Estado de Direito

Truque do tanque de guerra não assusta mais, mas motins policiais podem ser reais

Jair Bolsonaro volta a utilizar o mesmo malabarismo subliminar intimidatório, que repete a cada vez que está acuado

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O presidente Jair Bolsonaro (PL). Crédito: Alan Santos/PR

A troca de vários ministros do governo Bolsonaro, nesta segunda-feira (29/03), foi entendida como um ajuste para atender aos interesses do centrão, que cobrou, de forma mais efetiva, a conta pela manutenção do presidente no poder. Entretanto, a mudança no Ministério da Defesa, com a troca nos comandos das Forças Armadas, disparou o gatilho que Bolsonaro acostumou a todos brasileiros desde o início do seu governo: a ameaça de um autogolpe amparado pelos militares.

Para ajudar a estimular esse sentimento de incertezas, o ministro da Defesa exonerado, general Fernando Azevedo, emitiu nota afirmando que durante sua gestão preservou “as Forças Armadas como instituições de Estado”. Deu a entender, nesse tom, que se não fosse sua atuação à frente da pasta, as Forças Armadas poderiam ter sido cooptadas para atender aos interesses pessoais do inquilino do Planalto.

Porém, na prática, Bolsonaro volta a utilizar o mesmo malabarismo subliminar intimidatório, que repete a cada vez que está acuado. Com isso, busca demonstrar força perante seus adversários e instigar os sonhos golpistas de seus adeptos. É uma prática recorrente e que até deu certo por algum tempo. Todavia, como a estória do menino que grita lobo para chamar a atenção, as ameaças de Bolsonaro já deixaram, há algum tempo, de surtir um efeito intimidador real.

Mas, infantilmente, o presidente ainda acredita que a “mágica” pode continuar dando certo; e pensa que a culpa de não surpreender mais a plateia não é o espetáculo ser ruim, mas ter mantido os mesmos atores, que já não têm mais credibilidade. Como não poderia trocar a si mesmo, decidiu trocar a trupe. Afinal, quem sabe se caras novas, preferencialmente carrancudas, não darão um suspense renovado ao já desinteressante truque do golpe de Estado?

Na verdade, tudo não passa disso mesmo. Um embuste ilusionista para apresentar ao público o que o presidente não é nem nunca será: um líder capaz de arrastar as Forças Armadas para uma aventura golpista.

Até porque, Bolsonaro nunca foi bem quisto entre seus pares no Exército brasileiro. Era visto como um agitador e foi classificado, de forma desonrosa, pelo penúltimo presidente da ditadura, Ernesto Geisel, como um mau militar. E apesar de milhões de reais em emendas destinadas às forças militares federais nos últimos anos, quando ainda era deputado federal, Bolsonaro sempre foi considerado como esdrúxulo pelos generais, os quais, efetivamente, só apoiaram sua candidatura à Presidência da República em busca do fim do ciclo de governos petistas e do apoio para suas pautas classistas.

Não que as Forças Armadas não desejem se imiscuir na política. A história nacional já deixou bem claro, em inúmeros momentos, que essa afirmação é uma completa falácia. O exemplo mais recente dessa recorrente interferência política foi a mensagem, em uma rede social, do então Comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, em abril de 2018, envolvendo o julgamento de um habeas corpus do ex-presidente Lula. A mensagem teve um teor tão político e institucional, que envolveu, segundo o próprio Villas Bôas relatou recentemente, seu staff, os integrantes do Alto-Comando que residiam em Brasília e todos os comandantes de área do Exército brasileiro.

Entretanto, não estamos mais no século XX. E querer se envolver na política é, hoje, muito diferente de garantir belicamente um golpe de Estado. Principalmente tendo como personagem principal Jair Messias Bolsonaro. É fato que quem decide o apoio militar a um golpe de Estado são generais e não as patentes inferiores. E qual general, em sã consciência, afiançaria seu nome em uma ação para colocar como ditador um sujeito que, além de pouco confiável – que o digam o general Santos Cruz, Gustavo Bebianno e major Olímpio –, apresenta evidentes problemas cognitivos para a condução do país?

Contudo, noutro giro, podemos, sim, ter uma orquestração dessa metodologia golpista do presidente da República passando ao largo das Forças Armadas.

Muito mais perigoso para a democracia do que os salamaleques de Bolsonaro com generais que pouco – ou nada – o prezam, é a agenda bolsonarista de o manter próximo às polícias militares, enquanto seus aliados fomentam diretamente agitações nesses órgãos.

Não por menos, o presidente é figura carimbada em formaturas de policiais e, na mesma toada, não critica motins ou revoltas dos militares estaduais. Isso já aconteceu tanto na revolta da PM cearense, em 2020, a qual deixou uma população aterrorizada, quanto na ameaça de greve da polícia militar baiana, após a morte de um PM no último fim de semana, após apresentar um surto psicótico.

No primeiro caso, além de deputados bolsonaristas irem ao Ceará prestar apoio aos revoltosos, o então comandante da Força Nacional os elogiou. Já Bolsonaro minimizou a ação, que culminou com o senador Cid Gomes baleado, classificando-a como uma mera greve. Em relação à ameaça de greve na Bahia, os longa manus do presidente, dentre eles os deputados federais Bia Kicis, Carla Zambelli e Eduardo Bolsonaro, além do secretário de Comunicação Institucional do governo, Felipe Pedri, não tardaram a instigar, mesmo que indiretamente, através de mensagens e imagens publicadas em redes sociais, um motim na Polícia Militar baiana e em outras PMs.

Na retórica ideológica criada pelo bolsonarismo nesse episódio – levada a cabo pelos deputados citados e pelo secretário -, o soldado baiano teria se revoltado por haver recebido “ordens ilegais” do governador do Estado. As tais “ordens ilegais” seriam, tão somente, aquelas destinadas à manutenção das restrições de abertura do comércio e de circulação de pessoas devido à Covid19. Importante destacar que não há, até o momento, qualquer prova que o surto do soldado esteja atrelado a não querer acatar determinações legais e necessárias, advindas das autoridades públicas daquele Estado.

Como alertei em artigo publicado no portal do Estadão, em 9 de junho de 2020, sob o título “A instrumentalização das polícias é risco imediato à democracia”, as forças estaduais de segurança, notadamente as polícias militares, são as principais aliadas do bolsonarismo radical. Tanto oficiais, dentre eles inúmeros comandantes, quanto praças dessas instituições, em sua maioria, idolatram o capitão, bem diferente dos generais das Forças Armadas. Não por acaso, Olavo de Carvalho, o guru ideólogo do bolsonarismo radical, fornece, desde 2019, gratuitamente, o seu “Curso Online de Filosofia” a todos os policiais militares do país. E também, não por acaso, o ex-líder do governo na Câmara, deputado Major Vitor Hugo (GO), tentou passar, com pedido de urgência, sob o pretexto de combate à pandemia, o Projeto de Lei 1.074/2021, que daria a Bolsonaro, durante a crise sanitária, poder de assumir o controle de órgãos estaduais, dentre eles as polícias.

E, de fato, são as polícias militares que têm, hoje, o real potencial para sacudir o país e por em risco a nossa democracia. Para isso, não se faz necessário um levante de policiais armados, com a intenção precípua de tomar o poder para Bolsonaro. Como vimos na vizinha Bolívia, uma greve política orquestrada e generalizada das polícias militares teria o condão de gerar confrontos, trazer o caos e a instabilidade aos estados – lembremos das greves policiais no Espírito Santo e no Ceará. Isso propiciaria ao governo federal a possibilidade de tomar medidas duras e constitucionais, como a intervenção ou os Estados de Defesa e de Sítio. Algo que Bolsonaro já teria se demonstrado favorável para conter os governadores que o desafiam e ameaçam sua reeleição. E, a partir daí, concentrando poderes constitucionais enormes nas mãos de um aspirante a ditador, não sabemos o que poderia ocorrer.

Esse é um cenário catastrófico, porém muito mais real do aquele que apresenta um golpe clássico, com o apoio das Forças Armadas e de seus generais, os quais chafurdariam seu nome, e o das suas instituições, de forma deprimente na história. O truque de fazer aparecer tanques da cartola já não cola mais. Mas se depender do presidente e de seus aliados, as ameaças de golpe podem se tornar reais, com o incêndio surgindo dentro dos próprios estados e sob as barbas dos governadores.

Cabe, para fulminar essa conjuntura sombria, que os governadores dos estados e os ministérios públicos juntos às justiças militares, com urgência, ajam de forma preventiva e severa, tanto no aspecto disciplinar quanto no penal militar. Também cabe à Procuradoria-Geral da República apurar crimes cometidos por autoridades que possuam imunidade parlamentar, tendo em vista essa imunidade não ser destinada, tampouco dar um salvo conduto, para o cometimento de crimes contra o próprio sistema democrático que os elegeu.  Essa é a forma mais fácil e menos dolorosa de por um freio à agitação institucional que pode, como ocorreu no país vizinho, nos levar a uma derradeira instabilidade política.


O episódio 54 do podcast Sem Precedentes discute o julgamento da 2ª Turma do STF, que decidiu que Moro foi parcial em suas decisões no caso do tríplex do Guarujá contra Lula. Ouça: