Vivian Rocha

José Augusto Fontoura Costa

Uma petição com quase um milhão de assinaturas foi entregue no início de dezembro de 2020 à Organização Mundial do Comércio (OMC). Seu objetivo era dar apoio a uma proposta de derrogação temporária (waiver) de direitos de propriedade intelectual garantidos pelo Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Acordo TRIPs). As reuniões do Conselho Geral de Dezembro de 2020 e Março de 2021, porém, não produziram maiores efeitos a esse respeito.
Para um primeiro esclarecimento, o Acordo TRIPs prevê a possibilidade de usos de patentes sem a autorização de seu titular. É o que genericamente se conhece como licenciamento compulsório, mediante o qual a autoridade governamental nacional pode utilizar ou autorizar o uso de uma patente desde que presentes várias condições e seja realizada remuneração adequada a seu titular. Um dos aspectos centrais é que tal autorização não deve ser para a produção de bens ou serviços voltados à exportação, mas sim para suprir o mercado doméstico (TRIPs, Artigo 31, f).
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As peculiaridades dos mercados de fármacos e as vulnerabilidades de países em desenvolvimento para a contenção e tratamento do vírus HIV e da AIDS, sobretudo na África subsaariana, levaram à emenda do Acordo TRIPS mediante a agregação do Artigo 31 bis, o qual autoriza o licenciamento compulsório para a exportação de produtos farmacêuticos<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Essas exceções existem no próprio acordo e, portanto, não dependem da edição de um waiver específico, ou seja, o afastamento dos efeitos dos direitos garantidos no sistema da OMC em caráter excepcional e temporário. Conforme dispõe o Direito da OMC, qualquer país pode, dentro dos limites do Acordo TRIPs, autorizar usos de patentes sem a anuência de seu titular, inclusive sem haver tentado previamente obtê-la em caso de emergência nacional ou de uso público e não comercial (TRIPs, Artigo 31, b). No entanto, uma derrogação temporária pelo Conselho Geral da OMC (órgão decisório em nível mais elevado na OMC, acima de Conselhos e Comitês) ou, ao menos, pelo Comitê do TRIPS criaria uma situação de maior clareza e legitimidade para possibilitar eventuais licenças compulsórias no contexto do enfrentamento da COVID-19.
O waiver, ademais, não implica, por si, qualquer direito de uso não autorizado pelo titular da patente. Qualquer autorização deverá ser operacionalizada nos termos e limites do Direito interno de cada país e, sobretudo se houver exportação de tais bens, das normas vigentes nos países importadores. Desse modo, não sem antes expressar nossa opinião de que a edição do waiver implicaria benefícios para o combate à pandemia, é importante observar como o Direito brasileiro regula, especificamente, essa questão.
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<li>+JOTA: <a href="https://www.jota.info/casa-jota/casa-jota-adi-5529-tempo-patentes-brasil-23032021">Na quarta (31/3), a partir das 10h, o JOTA realiza webinar sobre a “ADI 5529 e o tempo das patentes no Brasil”. O tema está na pauta do Supremo Tribunal Federal (STF) do dia 7 de abril.</a></li>
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A Lei de Propriedade Industrial brasileira (Lei n⁰ 9.279/96 - LPI) estabelece regras sobre a licença compulsória de patentes em seus Artigos 68 a 73. Trata-se de um regime afinado com a redação original do TRIPs, que entrara em vigor internacional em 1995. Não houve, até o presente, qualquer adequação da legislação nacional incorporando o seu Artigo 31 bis.
<blockquote class="jota-article__eye">Tramitam, porém, na Câmara dos Deputados alguns projetos de lei, especialmente os PLs n⁰1.462/20, 2.848/20 e 2.858/20, todos já no contexto da pandemia da COVID-19<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. São projetos cujo debate deveria ter prosseguimento o mais breve possível, apesar da relativa lentidão de sua tramitação atual.</blockquote>
O regime brasileiro atual contém duas categorias de hipóteses de permissão do licenciamento compulsório. A primeira é de raiz econômica e abrange o abuso do direito de patente e a situação de desabastecimento do mercado interno (LPI, Artigo 68). A segunda é para os casos de emergência nacional ou interesse público, condicionada a não atendimento da necessidade pelo titular da patente (LPI, Artigo 71). Existe, portanto, previsão legal que permite às autoridades brasileiras o licenciamento compulsório ex officio caso a pandemia seja declarada emergência nacional pelo Poder Executivo.
Observa-se, portanto, inexistir obstáculo legal interno ou internacional a eventuais licenciamentos compulsórios, sobretudo em face de condições nas quais a declaração de emergência nacional é perfeitamente sustentável, senão de óbvios fundamentos. Coloca-se, não obstante, a questão da formação de juízos administrativos de oportunidade. Em outros termos, cabe à Administração da União decidir a respeito da pertinência e tempestividade de realizar o licenciamento compulsório para admitir a produção no país para bens do campo da saúde ou de outras naturezas, mas relacionados à pandemia.
O Brasil é um país que, apesar da contínua desindustrialização ao longo de ao menos duas décadas, existe um complexo industrial econômico da saúde. Tanto é assim que a produção das vacinas Coronavac e AstraZeneca pode ser levada a cabo no Instituto Butantan e na Fiocruz, respectivamente. Outros medicamentos, insumos e equipamentos de uso no setor sanitário podem, também, ser produzidos no Brasil. A importância de eventuais licenciamentos obrigatórios, porém, apenas pode resultar do diálogo entre o setor produtivo e o Executivo brasileiro.
Por fim, embora a LPI não contemple especificamente a hipótese de licenciamento para a exportação de fármacos, como existe a permissão do Artigo 31 bis do TRIPs essa se afigura internacionalmente sustentável. Do ponto de vista do Direito brasileiro, a exigência de destinação “predominantemente ao mercado interno” encontra-se no Artigo 68 da LPI e, portanto, está sistematicamente fora da hipótese do Artigo 71, exatamente a que possibilita o licenciamento compulsório. Deste modo, ao que tudo indica, a exportação de fármacos produzidos sem autorização do titular da patente poderia ocorrer sem obstáculos internos ou internacionais.
É certo que um waiver concedido pela OMC seria bem-vindo, dando maior clareza e legitimidade à situação. Não obstante, como se observou, as travas jurídicas internacionais e internas não obstam, no contexto da pandemia, eventuais licenciamentos compulsórios.
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O episódio 53 do podcast Sem Precedentes discute ações sobre a Lei de Segurança Nacional, que tem sido usada em inquéritos contra críticos de Bolsonaro. Ouça:
https://www.youtube.com/watch?v=1062owtx9o4
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Internalizado no Brasil por meio do Decreto nº 9.289, de 21 de fevereiro de 2018. Cf. <a href="http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2015-2018/2018/Decreto/D9289.htm">http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2015-2018/2018/Decreto/D9289.htm</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Para uma discussão do PL 1.462/20 e sua relação com o TRIPs, veja-se COSTA, José Augusto Fontoura; BERCOVICI, Gilberto. Licenciamento compulsório de patentes: os projetos de lei brasileiros no contexto da crise da COVID-19. Revista de Direito Intelectual, n. 2. Lisboa, 2020. P. 159-175. Mutatis mutandis os argumentos são aplicáveis aos PL 2.848/20 e 2.858/20.

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JOTA

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