Doris de Miranda Coutinho

A adoção do regime federalista, cujo propósito crucial foi o de promover a descentralização de competências político-administrativas e a repartição de recursos entre os entes visando a consecução dos objetivos fundamentais do Estado, nunca esteve livre de impasses e dificuldades sobre a escala de poder e os níveis de controle conferidos às diferentes esferas federativas.
No campo do controle público financeiro, pretendeu-se, com o federalismo, focalizar a atividade fiscalizadora, circunscrevendo-a aos recursos pertencentes a cada esfera, de modo a aprimorar o rastreamento e monitoramento do uso do patrimônio econômico da União, dos Estados e dos Municípios (no caso brasileiro), pelos respectivos organismos de controle.
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Com fulcro nessas premissas é que foram criadas instâncias específicas e autônomas voltadas ao controle externo orçamentário, contábil, financeiro, patrimonial e operacional da Administração Pública: os Tribunais de Contas, da União, dos Estados, dos Municípios e Municipais, aos quais outorgou-se a atribuição de velar pela correta e boa aplicação dos recursos atrelados ao ente ao qual estão vinculados.
O escalonamento das Cortes de Contas, destarte, encontra justificativa não apenas de ordem pragmática, no intento de aperfeiçoar o exercício da vigilância pública e do accoutanbility horizontal, mas, também, de ordem estrutural, pois condizente com a forma de Estado adotada pela República brasileira, a federativa.
Esse arquétipo, contudo, tende a ruir com a aprovação das proposições legislativas (todas em trâmite) que buscam alçar o Tribunal de Contas da União (TCU) à condição de Tribunal de Contas da Nação, convertendo-o em instância de superposição em relação a todos os demais órgãos de contas da federação.
É que o se depreende da PEC 188/2019, apelidada de PEC do Pacto Federativo, que integra o conjunto de propostas que consubstanciam o “Plano Mais Brasil”, e cujo art. 2º propõe acrescentar o inciso XII e os parágrafos 5º e 6º ao art. 71, da CRFB/88, conferindo ao TCU a competência para consolidar a interpretação das leis complementares sobre finanças públicas a que se referem os artigos 163, 165, §9º e 169 da Carta Política, por meio de orientações normativas com efeito vinculante em relação aos Tribunais de Contas dos Estados, do DF e dos Municípios que, se contrariadas ou indevidamente aplicadas, em decisão tomada por estas Cortes locais, renderão ensejo à propositura de reclamação, direcionada ao TCU, que poderá anular a decisão reclamada e fixar prazo para que outra seja proferida. Ainda, em caso de descumprimento do prazo assinalado, o TCU avocará a decisão, emitindo juízo sobre prestações e/ou tomadas de contas oriundas de outros patamares federativos.
Mais recentemente, o Projeto de Lei nº 4.253/2020 (substitutivo da Câmara dos Deputados ao Projeto de Lei do Senado nº 559, de 2013), que disciplina a nova lei de licitações e contratos administrativos, e encontra-se em fase derradeira de tramitação legislativa, estabelece em seu art. 172 que os órgãos de controle deverão orientar-se pelos enunciados das súmulas do TCU relativos à aplicação daquele diploma, de modo a garantir uniformidade de entendimentos e a propiciar segurança jurídica aos interessados, sendo que a decisão que não acompanhar aludida orientação, deverá apresentar motivos relevantes, devidamente justificados.
Referidas proposições, embora impulsionadas por motivações compreensíveis, concernentes a falhas na atuação de vários Tribunais de Contas locais na contenção das práticas de contabilidade criativa que ajudaram a deflagrar o cenário de crise fiscal atual, vulneram o princípio federativo, pois ignoram a estratificação constitucional do controle financeiro, o qual responde à origem dos recursos (federal, estadual e municipal), e não à mera conveniência política. Olvida, igualmente, que a autonomia financeira dos Estados-membros da federação é associada à configuração institucional do seu sistema de controle externo.
<blockquote class="jota-article__eye">Com isso, fere-se o disposto no art. 60, §4º, inciso II, da CF/88, que elege como cláusula pétrea o princípio federativo e, nesta medida, inibe propostas que prejudiquem o núcleo essencial desse direito, tal como o fazem as que foram acima mencionadas.</blockquote>
A este propósito, o Supremo Tribunal Federal, em 09/02/2021, emitiu uma sinalização contundente quanto a inconstitucionalidade da pretensão de sobrepor o TCU às demais instâncias de controle. Ao julgar a ACO 2.393, a Corte Suprema, conforme voto condutor do Ministro Marco Aurélio, assentou que a supervisão dos limites de gastos com pessoal, em caso de obediência aos pressupostos para obtenção de empréstimo pelo Estado com garantia da União, é uma atribuição exclusiva dos Tribunais de Contas Estaduais, aos quais compete exercer o controle externo dos Poderes e do Ministério Público do ente federado, nos termos do art. 59, §2º, da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Nestes autos apreciados pelo STF, o Estado do Paraná pretendia contrair operação de crédito, mediante garantia prestada pela União. A concessão da garantia, contudo, depende de requerimento instruído com documentos que comprovem a situação fiscal do ente requerente, dentre eles, a observância do limite de gastos com pessoal, previsto no art. 20, da LRF. Na documentação associada ao pedido de concessão da garantia encaminhada à Secretaria do Tesouro Nacional, o Estado colecionou apuração realizada pelo Tribunal de Contas paranaense certificando o cumprimento do teto de gastos. A União, todavia, rejeitou a garantia, sob o argumento de que caberia ao Ministério da Fazenda verificar a regularidade dos pressupostos. O STF julgou procedente o pedido feito pelo Estado do Paraná, afastando o aduzido óbice à concessão da garantia pela União em empréstimo contratado pelo Estado com instituição financeira nacional ou internacional. Do voto condutor, vale transcrever o seguinte excerto, elucidativo do argumento aqui defendido:
No modelo federativo, tem-se autonomia política dos Estados e Municípios, a revelar independência financeira, orçamentária, legislativa e administrativa. Permitir que a União se sobreponha à análise dos órgãos de controle quanto ao cumprimento das regras relativas às despesas públicas ameaça a estabilidade do modelo de organização do Estado brasileiro e abre campo à intervenção federal não autorizada pelo artigo 34 da Lei Maior. 
Caso aprovados, portanto, os novos dispositivos que propulsionam a Corte de Contas da União à posição de Tribunal de Contas da Nação, (os quais, repriso, infringem cláusula pétrea, obstando-lhes até mesmo o prosseguimento das propostas), certamente serão objeto de exame de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal.
Certo é que, a flagrante necessidade de aprimoramento do controle exercido pelas Cortes de Contas locais não avaliza a conclusão de que o caminho inexorável seja o rompimento do pacto federativo.
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O episódio 54 do podcast Sem Precedentes discute o julgamento da 2ª Turma do STF, que decidiu que Moro foi parcial em suas decisões no caso do tríplex do Guarujá contra Lula. Ouça:
https://www.youtube.com/watch?v=Xm3qid_RRA4
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JOTA

Violam cláusula pétrea projetos que elevam TCU à instância de sobreposição aos tribunais estaduais e municipais

Tribunal de Contas da Nação é inconstitucional

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