João Victor Archegas

Luna van Brussel Barroso

Em 7 de janeiro de 2021, o Facebook suspendeu as contas de Donald Trump do Facebook e do Instagram por tempo indeterminado, impedindo que o então presidente dos EUA continuasse postando em suas redes sociais. A decisão foi tomada em resposta aos acontecimentos do dia anterior, 6 de janeiro, quando um grupo de seus apoiadores invadiu o Capitólio em Washington para obstruir a sessão legislativa que certificaria a vitória de Joe Biden no colégio eleitoral. O episódio resultou na suspensão momentânea da sessão, na morte de cinco pessoas e em muitos feridos.
Enquanto a situação se desdobrava, Trump fez duas postagens. A primeira consistia num vídeo disponibilizado simultaneamente no Facebook e no Instagram no qual o ex-presidente disse "conhecer a dor" de seus apoiadores e que "os ama", além de reforçar a narrativa conspiratória de que as eleições de 2020 foram fraudadas. Trump também solicitou que seus apoiadores respeitassem as autoridades e voltassem para casa de forma pacífica. Algumas horas depois, enquanto a polícia finalmente retomava o controle do Congresso, Trump publicou um texto no Facebook afirmando que "é isso que acontece quando as eleições são roubadas" e que todos devem "lembrar desse dia para sempre''.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
Tanto o vídeo quanto o texto foram deletados pelo Facebook por violarem a política da empresa sobre "Indivíduos e Organizações Perigosas". Segundo seus <a href="https://www.facebook.com/communitystandards/dangerous_individuals_organizations" target="_blank" rel="noopener noreferrer">padrões da comunidade</a>, não é permitido qualquer "conteúdo que elogie, apoie [sic] ou represente eventos que o Facebook designa como ataques terroristas, eventos de ódio, execuções ou tentativas de assassinatos em massa, assassinatos em série, crimes de ódio e eventos que violam nossas políticas". Após designar a invasão do Capitólio como um desses eventos que violam suas políticas, a empresa entendeu que as palavras de Trump eram um endosso aos manifestantes envolvidos em atos de violência.
No dia 7 de janeiro, após uma reanálise das publicações de Donald Trump, de suas declarações fora da plataforma e de informações adicionais sobre a gravidade da violência no Capitólio, o Facebook estendeu o bloqueio “indefinidamente e por ao menos duas semanas, até que a transição pacífica de poder seja concluída”. O Facebook alegou que o ex-presidente estaria usando a plataforma para “incitar insurreições violentas contra um governo democraticamente eleito” e concluiu que o risco de sua permanência na plataforma era grande demais. Na sequência, no dia 21 de janeiro, a empresa optou por submeter o caso para revisão pelo <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-suprema-corte-do-facebook-e-o-direito-constitucional-para-alem-do-estado-07082019">Oversight Board</a> (Comitê de Supervisão), uma instituição independente responsável por decidir casos de moderação de conteúdo em última instância.
Em 5 de maio de 2021, após adiar a publicação em razão do alto número de comentários públicos recebidos (foram ao todo 9,666 contribuições, sendo 9,388 de usuários do Facebook nos EUA), o Board finalmente disponibilizou sua decisão e confirmou o posicionamento da empresa, afirmando que o Facebook acertou ao suspender Trump à luz dos acontecimentos do dia 6 de janeiro. O acerto da decisão foi avaliado pelo Board em duas principais dimensões: (i) se ela era compatível com as políticas de conteúdo e os valores assumidos publicamente pelo Facebook - portanto, com as regras privadas fixadas pela plataforma; e (ii) se ela era compatível com os compromissos de direitos humanos assumidos pela empresa.
Na primeira dimensão, o Board concluiu que o Facebook ponderou de forma razoável os valores envolvidos no caso concreto, agindo de forma justificada ao suspender a conta com fundamento em sua política sobre "Indivíduos e Organizações Perigosas". Segundo o Board, a remoção das postagens no dia 6 de janeiro se justificava porque, no momento da publicação, o ataque ao Capitólio ainda estava em curso e o usuário elogiou os indivíduos envolvidos no ataque (“Nós amamos vocês. Vocês são muito especiais”, “grandes patriotas” e “lembrem desse dia para sempre”). A suspensão do dia 7 de janeiro, por sua vez, se justificava porque, no dia seguinte ao ataque, a situação ainda era fluida e de alto alerta, com risco de violência e disrupção.
Na segunda dimensão, o Board observou que os Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos das Nações Unidas, dos quais o Facebook é signatário, impõem um dever de evitar a violação de direitos humanos. Nesse cenário, destacando que a plataforma se tornou um meio indispensável para o debate público (especialmente em períodos eleitorais), o Board concluiu que a empresa teria uma responsabilidade tanto de garantir a livre expressão política, quanto de evitar graves ameaças a outros direitos fundamentais. Por isso, analisou o acerto da decisão do Facebook a partir dos parâmetros internacionais para restrição à liberdade de expressão, quais sejam: (a) a restrição deve estar prevista em regras claras e acessíveis (legalidade); (b) a restrição deve ser efetivada para promover um objetivo legítimo (legitimidade); e (c) a restrição deve ser necessária e proporcional ao perigo de dano (proporcionalidade).
Quanto ao parâmetro de legalidade, embora tenha observado que a clareza da política sobre Indivíduos e Organizações Perigosas ainda deixa muito a desejar, o Board concluiu que, no caso concreto, a incidência da regra seria inequívoca: os eventos do Capitólio se enquadram perfeitamente nos eventos perigosos que as políticas do Facebook pretendem evitar e as publicações elogiavam e apoiavam os envolvidos no momento dos ataques. Quanto ao parâmetro da legitimidade, o Board concluiu que a decisão do Facebook estava alinhada com a previsão no direito internacional sobre direitos humanos que autoriza a restrição à liberdade de expressão para garantir a ordem pública e proteger determinados direitos de terceiros, incluindo os direitos à vida, segurança e participação em eleições.
Por fim, quanto ao parâmetro da proporcionalidade, o Board observou que Donald Trump, ao insistir no discurso infundado de fraude às eleições e reiterar chamados para mobilização, criou um ambiente de risco grave de violência. Ponderou, ainda, que embora as duas postagens especificamente removidas pelo Facebook contivessem pedidos para que as pessoas fossem para casa em paz, eles eram nitidamente perfunctórios e insuficientes. Por esses motivos, a decisão também foi necessária e proporcional.
É importante destacar, contudo, que embora tenha reconhecido a validade da decisão de suspensão, o Board notou que a aplicação da sanção por tempo indeterminado é inconsistente com as políticas da empresa - que preveem apenas a exclusão de conteúdos específicos, suspensão por tempo determinado ou desativação permanente da conta ou perfil. Assim, estipulou um prazo de seis meses para que o Facebook reavalie sua decisão quanto ao prazo de suspensão e estabeleça parâmetros claros e específicos para guiar a suspensão por tempo indeterminado (caso, é claro, a empresa opte por manter sua decisão inicial). Isso significa que ainda há a possibilidade de o Board voltar a se debruçar sobre a questão no futuro, revisando o novo posicionamento do Facebook a respeito do prazo da suspensão de Trump e dos eventuais novos parâmetros a serem definidos pela empresa.
<blockquote class="jota-article__eye">Esse posicionamento do Board representa um passo certeiro em direção ao fortalecimento da sua legitimidade institucional.</blockquote>
Em primeiro lugar, o Comitê buscou proteger sua independência em relação ao Facebook e chegou a afirmar que "ao aplicar uma penalidade indeterminada e sem parâmetros e na sequência encaminhar o caso para revisão do Board, o Facebook buscou se esquivar de suas responsabilidades". Ou seja, a empresa convidou o Comitê a estipular esses parâmetros em seu lugar, mas acabou tendo seu convite recusado. Em segundo lugar, ao mesmo tempo em que confirma uma decisão de alta voltagem política - evitando, assim, um possível backlash -, o Board também aproveitou o momento para expandir os limites da sua jurisdição e estipular um prazo de seis meses para que o Facebook resolva essa situação. Trata-se de um posicionamento estratégico que encontra alguns <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/os-limites-da-jurisdicao-do-facebook-oversight-board-02022021">paralelos</a> na decisão Marbury v. Madisonda Suprema Corte dos EUA.
Além de decidir o caso - decisão esta que vincula o Facebook -, o Board também tem poderes para sugerir mudanças nas políticas da empresa à luz do caso enfrentado. Retomando um ponto que foi ressaltado em casos anteriores, o Comitê reforçou seu posicionamento de que o Facebook precisa ser mais transparente e claro ao implementar decisões de moderação de conteúdo, especialmente aquelas envolvendo pessoas influentes e lideranças políticas. É notório que o Facebook é mais cuidadoso quando se trata da moderação de conteúdo destes perfis. Nesse sentido, a empresa chegou a dizer ao Board que costuma implementar um processo de "cross check" para evitar erros. Como parte de suas sugestões, o Comitê afirmou que o Facebook deve explicar aos usuários como esse processo funciona, delimitando os critérios de revisão e publicando relatórios para destacar eventuais diferenças entre o processo de "cross check" e a moderação "comum".
Outro tema que surgiu nessa parte final da decisão diz respeito à exceção criada pelo Facebook para conteúdos de cunho "noticioso" (newsworthiness). A empresa prevê que em alguns casos é possível (e desejável) manter conteúdos que infringem suas políticas no ar por entender que eles podem ser de interesse público. Essa exceção é geralmente aplicada para postagens de pessoas influentes, especialmente políticos e representantes eleitos. Muitos comentadores suspeitavam que o Facebook havia aplicado essa exceção para beneficiar Trump no passado, mas a empresa informou ao Board que isso nunca ocorreu. De qualquer maneira, o Comitê sugeriu que o Facebook seja mais transparente a respeito dos limites da exceção, justamente para evitar suspeitas e confusões dessa natureza. Ademais, o Board ressaltou que considerações sobre o cunho "noticioso" de um conteúdo não devem ser priorizadas quando a empresa precisar agir para evitar que um determinado discurso gere danos concretos.
Um terceiro ponto que merece destaque é a recomendação do Board para que o Facebook crie um protocolo para responder a situações de crise durante as quais os seus procedimentos tradicionais não são suficientes para prevenir ou evitar um dano iminente. Em outras palavras, o Comitê sugeriu a institucionalização do "<a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/estado-de-emergencia-digital-regulando-fake-news-durante-a-pandemia-08052020">estado de emergência digital</a>". A própria suspensão por tempo indeterminado de Trump é um reflexo dessa excepcionalidade. O Facebook, num momento de alta incerteza e instabilidade político-social, optou por criar uma nova forma de sanção que até então não estava prevista em suas políticas internas.
Em resumo, o Board resolveu o caso concreto e ofereceu alguns parâmetros para abordagens futuras, como (i) o reconhecimento de que, em algumas circunstâncias, pode ser necessário censurar líderes políticos quando houver risco iminente (e de fazer isso de forma ágil e rápida); e (ii) o Facebook deve resistir a pressões de governos para censurar a fala de opositores e deve ser particularmente cuidadoso na consideração do contexto político relevante, inclusive através da capacitação de seus funcionários para que melhor compreendam as nuances de contextos políticos específicos. A despeito dos méritos da decisão, a recusa do Board em elaborar diretrizes ou recomendações gerais sobre suspensões de contas nos casos em que o usuário envolvido seja um líder político significa que ainda há muitas - e importantes - questões em aberto.
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