O direito não é uma ciência exata. Uma decisão aparentemente técnica e bem fundamentada no direito eleitoral pode refletir e repercutir politicamente, produzindo consequências bem distintas e maximizar aquilo que pretendia impedir. A manifestação política da artista Pabllo Vittar em um festival de música causou a reação do partido do presidente Jair Bolsonaro em uma ação junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Um ministro da corte concedeu liminar para proibir que o festival permitisse novas manifestações político-eleitorais, sob pena de multa de R$ 50 mil.
Ao invés de minimizar os efeitos de um suposto ato ilícito, a ação político-eleitoral incendiou o debate e fez crescer as manifestações contrárias a Bolsonaro através da rede de solidariedade de artistas, intelectuais, políticos e cidadãos.
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A cultura sempre foi o reduto de resistência política e os festivais de música sempre representaram relevantes movimentos político-culturais. Podemos lembrar de Woodstock e Festivais da Música Popular Brasileira na década de 1960. Se formos lembrar da história recente, como esquecer da manifestação contrária a Donald Trump feita pelo U2 em 2016?
É natural o holofote iluminar quem está no poder e, por tal razão, quem governa se depara com a famosa claque “Fora”, seja Dilma, Trump, Temer. No momento atual, o “Fora, Bolsonaro” continuará ecoando nos festivais.
O inciso V do artigo 36-A da Lei 9.504/97 permite a manifestação pessoal sobre questões políticas, inclusive nas redes sociais. Assim, se Pabllo Vittar repetisse seu posicionamento político para as dezenas de milhões de seguidores estaria protegida pela lei eleitoral?! Contraditório impedir que a artista se expresse para 100 mil pessoas, pois, se desejar, em segundos alcança milhões com seu posicionamento político e legítimo. Parece controverso.
Há vários fundamentos que podem ser invocados pelo partido de Bolsonaro como propaganda antecipada (antes do dia 15 de agosto), propaganda eleitoral em bem de uso comum ou propaganda negativa etc. Todavia, toda ação está sujeita a reação e, na hipótese, o resultado almejado foi engolido por um tsunami de críticas e manifestações ainda mais contundentes contra o político.
A aplicação de multa por propaganda eleitoral antecipada depende da formação do contraditório e respeito ao devido processo legal. À Justiça Eleitoral compete coibir os excessos, lembrar dos limites que a lei impõe e preservar a igualdade na disputa, sem interferir ou restringir a liberdade de expressão.
A liminar concedida a título de tutela de urgência pelo TSE possui fundamentação genérica dirigida à direção do Lollapalooza, responsabilizando-a por atos de terceiros, ao dispor: “vedando a realização ou manifestação de propaganda eleitoral ostensiva e extemporânea em favor de qualquer candidato ou partido político por parte dos músicos ou grupos musicais que se apresentem no festival, sob pena de multa de R$50.000,00 (cinquenta mil reais) por ato de descumprimento”.
A determinação do TSE para a direção do festival impedir manifestação de propaganda eleitoral ostensiva dos músicos e artistas ou por elas se responsabilizar é tarefa impossível, inconcebível. O que pode ser considerado ostensivo? O que é propaganda eleitoral sob a ótica do artista? Crítica sem pedido de voto pode ser feita? O tom genérico, amplo e subjetivo da decisão proferida tangencia o conceito de censura prévia. A lei proíbe a censura prévia, sob qualquer pretexto, e eventual desrespeito à lei eleitoral poderá ser punido posteriormente com aplicação de multa a todos aqueles que praticaram o ato ilícito, garantindo-lhes o direito à ampla defesa.
Como já dizia o grupo Fundo de Quintal, “o show tem que continuar”.