Lukas Ruthes Gonçalves

Será que a singularidade autoral finalmente chegou? Um dos tópicos mais discutidos de 2019 na área de Propriedade Intelectual, a autoria de aplicações de Inteligência Artificial, continua no ano de 2020 de forma surpreendente.
Em um recente processo judicial envolvendo a Tencent e a Shanghai Yingxun Technology Company, essa foi acusada de copiar um dos artigos de autoria da Dreamwriter, um programa de IA desenvolvido pela gigante chinesa, capaz de escrever rascunhos simples de tópicos como clima, esportes e mercados de ações. Por causa disso, um tribunal em Shenzhen decidiu que o trabalho gerado pela aplicação de IA qualificou-se para a proteção de direitos autorais e ordenou que a Shangai Yingxun pagasse 1.500 yuan em danos pela reprodução não autorizada do texto.
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O tribunal decidiu que o artigo copiado, um texto sobre a bolsa de valores de Shangai, se expressou de uma forma que estava de acordo com as exigências de um trabalho escrito sobre o tema e que seu conteúdo continha originalidade e "mostrou a seleção, análise e julgamento de informações e dados relevantes sobre a bolsa de valores", de acordo com o English China News Service (ECNS)<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. No entanto, Wang Guohua, advogado entrevistado pelo ECNS afirmou:
De acordo com a nossa lei de direitos autorais, bem como algumas convenções internacionais, a definição de uma obra primeiramente enfatiza que a criação é original, reprodutível e produzida com base na atividade intelectual humana. Portanto, a inteligência humana é o núcleo e a premissa. 
Até o momento de publicação dessa reportagem não havia informações sobre se a Shanghai Yingxun iria recorrer da decisão, mas sendo uma das primeiras decisões sobre autoria de aplicações de IA com esse teor, o debate certamente deve continuar.
<blockquote class="jota-article__eye">A autoria humana sempre foi uma pedra angular do sistema de direitos autorais, embora não explicitamente.</blockquote>
Quanto à autoria, o artigo 15 da Convenção de Berna de 1886 estabelece que, para um autor ser protegido pela convenção, basta que seu nome apareça na obra da maneira usual. A exigência de que o autor seja humano foi considerada óbvia demais para ser colocada na Convenção, pois foi considerado à época (e em revisões posteriores) que somente um autor poderia mostrar criatividade. O autor americano Sam Ricketson<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> comenta sobre o assunto:
Apesar da omissão de uma definição de "autor", o meu próprio ponto de vista é que existia, no entanto, um acordo básico entre os Estados contratantes quanto ao significado do termo e, por isso, considerou-se desnecessário defini-lo. Há provas textuais consideráveis que sustentam este ponto de vista nas disposições das leis nacionais da época e nas de convenções bilaterais anteriores, e estas fontes foram fortemente utilizadas na elaboração da lista inclusiva de obras protegidas contida no artigo 4º da nova Convenção. Durante as primeiras conferências diplomáticas, houve muito pouco debate sobre o assunto, então parece lógico interpretar "autores" e "autoria", para efeitos da Convenção, como pertencendo às pessoas que criaram essas obras.
Com as novas modalidades de produção de conteúdo surgidas nos últimos anos esse definitivamente não é o caso hoje em dia. As aplicações de IA têm frequentemente provado que podem produzir música, pinturas e até filmes que atendam ao público humano.
<blockquote class="jota-article__eye">Será que não estaria na hora de ir mais fundo no questionamento e perguntar não se os robôs poderiam ser autores ou não, mas sim se o conceito de autoria deveria ser mudado como um todo?</blockquote>
No último ano o Ministério da Cidadania abriu extensa consulta pública sobre a reforma da Lei de Direitos Autorais, buscando subsídios para a redação de um novo texto legal sobre o assunto<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. No mesmo ano houve a apresentação do PL 2370/2019, de autoria da deputada Jandira Feghali, também buscando alterar, atualizar e consolidar a atual lei de direitos autorais (número 9.610/98)<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Esses são apenas dois exemplos de projetos para a reforma da lei de direitos autorais brasileira, a qual data de 1998 e sequer prevê em seu texto a palavra “internet”, talvez o principal veículo de disseminação de obras da atualidade. É hora de propor uma profunda revisão dessa lei, uma que leve em consideração as novas modalidades de autoria e as realidades da distribuição de conteúdo da Sociedade Informacional.
Situações como a da corte de Shenzhen tendem somente a aumentar e se espalhar pelo mundo, à medida que o uso de tecnologias da informação para a criação de textos e outros tipos de obra se torne mais comum. Ter uma lei atualizada se provará essencial para melhor lidar com situações do tipo.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> http://www.ecns.cn/news/2020-01-09/detail-ifzsqcrm6562963.shtml
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Sam Ricketson, The 1992 Horace S. Manges Lecture People or Machines: The Bern Convention and the Changing Concept of Authorship, 16 Colum.-VLA J.L. &amp; Arts 1  (1991),  p. 8
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> http://cultura.gov.br/ministerio-da-cidadania-abre-consulta-publica-sobre-reforma-da-lei-de-direitos-autorais/
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2198534

Inteligência Artificial

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JOTA

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