Júlio M. de Oliveira

Em setembro de 2015, o Estado de São Paulo alterou o regime de tributação do software pelo ICMS aplicável a partir de 2016, por meio da revogação do Decreto 51.619/07, que previa uma base de cálculo específica para as operações com programas de computador. A alteração implicará a majoração significativa da carga tributária incidente sobre a comercialização de software no Estado.
De acordo com o artigo 1º do Decreto 51.619/07, a base de cálculo para as operações com programas de computador, personalizados ou não, corresponde ao dobro do valor de seu suporte físico. Este dispositivo, além de beneficiar o setor de tecnologia com uma carga tributária bastante baixa, condicionava a incidência do ICMS à existência de um suporte físico. Desta forma, operações como as realizadas via download não eram atingidas pela incidência do imposto, dada a inexistência de base de cálculo.
Com a revogação desta regra, a base de cálculo do ICMS incidente sobre operações com software no Estado de São Paulo passará a ser o valor total da operação, acrescido de quaisquer outros valores cobrado pelo remetente do destinatário, conforme determina a regra geral prevista no artigo 24 da Lei nº 6.374/89, que instituiu o Estado de São Paulo.
Desta forma, na comercialização de software contido em suporte físico, comporão a base de cálculo do ICMS o valor do software, bem como o valor do suporte físico. Já na hipótese de software comercializado via download, será o valor do software a base de cálculo do imposto. Sobre a base de cálculo seria aplicada a alíquota geral de 18%.
Segundo as justificativas do Secretário de Fazenda do Estado constantes do Ofício GS nº 771/2015, a revogação teria por objetivo “adequar, a partir de 1º de janeiro de 2016, a tributação do ICMS incidente nas referidas operações à adotada em outras Unidades Federadas”.
Independentemente da motivação do ato, a majoração da carga tributária incidente sobre comercialização de softwares no Estado foi recebida pelo setor de tecnologia com grande espanto dado o impacto que ela que terá sob os negócios realizados a partir do ano que vem, o curto espaço de tempo que as empresas teriam para se reorganizar considerando esta nova carga tributária e a incerteza sobre quais operações seriam afetadas pela medida.
No início deste mês de dezembro, o Coordenador da Coordenadoria da Administração Tributária (CAT), Luciano Garcia Miguel, informou, em anúncio não oficial realizado em um evento promovido pela FGV Direito SP, que o Estado estaria negociando perante o CONFAZ uma redução de base de cálculo de forma que a carga tributária resultasse na aplicação de uma alíquota de 5% sobre o valor das operações.
Na oportunidade, o Coordenador da CAT também comentou que as operações com software realizadas via download não seriam objeto de incidência do ICMS no ano que vem, uma vez que a Fazenda ainda estaria estudando se seriam necessárias alterações na legislação que rege o ICMS para viabilizar a cobrança. Para assegurar os contribuintes que esta seria a postura adotada pela Fazenda do Estado, o Coordenador da CAT mencionou que até o fim do ano editaria um ato oficial consignando este posicionamento.
Muito embora este pronunciamento tenha denotado uma certa preocupação da Fazenda com a correta aplicação da legislação, a decisão tomada pelo Estado causou grandes discussões, dentre elas, a caracterização da comercialização do software como operação de circulação de mercadoria, assunto que será explorado com maior profundidade a seguir.
Em linhas gerais, o software pode ser entendido como um conjunto de informações e procedimentos que permite o processamento de dados no computador e comandam o seu funcionamento, segundo os objetivos do usuário. Por tratar-se de uma expressão criativa do trabalho intelectual e pessoal de quem o prepara<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, o software é um bem intangível, que pode ou não se apresentar por meio de suporte físico.
Segundo a Lei nº 9.609/98 (“Lei do Software”), ao software é garantido o regime de proteção da propriedade intelectual conferido às obras literárias e sua aquisição deve se dar por meio de um contrato de licença de direito de uso.
Assim, salvo na hipótese em que há a transferência do código fonte, o adquirente, ao “comprar” um software, não se torna proprietário da obra. Em verdade, ele recebe uma licença de direito uso, por meio da qual, o titular dos direitos autorais lhe garante a autorização de uso do programa, conservando a propriedade intelectual em seu patrimônio.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
Neste ponto, a questão que se coloca é: configuraria a aquisição do software via contrato de licença de direito de uso uma operação de circulação de mercadoria sujeito à incidência do ICMS? Para responder à questão, é necessária uma breve digressão para identificação da hipótese de incidência do tributo.
A Constituição Federal, ao atribuir aos Estados e ao Distrito federal a competência para instituir imposto sobre operações de circulação de mercadorias, não estabeleceu uma definição para o conceito de mercadorias, mas fixou que somente as operações que têm a circulação de mercadorias por objeto poderiam sujeitar-se à incidência do imposto.
Considerando que a análise de todos os elementos que compõem a hipótese de incidência do ICMS (“operação”, “circulação” e “mercadoria”) demandaria um aprofundamento que foge ao escopo deste artigo, partiremos da premissa que mercadoria é um bem móvel que se submete à mercancia e que não é qualquer operação de circulação que configura a hipótese de incidência do ICMS, mas tão somente a operação que resulte na transferência da titularidade sobre mercadorias (não apenas em sua movimentação física)<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Desta forma, podemos dizer que caracteriza hipótese de incidência do ICMS a operação jurídica que, praticada por comerciante, industrial ou produtor, acarrete circulação de mercadoria, isto é, a transmissão de sua titularidade.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
Seguindo esta linha de raciocínio, não nos parece que as operações com softwares configuram hipótese de incidência do ICMS, dada a ausência de um elemento básico para caracterização desta, qual seja, a transmissão da titularidade do software ao adquirente.
Como já mencionado, a rigor, a comercialização dos softwares não implica, juridicamente falando, a transferência da propriedade do bem imaterial, mas, sim, o licenciamento do uso do bem intelectual pelo detentor dos direitos a ela relativos.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> O que se torna objeto de compra e venda, ocasionalmente, é o suporte físico no qual o software está materializado, mas a obra consistente no programa, permanece sob o domínio de seu desenvolvedor.
Com efeito, apenas o suporte físico poderia ser tributado pelo ICMS, mas não a licença de uso do software (seja ele de prateleira ou não).
A posição da jurisprudência, contudo, é outra.
Ao se manifestar nos autos do Recurso Extraordinário (RE) nº 176.626/SP<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a> e RE nº 199.464/SP<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>, o Supremo Tribunal Federal (STF) firmou o entendimento de que os softwares de prateleira, por serem produzidos e comercializados em larga escala, apresentariam a natureza de uma mercadoria. Nestes casos, a produção em massa para comercialização e a revenda de exemplares do corpus mechanicum da obra intelectual que nele se materializa não caracterizam licenciamento ou cessão de direitos de uso da obra, mas genuínas operações de circulação de mercadorias, sujeitas ao ICMS.
Em outra oportunidade, quando do julgamento da Medida Cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 1.945/MT<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>, o STF pronunciou-se sobre os dispositivos da lei estadual mato-grossense n.º 7.098/98 (art. 2º, inciso VI, e art. 6º, § 6º) que estendiam a cobrança do ICMS sobre softwares sem suporte físico, ou seja, no caso de download dos programas. Nesta ocasião, o Tribunal entendeu, por maioria de votos, ser possível a incidência de ICMS sobre softwares transferidos eletronicamente, pela via do download, sob o fundamento de que a inexistência de bem corpóreo ou mercadoria em sentido estrito seria irrelevante para a incidência do tributo.
Com relação a este caso específico, cabe destacar que o julgamento da ação, ainda não foi concluído, tendo somente sido apreciado o pedido de medida cautelar. Dos Ministros que fizeram parte do julgamento da cautelar e ainda permanecem no STF, três<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a> votaram pela não incidência do ICMS nas transferências eletrônicas de software e dois<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a> se manifestaram a favor.
Considerando que o Tribunal, com a nova composição, ainda não se manifestou sobre a matéria, não se pode descartar a possibilidade do reconhecimento de que as transações com software não seriam tributadas pelo ICMS dada a falta de transferência de titularidade. Os autos estão conclusos com a Ministra Carmen Lúcia, nova relatora designada para o processo, desde o dia 14/05/2012.
Diante do exposto, podemos concluir que apesar de o enquadramento da comercialização de softwares como hipótese de incidência tributária do ICMS encontrar fortes restrições, em razão do negócio jurídico por meio do qual é transacionado – a licença de uso, o posicionamento acatado pelo STF no passado contraria esta ideia. A análise da matéria deverá agora ser retomada sob a perspectiva das operações realizadas via download e ganha grande relevância econômica dada a alteração da base de cálculo do ICMS promovida pelo Estado de São Paulo.
De qualquer forma, cabe registrar que a o enquadramento jurídico do software nos tempos atuais acaba por se tornar uma atividade empírica, dado os inúmeros modelos de negócios e tipos diferentes de softwares (que fogem à clássica divisão entre os standards e os personalizados) surgidos nos últimos anos.
A questão que fica é até que ponto o Direito Tributário estaria apto a absorver sem modificações profundas este novo cenário de trocas econômicas trazidos com o desenvolvimento vertiginoso da tecnologia. Afora a questão da inexistência de circulação econômica, já opinamos no sentido de que o software não é mercadoria e também não se caracteriza como prestação se serviço, mas estes pontos merecem desenvolvimento em ulterior artigo.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Gomes, Orlando. “A proteção dos programas de computador”, in A proteção jurídica do ‘software’, 1ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1985, p. 2.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito civil, volume 4: direito das coisas, direito autoral. 4. Ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 413.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Nesse sentido, citamos a Sumula 166 do Superior Tribunal de Justiça, na qual consolidou-se o entendimento de que simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte não constitui fato gerador do ICMS e a manifestação do Supremo Tribunal Federal quando do julgamento do Recurso Extraordinário nº 540829/SP (Rel. Min, Gilmar Mendes, Plenário, DJ 18/11/2014), no sentido de que a operação de arrendamento mercantil internacional não configuraria fato gerador do imposto, dada a ausência de transferência de titularidade.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Carraza, Roque, ICMS, 14ª edição, São Paulo, Malheiros Editores, 2009, p. 42.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito civil, volume 4: direito das coisas, direito autoral. 4. Ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 413.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 1ª Turma, DJ 11/12/98.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Rel. Min. Ilmar Galvão, 1ª Turma, DJ 30/04/99.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Rel. Min. Octavio Gallotti, Plenário, DJ 11/03/11.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> São eles: Min. Ricardo Lewandowsky, Marco Aurélio e Celso de Mello
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> São eles: Min. Gilmar Mendes, Dias Toffoli.

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JOTA

Falta nas operações a transmissão da titularidade do programa de computador ao adquirente

Tributação do Software pelo ICMS (Mercadoria, Serviço ou Cessão de direitos)

Falta nas operações a transmissão da titularidade do programa de computador ao adquirente