fatos, pode ter vereditos distintos para aqueles contribuintes cujos processos foram pautados durante ou depois da vigência do voto de qualidade. Tal situação colidiria exatamente com a argumentação vencedora nos recentes casos de relativização da <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/coisa-julgada">coisa julgada</a> (temas 881 e 885) realizados pelo STF no início de fevereiro de 2023.
Já quanto ao mérito do retorno do voto de qualidade, este assunto tem dominado as críticas relativas à MP 1160/2023<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. No entanto, nos parece que as críticas são deveras apaixonadas, numa embate entre gregos e troianos, deixando-se  de lado a questão fundamental em se saber “o que é o PAF do Decreto 70.235/72?”
Se formos compreendê-lo como um meio de solução de litígios tributários, afeto ao direito processual, a coerência nos manda aplicar maior rigor na preclusão de prazos, mitigar a atuação ex-officio dos julgadores<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, afastar a possibilidade de produção de provas em momento posterior, empregar formalismo sem moderação, enfim, imputar ao PAF a limitação cognitiva dos autos (verdade formal).
Por outro lado, o PAF, enquanto meio de impugnação afeto à processualística administrativa, seria a exteriorização do poder de autotutela do Estado, se valendo da composição paritária para aperfeiçoar a qualidade dos atos emanados pela Administração Pública. Nesse sentido, o resultado final do julgamento do Carf, independente de sua composição, nada mais é que edição de ato administrativo, informado pela verdade material que, aliás, pode decidir de modo mais gravoso ao contribuinte<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
A propósito, com a devida vênia ao voto do ministro Luís Roberto Barroso, o argumento de que o fim do voto de qualidade permitiria à Fazenda buscar o Judiciário não possui qualquer relação com a existência ou não do voto de qualidade. O julgamento do Carf é uma manifestação da Administração Pública Federal, seja ela unânime ou não, devendo o contribuinte ser exonerado da exação após um resultado que lhe seja favorável, nos termos do art. 45 do Decreto 70.235/1972, o que afasta o interesse de agir da Fazenda Nacional em promover uma esquizofrênica ação judicial contra si própria.
Por essas razões, sobressai como um verdadeiro presente de grego uma entidade de classe buscar acordo durante a tramitação de MP sobre ônus fiscais decorrentes da aplicação do voto de qualidade. O debate apressado expõe o Carf, num movimento de desvalorização da instituição que tem trazido os mais equilibrados e aprofundados debates tributários no país.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> É curioso notar que naquele tempo o então Ministério da Economia buscava diminuir as garantias dos contribuintes, promovendo uma interpretação restritiva do fim do voto de qualidade então vigente. Para tanto, editou a Portaria ME nº 260, de 1º de Julho de 2020, amparada pelo Parecer SEI nº 6898/2020/ME, e não permitiu que as multas aduaneiras se aproveitassem da alteração promovida pela Lei nº 13.988/2020, que afastava o voto de qualidade no caso de empates, resolvendo-se favoravelmente aos contribuintes. Assim, as multas aduaneiras não puderam se valer do fim do voto de qualidade neste período.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> STF, ADIs nº 6.399, 6.403 e 6.415, rel. Min. Marco Aurélio. As ações ainda não foram definitivamente julgadas, mas a maioria dos votos já se formou pela constitucionalidade do referido dispositivo. O julgamento foi suspenso em razão do pedido de vista do ministro Nunes Marques. Vale ressaltar que o ministro Roberto Barroso extrapolou o entendimento até então firmado, ao destacar a possibilidade de a Fazenda Nacional cobrar o débito em juízo, quando restar vencida em casos de empate no julgamento. Os demais ministros aguardam o retorno do voto-vista.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Aliás, ainda no ano de 2022 foi entregue um projeto de lei amplamente debatido e elaborado por uma Comissão de Juristas para se reformar o processo administrativo tributário. Projeto de Lei 2692/22, apresentado em 31.10.2022. Disponível em: &lt;<a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2336420">https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2336420</a>&gt;. Acesso em 08.03.2023.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Vide CANADO, Vanessa. O voto de qualidade no CARF é só a ponta do iceberg. In Brazil Journal. Publicado em 26 de janeiro de 2023. Disponível em: <a href="https://braziljournal.com/opiniao-o-voto-de-qualidade-e-so-a-ponta-do-iceberg/">https://braziljournal.com/opiniao-o-voto-de-qualidade-e-so-a-ponta-do-iceberg/</a>. COLUSSI, João Marcos; CARBONAR, Alberto; CARVALHO, Fernando. Retorno do voto de qualidade: retrocesso rumo à insegurança jurídica. In JOTA. Publicado em 27 de janeiro de 2023. Disponível em: <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/retorno-do-voto-de-qualidade-retrocesso-rumo-a-inseguranca-juridica-27012023">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/retorno-do-voto-de-qualidade-retrocesso-rumo-a-inseguranca-juridica-27012023</a>. MEDEIROS, Thais; RIBEIRO, Natalia. Comentários sobre a volta do voto de qualidade no Carf. In Consultor Jurídico. Disponível em: <a href="https://www.conjur.com.br/2023-jan-19/medeiros-ribeiro-volta-voto-qualidade-carf">https://www.conjur.com.br/2023-jan-19/medeiros-ribeiro-volta-voto-qualidade-carf</a>. Todos acessados em 27.01.2023.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> art. 18, caput do PAF
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> art. 18, § 3º do PAF

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JOTA

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