Lívia Lucca

O Sistema Tributário Brasileiro beneficia os mais ricos em detrimento dos mais pobres e a população mais pobre brasileira é feminina, majoritariamente composta por mulheres pretas e pardas.
Estamos imersos em um oceano de regressividade tributária que, à luz de um olhar sociocultural, agrava nossa sociedade estruturalmente racista e androcêntrica. Na busca de corrigir, ou de pelo menos amenizar, tais problemas, direcionamos nossas esperanças para as instituições, que também foram arquitetadas sobre essa mesma estrutura<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Embora a lei tributária brasileira, pretensamente neutra, não faça distinções claras e explícitas entre a forma de tributar homens e mulheres, ao analisarmos os impactos econômicos da tributação, sobretudo dos impostos sobre o consumo e sobre a renda, identificamos a existência de relevantes discriminações de gênero. O tema tem sido debatido no Brasil há alguns anos e, felizmente, não é mais novidade.
A discussão a respeito da relação entre tributação e gênero é ampla. Mas aqui buscamos deliminar nosso olhar, para refletir sobre um importante viés decorrente da recente decisão do STF, que considerou inconstitucional a incidência do imposto de renda sobre os alimentos e pensões alimentícias, no julgamento da ADI nº 5422/DF.
Em resumo, o Supremo corrigiu uma evidente discriminação de gênero existente no sistema tributário brasileiro. Pois veja, pela atual legislação, a renda proveniente do recebimento de alimentos e de pensões alimentícias, está sujeita à incidência do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF). Mas, por outro lado, a lei permite àquele que paga a pensão, a total dedução do valor pago em sua declaração de imposto de renda.
Com isso em mente, quando o STF analisou os dados divulgados pela Receita Federal, com um olhar de gênero, a respeito de quem são aqueles que deduzem o valor das pensões, verificou-se que 99,9998 % são homens. Ainda, segundo dados do IBGE, em 2019, também divulgados no acórdão, nos casos de divórcio de casais heterossexuais, 66,91% das guardas de filhos menores foram designadas para as mães, enquanto apenas 4,37% couberam aos pais, pois o restante representa os casos de guarda compartilhada.
Os números confirmam o senso comum: pais pagam as pensões alimentícias dos seus filhos, que estão sobre a guarda das mães – dada a hiper responsabilização social, historicamente imposta à mulher pelo trabalho de cuidado. Logicamente, os pais são beneficiados com a possibilidade de dedução, enquanto as mães, que administram a pensão recebida pelos seus filhos, poderão ser tributadas.
Aqui cabe uma importante ressalva: a lei brasileira permite que a renda recebida pelo filho seja declarada de forma separada da renda da mãe. Dessa maneira, caso a pensão seja um valor isento de imposto de renda, não haverá tributação.
E é a partir daqui que começa a nossa a reflexão.
Na linha do julgamento do STF, ainda que, corretamente, retifique o notório prejuízo arcado pelas mulheres, no pagamento do IRPF sobre os alimentos, o problema continua. A nova jurisprudência pode implicar em espécie anômala de “bi-dedução”, pois o montante destinado ao pagamento dos alimentos não será tributado nem na renda do alimentante (o pai), em razão da permissão legal, nem na renda do alimentado ou seu responsável (filho/mãe), uma vez que é exatamente essa a novidade firmada no julgamento da ADI 5422.
Dessa maneira, a não arrecadação tributária pelo Estado será a consequência lógica dessa medida. A AGU, inclusive, estima que o déficit orçamentário anual poderá ser cerca de R$ 1.05 bilhão de reais.
Com isso, um enorme passivo de mulheres que não declaram renda e que são as principais necessitadas de investimentos em serviços públicos, não estão sendo enxergadas. Ainda mais que, como não há qualquer recorte de cor/raça ou de identidade de gênero nos dados disponibilizados pela Receita Federal, é impossível aferir se as declarantes são pretas, brancas, pardas, transexuais, pobres, ricas. É imprescindível um olhar que interseccione gênero, classe e raça nessa análise<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Apenas aproximadamente 12% das mulheres brasileiras são declarantes do imposto de renda. Onde estão os 88% de mulheres? Quem são elas? Certamente, fazem parte de um contingente desse percentual e representa as mulheres invisibilizadas que vivem na linha da pobreza.
A conscientização sobre a discriminação de gênero aqui apontada, é mais que um primeiro passo: é a metade do caminho, pois, até aqui, a marcha foi árdua. No entanto, é imprescindível lembrar que ainda não cruzamos a linha de chegada de uma intensa batalha contra a desigualdade de gênero. Ou, mais que isso, não significa dizer que estamos sequer perto da linha de chegada.
Ao comemorarmos pequenas conquistas normativas, não podemos nos esquecer de buscar e cobrar sua efetividade e seus resultados. Caso contrário, corremos o risco de mergulhar no poço do simbólico, onde sentiremos na pele a ilusória sensação de progresso rumo à isonomia, mas com poucas (ou nenhuma) transformação material, uma sensação de inércia em movimento, conforme nos ensina Marinella M. Araújo<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Devemos firmar um compromisso com a efetividade da norma e com as interseccionalidades que se conectam à questão de gênero, como a raça e a classe social. Sem esse olhar, poderemos retroalimentar uma narrativa que entrega validade em eventual produção legislativa ou jurisprudencial, mas, ao mesmo tempo, ineficácia material, ratificando o que combatemos: as hierarquias entre os gêneros e entre a pluralidade de mulheres.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Para mais informações ler “A Teoria da Encriptação do Poder” – Ricardo Sanín-Restrepo
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Para mais informações ver “A potência simbólica da tributação como instrumento de empoderamento feminino: um olhar à luz da Teoria da Encriptação do Poder”. Dissertação de mestrado elaborada por Lívia Lucca, junto ao NUJUP, defendida frente ao PPGD da PUC Minas em setembro de 2022.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Ver ARAÚJO, Marinella Machado. The Symbolic Force and the Encryption of Gender in Law:
The Brazilian Example. In: SANÍN-RESTREPO, Ricardo (ed.). Decrypting Power. Londres:
Rowman &amp; Littlefield International, 2018.

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JOTA

Não devemos nos esquecer de percorrer o restante do caminho

Tributação, gênero e pequenas conquistas normativas

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