Pedro Marcos Nunes Barbosa

Osny da Silva Filho

O Estado tem participação decisiva na promoção da concorrência.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1"></a> Diante de um quadro de concentração excessiva de poder econômico – em última análise, de monopólio –, o Estado pode fomentar a inserção de novos agentes a fim de reconstituir a competição no mercado monopolizado. Outras vezes, entes paraestatais podem participar da concorrência em si (competição); ou, ainda, ao bem exercer seu papel de polícia, o Estado pode regular, sancionar ou ordenar como o mercado funcionará.
Fato é que o Estado dispõe de diversas ferramentas – utensílios, se quisermos – para exercer seu papel diante da concorrência. O manejo desses utensílios deve ser bem planejado: a conduta do Estado, afinal, assemelha-se à de um rinoceronte em uma loja de cristais. Pequenos movimentos do Estado produzem consequências significativas. Isso é particularmente visível quando se pensa nos impactos concorrenciais da tributação.
Walter Benjamin articulou a ideia de que novas tecnologias afetam a apreciação do estado da arte antecedente de maneira decisiva.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> No limite, essa afetação pode se transformar em destruição criativa.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> A fotografia, por exemplo, impactou o mercado da pintura; o cinema afetou o público do teatro e assim por diante. Note-se que impactar e afetar não são verbos tão violentos quanto destruir ou exterminar.
Na concorrência, é bem possível suscitar que a evolução dos telefones celulares tenha abreviado a vida útil do mercado dos pagers, tal como o transporte aeroviário intercontinental de passageiros impactou no mercado relevante dos transportes por via aquática. Se o Estado controla a tributação das telecomunicações e dos transportes, espera-se que em ambos os casos sua coerção tributante seja exercida de maneira isonômica, nos termos dos arts. 5º, caput e 151, I da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm">CRFB</a>.
A isonomia tributária também deve considerar afetações intertemporais. Se um ente federativo (a) tributa a locação de mídias audiovisuais e a oferta de sessões de reprodução cinematográfica, mas (b) tarda em exercer sua competência tributária sobre serviços de streaming; então (c) sua conduta pode prejudicar a competição entre locadoras, salas de cinema e plataformas digitais de reprodução audiovisual.
Em outras palavras, o poderio Estatal é tão influente em situações de mercado que seu uso (ou sua abstenção) deve, igualmente, considerar quem participa e quem pode participar do mercado afetado. O Estado não pode privilegiar apenas alguns concorrentes com isenções ou alíquotas zero, causando distorções e mesmo potenciais vítimas de crimes<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Dentro da ótica da concorrência, a disputa pela clientela pode causar prejuízos indesejáveis para alguns concorrentes. Essa espécie de desvantagem, no entanto, é justa, legítima e legal – ainda que seu resultado seja a insolvência do concorrente prejudicado. Tudo opera perfeitamente se os louros da conquista decorrerem da própria prestação (o mérito capitalista) do disputante, e não do empenho de meios antijurídicos.
Nos últimos anos, o STF emanou uma série de julgados sobre a interlocução sensível entre tributação e concorrência. Por exemplo: (a) impediu que a imunidade recíproca fosse objeto de apropriação por ente privado (Pleno, Voto do ministro Marco Aurélio Mello, REx 434.251/RJ, J. 19.04.2017); (b) reconheceu que o uso abusivo de técnicas de inadimplemento tributário poderia desnivelar a disputa mercantil (Pleno, ministro Roberto Barroso, RHC 163334/SC, J. 18.12.2019); e (c) recentemente, entendeu pela flexibilização da coisa julgada diante de fatos tributários contínuos (Pleno, ministro Roberto Barroso, Temas 881 e 885 da Repercussão Geral, RE 966.227/BA e RE 949.297, acórdãos no Prelo – julgados em 2023).
Em todos esses casos, o tribunal não apenas discutiu temas sensíveis – federalismo de cooperação, ilícitos tributários, segurança jurídica – mas ponderou as consequências concorrenciais de suas decisões. Nos mais recentes, até mesmo sentenças transitadas em julgado que reconheciam o direito de não recolher o tributo foram tidas como ineficazes, a partir de um determinado marco temporal. Ou seja, havendo reiteração da incidência tributária por tratos continuados, a salvaguarda da <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/coisa-julgada">coisa julgada</a> não serviria mais de escudo àquela parte vencedora na lide.
Com o STF compreendendo como constitucional determinada tese tributária, acaso a coisa julgada individual prevalecesse sobre a situação coletiva, alguns concorrentes partiriam – sempre – de um custo fixo mais baixo, face àqueles que não contavam com uma sentença a seu favor. Como se sabe, olhando-se para os fatores<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> concorrenciais, basicamente a disputa de clientes poderá ocorrer baseando-se em (a) preço (por exemplo: qual restaurante oferece o “quilo” mais barato?); ou (b) qualidade (por exemplo: qual alfaiataria oferece os melhores “cortes”?).
Especialmente diante de disputas de tipo (a), quaisquer assimetrias quanto os pontos de partida (custos fixos) poderiam engendrar uma situação desleal de captura do destinatário. Se o agente promotor do desequilíbrio for o Estado (seja a partir do desempenho do Poder Legislativo, seja através do Executivo ou do Judiciário), então, os prejuízos tendem a ser bastante piores que os derivados da atuação agressiva de concorrentes. Factualmente, se não se espera neutralidade dos Poderes Constituídos, a impessoalidade/isonomia material é mandamento constitucional regente das relações assimétricas.
Dessa forma, enxerga-se nos recentes (ainda que) polêmicos julgados do STF um alento – tal como bem narrado no <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/coisa-julgada-e-o-dever-fundamental-de-pagar-tributos-22022023">texto dos advogados da União Messias e Alvim</a>, aqui no JOTA – para todos aqueles que observam que os fenômenos da tributação e da concorrência têm pontos de delicado contato. A perpetuação de privilégios individuais com potencial de distorção seria constitucionalmente mais danosa do que a certeza da iniquidade.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Sobre a atuação do Estado vide: GRAU, Eros Roberto.  A Ordem Econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Ed. Malheiros, 2010, p. 91.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> BENJAMIN, Walter Benedix Schönflies. A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica. In BENJAMIN, Walter Benedix Schönflies. DETLEV, Schöttker. SUSAN, Buck-Morss MIRIAM, Hasen. Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção. Tradução Marijane Lisboa e Vera Ribeiro; organização Tadeu Capistrano. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012, p. 11.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> SCHUMPETER, Joseph Alois. Capitalismo, Socialismo e Democracia. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961, p. 106.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> SILVA, Amanda Albano Souza da. Tributação, Concorrência e Crime. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2023, no prelo.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Permita-se menção ao BARBOSA, Pedro Marcos Nunes. Curso de Concorrência Desleal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022, p. 85.

Calculadora; Tributação

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JOTA

Perpetuação de privilégios individuais com potencial de distorção seria mais danosa do que a certeza da iniquidade

Tributação e concorrência

Perpetuação de privilégios individuais com potencial de distorção seria constitucionalmente mais danosa do que a certeza da iniquidade