Eric Hadmann Jasper

Matheus Carvalho

O filme que dá nome ao presente artigo é daqueles que servem como ótimo passatempo para um domingo à tarde, com truques de mágica e doses de ação e humor. Logo no início do filme, um dos protagonistas convida o espectador a olhar cada vez mais de perto, sob o argumento de que quanto mais próximo do objeto de análise, paradoxalmente, menos você enxergará.
Transplantando esta ideia para a política de defesa da concorrência, é possível observar que, por vezes, a análise tradicional da relação entre concorrência e regulação pode estar tão concentrada em determinados aspectos, que deixa de notar interações e incumbências que impactam tanto o escopo de atividades do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/cade">Cade</a> quanto o ambiente de negócios.
Por análise tradicional, mencionada no parágrafo anterior, se quer dizer a interação complementar entre agência e órgão de defesa da concorrência, na qual cabe ao regulador a estruturação e monitoramento do ambiente competitivo, por meio da ordenação de variáveis micro e/ou macroeconômicas, e à autoridade concorrencial cabe colaborar com este cenário, atuando nos espaços em que a ação regulatória não tiver esgotado ou abarcado as possibilidades de concorrência em um dado setor<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Esta divisão de competências, contudo, nem sempre é de fácil operacionalização<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>-<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Isso porque, apesar de ambas as autoridades públicas terem por objetivo aumentar o bem-estar social e dirimir falhas de mercado, aquelas que o regulador busca corrigir podem ser diferentes (e, por vezes, até contraditórias) com as que o órgão antitruste combate, i.e., poder de monopólio<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
De todo modo, a despeito das dificuldades inerentes a esta relação, lançamos luz a formas mais curiosas ou heterodoxas em que essa dicotomia pode ser observada e desenvolvida e que, por estarem relacionadas a atividades muito específicas, podem passar desapercebidas.
Um primeiro exemplo pode ser encontrado na <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9847.htm">Lei 9.847/99</a>, que dispõe sobre a fiscalização das atividades relativas ao abastecimento nacional de combustíveis, mais precisamente no art. 10, V, que assim determina:
Art. 10.  A penalidade de revogação de autorização para o exercício de atividade será aplicada quando a pessoa jurídica autorizada:
V – praticar, no exercício de atividade relacionada ao abastecimento nacional de combustíveis, infração da ordem econômica, reconhecida pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica – Cade ou por decisão judicial. (Vide Medida Provisória nº 2.056, de 2000) (Incluído pela Lei nº 10.202, de 2001) (grifos nossos)
Da leitura do dispositivo acima, dois são os caminhos possíveis. O primeiro é de entender que não haveria margem de interpretação quanto ao comando do legislador. Isto é, havendo uma infração à ordem econômica reconhecida pelo Cade no que tange à atividade de distribuição, a consequência imediata, pelo que se depreende do dispositivo, é a revogação da autorização para o exercício da atividade. Seria possível, portanto, questionar a abrangência da revogação (total ou limitada aos CNPJs das filiais envolvidas), mas não a incidência, pois não seria o caso de um comando discricionário (i.e., “poderá ser aplicada”), mas de um ato vinculado (“será aplicada”).
Noutro giro, é possível, também, entender que apesar do que dispõe o inciso supracitado, é necessário levar em consideração (i) uma interpretação sistemática do arcabouço normativo o qual, dentre outras questões, prevê a garantia do suprimento de derivados de petróleo<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, (ii) além de outros princípios elementares do Direito Administrativo como razoabilidade e proporcionalidade. Assim, a condenação pelo Cade não ensejaria — automaticamente — a revogação da autorização. Este, inclusive, foi o entendimento da ANP no Processo Administrativo nº 48610.001381/2017-4.
Nada obstante o entendimento da ANP, naquela ocasião, ter sido pela manutenção da autorização, em um caso futuro pode não ser<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>. Dessa forma, chama-se atenção para o peso que uma decisão do Cade, chancelada pelo legislador, pode ter em um setor regulado, na medida em que eventual revogação implicaria mudanças imensuráveis na relação entre agentes, a montante e a jusante, e destes com o consumidor final.
Outrossim, uma outra incumbência do Cade que traz desdobramentos que culminam em interações interessantes com vias regulatórias pode ser vista na Lei nº 9.456/97, que institui a Lei de Proteção de Cultivares<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>.
No Capítulo II, que trata sobre a licença compulsória<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a> da cultivar protegida, encontramos no art. 31 a seguinte pérola:
Art. 31. O requerimento de licença será dirigido ao Ministério da Agricultura e do Abastecimento e decidido pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica - CADE, criado pela Lei nº 8.884, de 11 de junho de 1994.
[...]
<ul>
<li>2º Com ou sem a manifestação de que trata o parágrafo anterior, o Ministério encaminhará o processo ao CADE, com parecer técnico do órgão competente e no prazo máximo de quinze dias, recomendando ou não a concessão da licença compulsória.</li>
<li>3º Se não houver necessidade de diligências complementares, o CADE apreciará o requerimento no prazo máximo de trinta dias.</li>
</ul>
Vê-se que a Lei além de atribuir ao Cade a responsabilidade de julgar se a licença compulsória deve ou não ser concedida ainda estabelece prazo para tanto, o que só é visto em situações muito específicas da Lei nº 12.529/11.
Inclusive, recentemente, o Cade se viu em meio a esta discussão. No processo 08700.004353/2020-55, algumas empresas alegaram que um agente detentor dos direitos de proteção sobre as cultivares de cebola estaria abusando deste direito.
Na análise, o Presidente do Cade à época ratificou a competência da autoridade, ressaltando que, até aquele momento, não havia identificado nenhum requerimento desta natureza. No voto, argumentou que a licença compulsória só se justificaria nos casos em que apurada restrição injustificada à concorrência, o que não verificou no caso. Consequentemente, a conclusão submetida ao Plenário foi no sentido de indeferir o pedido de licença compulsória.
No Tribunal, convém mencionar duas manifestações. A primeira delas é o voto do Conselheiro Sérgio Ravagnani pela homologação do Despacho da Presidência, ressaltando a necessidade de a autarquia elaborar uma Resolução prevendo um processo específico para casos dessa natureza, por se tratar de situação distinta das hipóteses previstas no Regimento Interno do Cade.
A segunda manifestação foi a da ex-Conselheira Paula Farani que vislumbrou a necessidade de aprofundamento da análise do caso e votou pela não homologação do Despacho sugerindo a adoção de algumas providências, as quais são de acesso restrito aos interessados.
Ao fim e ao cabo, os conselheiros Bandeira Maia, Luiz Hoffmann e Luis Braido votaram pela homologação do Despacho e a Conselheira Lenisa aderiu à divergência. Por maioria, houve a homologação na 165ª Sessão Ordinária de Julgamento.
De tudo quanto exposto, sem qualquer pretensão de exaurir o assunto, nota-se que há vários espaços e desdobramentos dessa relação concorrência e regulação que ainda são pouco explorados. Com o presente artigo, ao contrário de qualquer truque de mágica, convidamos o leitor a olhar a discussão da maneira mais ampla possível, a fim de desvendar espaços não explorados e que podem render excelentes frutos.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> CARVALHO, Vinícius Marques de.  Procedimento Administrativo nº 08000.009354/1997-82. In: Vinicius Marques de Carvalho (Org.). Defesa da Concorrência: estudos e votos. São Paulo: Singular, 2015.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> A título de exemplo, destacamos o conflito entre Cade e Bacen a respeito da competência para analisar Atos de Concentração envolvendo entes do Sistema Financeiro Nacional. Após resultado desfavorável no STJ, o Cade interpôs Recurso Extraordinário e, após decisão monocrática do Min. Dias Toffoli negando seguimento ao RExt, Agravo Regimental em Recurso Extraordinário foi apresentado pelo Cade, o qual se encontra pendente de julgamento, mas com parecer do MPF desfavorável aos interesses da autoridade de concorrência.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Nesse meio tempo, em 2018, foi assinado um Memorando de Entendimentos entre o Bacen e o Cade estabelecendo que a competência para análise seria concorrente, ou seja, o Ato de Concentração só será aprovado se obtiver aval das duas autarquias. Todavia, o Bacen poderá aprovar unilateralmente todas as operações nas quais haja riscos relevantes e iminentes à solidez e à estabilidade do SFN.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Ato de Concentração nº 08700.004860/2016-11. Requerentes BM&amp;FBOVESPA S.A. – Bolsa de Valores, Mercados e Futuros (“BVMF”), CETIP S.A. – Mercados Organizados, (“CETIP”). Voto da Conselheira Relatora Cristiane Alkmin Junqueira Schmidt.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Art. 8º, Lei 9478/97: A ANP terá como finalidade promover a regulação, a contratação e a fiscalização das atividades econômicas integrantes da indústria do petróleo, do gás natural e dos biocombustíveis, cabendo-lhe: (Redação dada pela Lei nº 11.097, de 2005)
I - implementar, em sua esfera de atribuições, a política nacional de petróleo, gás natural e biocombustíveis, contida na política energética nacional, nos termos do Capítulo I desta Lei, com ênfase na garantia do suprimento de derivados de petróleo, gás natural e seus derivados, e de biocombustíveis, em todo o território nacional, e na proteção dos interesses dos consumidores quanto a preço, qualidade e oferta dos produtos.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> O conflito de normas que culmina na discussão acerca da aplicação automática ou não da revogação da autorização é complexa e possui argumentos válidos qualquer que seja a bandeira defendida. Visando ao aumento da segurança jurídica, melhor saída seria uma alteração legislativa que pusesse fim à controvérsia.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> No Brasil, o órgão competente para a aplicação da Lei de Proteção de Cultivares (LPC) é o Serviço Nacional de Proteção de Cultivares – SNPC, vinculado ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Mais informações em: BRASIL. MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, PECUÁRIA E ABASTECIMENTO. Serviço Nacional de Proteção de Cultivares – SNPC. Informações aos usuários de proteção de cultivares: carta de serviços ao cidadão.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> O art. 29 da Lei conceitua licença compulsória como o ato da autoridade competente que, a requerimento de legítimo interessado, autorizar a exploração da cultivar independentemente da autorização de seu titular, por prazo de três anos prorrogável por iguais períodos, sem exclusividade e mediante remuneração na forma a ser definida em regulamento.

Cade

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JOTA

Ao olharmos para os aspectos da política de defesa da concorrência, maior o risco de não notar o aspecto geral

Truque de mestre: apontamentos sobre a interface entre regulação e concorrência

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