Marina Machado Marques

O racismo estrutural afeta as condições de vida da população negra ao ditar a forma como as relações políticas, econômicas, sociais e jurídicas são constituídas. Diversos são os estudos sobre a temática desenvolvidos no Brasil, porém, seus impactos na conformação do Direito Tributário vigente têm sido pouco abordados pela academia.
Isabelle Rocha e Marciano Godoi afirmam que há pouquíssimas publicações por parte de juristas e tributaristas brasileiros a respeito dos problemas de raça na tributação. Para os autores, diante da inexistência de razões científicas ou metodológicas que justifiquem esta realidade, a omissão apontada decorre de três fatores: (i) a maioria dos professores e autores não são negros, sendo natural que dediquem mais tempo às temáticas que lhes alcance de forma mais direta; (ii) a onda conservadora que atinge o país pretere e dificulta este tipo de debate; e (iii) estudos nessa linha teriam pouco potencial de judicialização<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
<a href="https://www.jota.info/produtos/tributos?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Tributos_materias" rel="attachment wp-att-291213"><img class="size-medium wp-image-291213 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-tributos-v2.jpg" alt="" width="300" height="300" /></a>Entretanto, não devemos olvidar que no Estado Democrático de Direito o poder de tributar está aliado ao poder-dever de concretizar os comandos trazidos no bojo da Constituição, a qual estabelece como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades sociais, assim como promover o bem de todos sem preconceitos de raça.
<blockquote class="jota-article__eye">Desse modo, a tributação deveria observar os comandos de justiça previstos no texto constitucional e auxiliar na redução das desigualdades raciais. Porém, infelizmente, as evidências indicam que estamos caminhando em sentido oposto.</blockquote>
Principalmente em razão da alta mobilidade do capital e em nome da atração de investimentos, o sistema tributário brasileiro é fundado na tributação indireta, incidente sobre o consumo de bens e serviços. Este modelo é notoriamente regressivo, atingindo de forma mais severa a população de baixa renda, cujos rendimentos são destinados ao consumo de bens para a subsistência das famílias, compostas, em sua maioria, por negros<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Em outras palavras, as pessoas mais pobres destinam a totalidade de seus rendimentos ao consumo, tendo, portanto, toda sua renda alcançada pela tributação, enquanto as mais abastadas, ainda que consumam mais, proporcionalmente destinam menos valores a este fim, conseguindo, ainda, poupar e multiplicar esses montantes.
De acordo com um estudo da Oxfam Brasil<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, 10% dos mais pobres do nosso país gastam 32% da sua renda em tributos (28% indiretos), enquanto os 10% mais ricos gastam 21% (10% indiretos), diferença que penaliza proporcionalmente mais a população negra, tendo em vista que três em cada quatro brasileiros que estão na faixa dos 10% mais pobres (e que mais gastam com tributos) são negros.
Além disso, a tributação da renda recai fortemente sobre os rendimentos do trabalho, única fonte de receitas da maioria dos negros, intensificando a regressividade de nosso sistema tributário em relação a esta parcela da população.
Percebe-se, pois, que a preferência pela tributação do consumo acaba por onerar mais severamente os corpos negros. Ato contínuo, surge o questionamento: como poderíamos modificar esta realidade?
Misabel Derzi, ao examinar a regressividade geral do sistema (isto é, sem um recorte racial), sugere que os programas sociais de assistência deveriam ser quantificados levando em consideração a carga tributária suportada pelos beneficiários, funcionando como uma devolução de tributos injustamente arrecadados dos mais carentes.
Segundo a professora, a família de baixa renda, ao gastar um benefício assistencial (como o Bolsa Família), acaba devolvendo mais da metade dos valores ao Estado, instaurando um círculo vicioso em que o programa é alimentado por essas próprias famílias<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Analisando a sugestão sob o viés racial, tem-se que 75% das famílias que recebem o Bolsa Família são chefiadas por negros<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>. Diante desse dado, a medida proposta pela doutrinadora certamente minimizaria o impacto da tributação regressiva sobre a população negra, representando uma medida efetiva no combate ao racismo estrutural.
Por sua vez, o princípio da seletividade, que permite a aplicação de alíquotas mais baixas aos bens essenciais, especialmente aqueles relacionados às despesas básicas, se atrelada a critérios de renda, também pode ser um importante aliado na modificação deste cenário.
Diante do exposto, percebe-se que a regressividade do sistema tributário contribui para a perpetuação das desigualdades de raça. No entanto, será que existem outras maneiras pelas quais a tributação impacta negativamente a população negra?
Nos Estados Unidos, a pesquisadora Dorothy Brown identificou que, apesar de o sistema americano se apresentar como progressivo e neutro, os negros de todos os níveis de renda são invisíveis quando se trata da definição de políticas tributárias. Como se não bastasse, essas pessoas pagam mais impostos, pois as leis ignoram as diferenças sociais com base na raça.
Um dos exemplos apontados pela autora é que os negros americanos, apesar de poderem frequentar faculdades de elite, geralmente não acumulam riqueza suficiente para pagar as mensalidades e serem elegíveis para os incentivos fiscais para ensino superior<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
Também analisando o contexto americano, o cientista político Christopher Faricy aponta que os incentivos fiscais no país ajudam desproporcionalmente os brancos de classe média. Para o autor, enquanto as vantagens fiscais para aquisição de casa própria equivalem a um subsídio para famílias brancas, as avaliações do imposto sobre a propriedade são sistematicamente tendenciosas contra os proprietários negros<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>.
<blockquote class="jota-article__eye">Veja-se, pois, que as políticas fiscais não precisam ser explicitamente baseadas em raça para manter ou piorar as desigualdades raciais: a mera desconsideração da existência e da continuidade do racismo estrutural, acompanhada da não criação de medidas específicas para o seu combate gera esses efeitos.</blockquote>
No Brasil, a diminuição das alíquotas progressivas do imposto de renda que, curiosamente, eram maiores antes da Constituição de 1988 e a baixa tributação do patrimônio são exemplos disso, porque favorecem a pequena parcela abastada da população brasileira, predominantemente branca.
Isso demonstra inexistir uma preocupação governamental em relação ao papel da tributação na redução do racismo estrutural e das desigualdades dele oriundas, preocupação esta que deveria estar em pauta, uma vez que o tão sonhado desenvolvimento do país pressupõe uma mudança estrutural que melhore o padrão de vida e trabalho da população negra, em sua maioria destituída de direitos e renda.
A propósito, em meio a tantos projetos de reforma tributária, causa espanto o fato de que nenhum deles reflete sobre essas questões. Igualmente, é preocupante a existência de poucos estudos acadêmicos sobre o tema, haja vista que o Direito Tributário pode e deve servir como instrumento de combate ativo do racismo estrutural.
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<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> ROCHA, Isabelle Resende Alves e GODOI, Marciano Seabra de. Incorporando as questões de gênero e raça aos estudos jurídicos sobre tributação e orçamento público. In: CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza e RODRIGUES, Poliana Lino (org.). Trinta anos de Constituição e 130 anos de Lei Áurea – avanços e retrocessos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Conforme Relatório da Oxfam Brasil, cerca de 80% das pessoas negras ganham até dois salários-mínimos.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Disponível em: &lt;https://www.oxfam.org.br/um-retrato-das-desigualdades-brasileiras/adistancia-que-nos-une/&gt;.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> DERZI, Misabel de Abreu Machado. Guerra fiscal, Bolsa Família e Silêncio. Revista Jurídica da Presidência Brasília, v. 16, n. 108, fev.-mai. 2014. p. 39 a 64.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Disponível em: &lt;https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/brasil_sem_miseria/caderno_popnegra1.pdf&gt;.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> BROWN, Dorothy A. The Whiteness of Wealth: How the Tax System Impoverishes Black Americans – and How We Can Fix It. New York: Crown, 2021.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Disponível em: &lt;https://www.washingtonpost.com/news/monkey-cage/wp/2016/04/18/how-the-u-s-tax-system-disadvantages-racial-minorities/&gt;.

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JOTA

Como o sistema tributário brasileiro reforça as desigualdades de raça? 

Tributação e racismo estrutural

Como o sistema tributário brasileiro reforça as desigualdades de raça?