Júlio M. de Oliveira

Gabriela P. Gonçalves

No início deste ano, o Secretário de Fazenda do Estado de São Paulo publicou o Decreto nº 61.791/2016, determinando que não será exigido ICMS em relação às operações com software disponibilizados por meio de transferência eletrônica de dados (download ou streaming), até que fique definido o local de ocorrência do fato gerador para determinação do estabelecimento responsável pelo pagamento do imposto.
Com a medida, o Secretário reconheceu que a legislação do ICMS não possui os elementos necessários para viabilizar a incidência do imposto sobre as transações com software. Como exaltado pelo Prof. Eurico Marcos Diniz de Santi em <a href="https://www.jota.info/voz-da-legalidade-digital-no-icms">artigo </a>publicado no JOTA <a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, trata-se de um grande exemplo de respeito aos procedimentos da legalidade.
Em tempos em que a adoção de uma postura arrecadatória agressiva por parte dos órgãos fazendários em detrimento da legalidade se tornou usual, a decisão tomada pelo Governo paulista é realmente louvável. Contudo, temos para nós que a discussão acerca da ocorrência do fato gerador do ICMS na operação de transferência eletrônica de software não teria lugar por uma questão que lhe é anterior: as transações com software não estão dentro do campo de incidência do ICMS.
No <a href="https://www.jota.info/tributacao-do-software-pelo-icms-mercadoria-servico-ou-cessao-de-direitos">primeiro artigo </a>elaborado sobre o tema <a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, opinamos no sentido de que o software não poderia ser tributado pelo ICMS, pois sua comercialização via contrato de licença de uso (que decorre de imposição legal) impediria a concretização de um dos elementos da hipótese de incidência tributária prevista na Lei Complementar nº 87/96: a falta de transferência da propriedade. E como se isso não fosse suficiente para excluir as transações com software do campo de incidência do ICMS, existe um outro elemento componente do critério material da hipótese de incidência deste imposto que não é verificado em tais transações, qual seja, a existência de mercadoria.
De acordo com a doutrina tradicional, o conceito de mercadoria é definido como um bem tangível objeto de mercancia. Na medida em que a tangibilidade do bem é requisito para que ele seja considerado uma mercadoria, não podemos dizer que o software se reveste desta condição.
Como mencionamos no primeiro artigo tratando deste assunto, o software constitui trabalho intelectual protegido pelo regime da propriedade intelectual conferido às obras literárias, nos moldes da Lei nº 9.609/98 (“Lei do Software”), e cuja aquisição se dá por meio de um contrato de licença de direito de uso.
Nesta linha, autores como Edvaldo Brito<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, Ives Gandra Martins<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, Roque Antônio Carrazza<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> sustentam que o software, por ser uma atividade intelectual em que é exercido direito autoral, não está inserido no campo de incidência do ICMS.
Ao pesquisarmos trabalhos mais recentes sobre o tema, encontramos uma outra linha de interpretação, segundo a qual o conceito atual de mercadoria compreende bens tangíveis e intangíveis. Porém, ainda que adotemos este conceito, a incidência do ICMS sobre software esbarra no fato de que a maioria das transações com o programa não implicam a transferência de sua titularidade, mas tão somente a cessão de direito de seu uso, como dito anteriormente.
Ou seja, do ponto de vista constitucional, por qualquer ângulo que se analise a questão, verificamos que a incidência de ICMS sobre as transações com software em que não há a transferência do código fonte não encontra amparo na competência atribuída pelo artigo 155, II, da Constituição Federal de 1988.
Aliás, não podemos deixar de mencionar que da mesma forma que a incidência do ICMS sobre as transações com software é inconstitucional, a incidência de ISS sobre o seu licenciamento ou cessão de uso também o é. Isto, porque apesar do licenciamento ou cessão de uso de programas constar da lista de serviços anexa à Lei Complementar nº 116/03, entendemos que tal atividade não se enquadra no conceito constitucional de serviço construído a partir das definições do Direito Civil, qual seja “o esforço de pessoas desenvolvido em favor de outrem, com conteúdo econômico, sob regime de direito privado, em caráter negocial, tendente a produzir uma utilidade material ou imaterial”<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
Em verdade, quando tratamos de licenciamento ou cessão de uso de software, entendemos que estamos mais próximos de uma locação de um bem móvel (obrigação de dar) do que de uma prestação de serviço propriamente dita, dada a ausência do “fazer”.
É importante frisar que não pretendemos aqui defender que o setor de tecnologia, especialmente no que diz respeito ao software, deve ficar isento de qualquer tipo de tributação de consumo. Afinal, estamos falando de um setor responsável pela movimentação de bilhões de reais na economia <a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>. Contudo, somos da opinião de que a tributação deve se dar dentro do contexto da materialidade definida no âmbito constitucional.
No primeiro artigo elaborado sobre o tema, concluímos com uma provocação: “até que ponto o Direito Tributário estaria apto a absorver sem modificações profundas este novo cenário de trocas econômicas trazidos com o desenvolvimento vertiginoso da tecnologia”? Respondemos. Ao tentarem inserir as transações com software dentro do campo de incidência dos tributos sobre consumo atualmente existentes, ICMS e ISS, Estados e Municípios criaram duas incidências inconstitucionais e um conflito vertical de competência. Assim, nos parece mais do que claro que nosso sistema tributário grita por uma reforma!
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Voz da legalidade digital no ICMS, Jota. Disponível em https://www.jota.info/voz-da-legalidade-digital-no-icms . Acesso em 14/01/2016.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Oliveira, Júlio M. de. Tributação do Software pelo ICMS (Mercadoria, Serviço ou Cessão de direitos), Jota, disponível em https://www.jota.info/tributacao-do-software-pelo-icms-mercadoria-servico-ou-cessao-de-direitos. Acesso em 14/01/2016
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Software: ICMS, ISS ou imunidade tributária? Revista Dialética de Direito Tributário, n. 5, fev., 1996, p. 19-28
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> O licenciamento e o sub-licenciamento de programas de software não se confundem com circulação de mercadorias – impossibilidade de incidirem sobre as respectivas operações. ICMS. Revista de Imposto de Renda, n. 270, jan., São Paulo: CERFIR, 1990, p. 24.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Livro eletrônico – imunidade tributária – exegese do art. 150, VI, d, da Constituição. In MACHADO, Hugo de Brito (coord.) Imunidade tributária do livro eletrônico. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 254-272
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> BARRETO, Aires Fernandino. ISS na Constituição e na Lei. São Paulo: Dialética, 2003, p. 62
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Segundo dados divulgados no site da Brasscom, o mercado brasileiro de TIC (incluindo TI, Telecom e Tecnologia de Comunicação) movimentou R$ 498 bilhões em 2014.

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JOTA

Ao tentarem tributar as transações com software, Estados e Municípios criaram duas incidências inconstitucionais e um conflito vertical de competência

Tributação do Software pelo ICMS (Mercadoria, Serviço ou Cessão de direitos) - Continuação

Ao tentarem tributar as transações com software, Estados e Municípios criaram duas incidências inconstitucionais e um conflito vertical de competência