Leonardo Leão Lamb

A <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14125.htm" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Lei nº 14.125/2021</a> regulamentou, entre outros assuntos, a possibilidade de aquisição de vacinas contra a Covid-19 por empresas e outras pessoas jurídicas de direito privado. Num primeiro momento, 100% das vacinas adquiridas deverão ser doadas ao Sistema Único de Saúde (SUS). Num segundo momento, finalizada a vacinação de grupos prioritários, os entes privados podem adquirir, distribuir e administrar vacinas, desde que doadas 50% das doses.
Não obstante a previsão de obrigatoriedade de doação das doses ao SUS, não houve, em contrapartida, qualquer manifestação sobre o afastamento de tributos nas operações envolvendo essas vacinas, tidas como principal ferramenta de combate à pandemia gerada pela transmissão do vírus da Covid-19.
<a href="https://conteudo.jota.info/carf-previsivel"><img class="aligncenter wp-image-292715 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/carf-previsivel.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Tomando-se como exemplo a situação das importações, a operação sujeita-se à tributação pelo Imposto de Importação (II), pelo Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), pelo Imposto sobre Comercialização de Mercadorias e Serviços incidente na importação (ICMS-Importação) e pelas Contribuições ao PIS e COFINS incidentes na importação (PIS-Importação e COFINS-Importação).
O II e ao IPI tiveram suas incidências afastadas na aquisição de vacinas por entes da Administração Pública e por empresas<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. No que toca ao ICMS-Importação, celebrou-se <a href="https://www.confaz.fazenda.gov.br/legislacao/despacho/2021/despacho-8-21" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Convênio</a>, no âmbito do CONFAZ, em 02 de março de 2020, para autorizar a concessão de isenção do ICMS-Importação nos Estados. Os Estados precisam, no entanto, adotar esse convênio para que haja efetivo afastamento do ICMS-Importação.
Já em relação a outros tributos, como o PIS-Importação e a COFINS-Importação, não houve previsão de qualquer benefício fiscal<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Diante desse cenário, cumpre-nos analisar se tal tributação é constitucional, principalmente no cenário atual de crescimento da contaminação e de casos graves de Covid-19, somados à baixa eficácia de políticas públicas e ações governamentais.
A reflexão sobre a tributação das vacinas contra o Covid-19, especialmente nesse momento de pandemia, está intrinsecamente ligada ao direito fundamental à Saúde, garantidor do acesso da população aos mecanismos de prevenção contra a doença.
Sob o ponto de vista jurídico, a saúde é direito fundamental de segunda dimensão, de conteúdo prestacional e programático, com previsão não somente na Constituição (artigos 6º e 196), mas também em tratados internacionais sobre direitos humanos, a exemplo dos parágrafos 1 e 2 do artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) afirma, ainda, ser o direito à saúde uma consequência constitucional indissociável do direito à vida (<a href="http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&amp;docID=335538" target="_blank" rel="noopener noreferrer">RE 271286 AgR</a>).
A saúde pública realiza-se principalmente por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), constituindo-se um dever do Estado, que deve, em caráter universal, formular políticas sociais e econômicas a fim de reduzir os riscos de doença.
Não obstante o Texto Constitucional, o cenário atual da saúde pública no Brasil é motivo de preocupação diária, agravado ainda mais com a pandemia. Entre outros problemas, verificam-se a falta de médicos, a falta de leitos e as filas longas para atendimentos em geral.
<blockquote class="jota-article__eye">Nesse contexto, apesar de seu caráter preventivo, a vacina surge como uma solução à redução do estado caótico de hospitais públicos e privados, haja vista a possibilidade redução das contaminações por Covid-19.</blockquote>
É em consideração a todo esse cenário que buscamos refletir sobre a constitucionalidade da tributação das vacinas contra a Covid-19, no atual momento, em todas as suas vertentes.
Nos campos da ética e da moral, parece-nos claro não ser possível defender a tributação da importação de vacinas contra a Covid-19, principalmente em consideração à necessidade de doação, num primeiro momento, de 100% das doses importadas. Entretanto, buscamos analisar se há mecanismos jurídicos para se questionar a legitimidade da incidência de tributos nessa operação.
A partir do contexto mencionado, não seria demais reconhecer, como o fez o Supremo Tribunal Federal (STF) em relação ao sistema penitenciário nacional, no julgamento da <a href="http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&amp;docID=10300665" target="_blank" rel="noopener noreferrer">ADPF nº 347-MC</a>, sob a relatoria do ministro Marco Aurélio, que a saúde pública, no Brasil, atualmente, encontra-se em um verdadeiro “estado de coisas inconstitucional”.
Os pressupostos fáticos para a caracterização do estado de coisas inconstitucional se mostram presentes, na medida em que i) há uma violação generalizada e sistêmica do direito fundamental à saúde, e ii) essa violação generalizada atinge um número elevado e indeterminado de pessoas, a ponto de se mostrar caracterizada em seu plano objetivo. Ademais, também estão presentes os pressupostos político e jurídico ao seu reconhecimento, consistentes, respectivamente, em iii) reiterada omissão do Poder Público, iv) situação que demanda a adoção de medidas estruturais voltadas à superação das violações.
Portanto, a nosso sentir, os pressupostos necessários à caracterização de um estado de coisas inconstitucional se mostram presentes. Essa situação demanda uma postura proativa do Estado, com colaboração de todos os Poderes, a fim de buscar medidas eficazes à solução do problema. É exatamente isso que justifica a desoneração da importação de vacinas por entes privados.
Deve-se buscar afastar todos os óbices que impedem a realização do direito fundamental violado, principalmente por meio de aprimoramento de políticas públicas, realocação de recursos orçamentários e revisão de arranjos institucionais.
Por desincentivar a importação de vacinas por entes privados, a tributação, ainda que importante ao financiamento do Estado, constitui, no atual momento, um óbice inconstitucional à eficácia da saúde público. Isso porque a principal medida política a ser adotada, no presente caso, deve ser a massiva vacinação da população contra a Covid-19. E, como parece evidente, o SUS não tem a capacidade técnica e econômica para garantir a vacinação em tempo razoável de todos os brasileiros.
De outro giro, constatada a generalizada violação ao direito à saúde, é possível reconhecer omissão inconstitucional por parte do Poder Público na não concessão de benefício fiscal a essas operações, como, por exemplo, a redução a zero das alíquotas do PIS-Importação e da COFINS-Importação sobre as operações envolvendo as vacinas contra Covid-19.
Não nos esquecemos que a jurisprudência reiterada do Poder Judiciário reconhece que “a concessão de isenção e outras benesses fiscais é ato discricionário, [...] fundado em juízo de conveniência e oportunidade [...]”, razão pela qual o Poder Judiciário não pode estender ou conceder o benefício sem previsão legal (STF, <a href="http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&amp;docID=261060" target="_blank" rel="noopener noreferrer">RE 344.331</a>).
Em alguns casos, entretanto, os benefícios fiscais devem ser vistos como políticas de Estado voltadas à realização de normas programáticas, como verdadeiras ações afirmativas. Reconhecida a violação generalizada do direito à saúde, por falta de políticas públicas eficazes, cumpre, sim, ao Poder Judiciário reconhecer essa omissão estatal como inconstitucional, a fim de determinar que o Poder da República responsável legisle para afastar a tributação.
É que o reconhecimento de um estado de coisas inconstitucional permite ao Poder Judiciário flexibilizar essa jurisprudência, já que se admite, nessa circunstância, a adoção de medidas judiciais proativas, flexíveis e que promovam o diálogo institucional.
Não nos parece possível que o Poder Público invoque o caráter programático do direito fundamental à saúde para se escusar da obrigação de incentivar, ao máximo, a importação de vacinas. Como já reconhecido em julgado histórico pela Suprema Corte, o fato de o direito fundamental à saúde ser programático não pode ser uma escusa para que o Poder Público sempre justifique a sua não realização (STF, RE 271286 AgR).
Desse modo, a tributação das operações com vacinas se mostra inconstitucional por ser óbice à superação de um estado de coisas inconstitucional, e, portanto, deve ser afastada. Sob outra ótica, pode-se visualizar, também, uma omissão inconstitucional, consistente na não concessão de benefício fiscal às operações que envolvam a compra de vacinas durante a pandemia do Covid-19. Por essas razões, entendemos que deve ser afastada essa tributação, ao menos até que se reconheça não mais existir uma pandemia.
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O episódio 54 do podcast Sem Precedentes discute o julgamento da 2ª Turma do STF, que decidiu que Moro foi parcial em suas decisões no caso do tríplex do Guarujá contra Lula. Ouça:
https://www.youtube.com/watch?v=Xm3qid_RRA4
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> “Compras diretas de vacinas contra a Covid-19 podem esbarrar na tributação”. Disponível em: <a href="https://www.jota.info/tributos-e-empresas/tributario/compras-diretas-de-vacinas-contra-a-covid-19-podem-esbarrar-na-tributacao-01022021">https://www.jota.info/tributos-e-empresas/tributario/compras-diretas-de-vacinas-contra-a-covid-19-podem-esbarrar-na-tributacao-01022021</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Conforme explica o Professor Heleno Torres, ao todo, o custo adicional de compra das vacinas, com a tributação, poderia chegar a mais de 30% do seu custo. (TORRES, Heleno Taveira. A tributação das vacinas no federalismo sanitário brasileiro. Disponível em: <a href="https://www.conjur.com.br/2021-fev-10/consultor-tributario-tributacao-vacinas-federalismo-sanitario-brasileiro">https://www.conjur.com.br/2021-fev-10/consultor-tributario-tributacao-vacinas-federalismo-sanitario-brasileiro</a>)

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JOTA

Proposta de reflexão à luz da teoria do Estado de coisas inconstitucional

A tributação de operações com vacinas contra a Covid-19 durante a pandemia

Tributação de operações com vacinas contra a Covid-19: proposta de reflexão à luz da teoria do Estado de coisas inconstitucional