Leonardo N. Heck

Em 15 de julho, <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/replica-a-pec-kamikaze-e-inconstitucional-15072022">Almir Megali Neto e Deivide Júlio Ribeiro publicaram uma réplica</a> ao <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-pec-kamikaze-e-inconstitucional-04072022">meu artigo “A PEC Kamikaze é inconstitucional?”</a> publicado na semana anterior pelo JOTA. Ali, após reconstruírem meu argumento, os autores apresentam duas objeções: à categoria de “anticonstitucionalidade”, que seria atingida pelas mesmas críticas que apresentei às ideias de estrutura básica e identidade constitucional; e ao argumento de que a Constituição não oferece fundamentos explícitos para questionar a PEC em questão, <a href="https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/07/14/congresso-promulga-emendas-do-estado-de-emergencia-e-do-piso-salarial-da-enfermagem">hoje Emenda Constitucional 123/2022</a>.
Considero que os aspectos da PEC relevantes para os argumentos dos dois artigos anteriores – especialmente, o estado de emergência e a criação e expansão de benefícios sociais – <a href="https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/emenda-constitucional-n-123-415418172">foram mantidos na EC 123/2022</a> e, assim, a controvérsia e os argumentos ainda são pertinentes. Neste artigo busco responder às críticas. Começo pela segunda, porque ela é conceitualmente anterior à primeira: se uma emenda à Constituição é inconstitucional, como Megali Neto e Ribeiro argumentam ser o caso da PEC Kamikaze, não é preciso recorrer à ideia de que ela é anticonstitucional.
Eles apresentam duas razões para considerar a proposta inconstitucional: ela violaria “os direitos políticos e suas derivações” e a “forma federativa”. Quanto à primeira, consideram que a vedação imposta pela Lei 9.504/97 (artigo 73, §10) à concessão de benefícios em ano eleitoral se prestaria a regulamentar a “proteção constitucional da legitimidade e da normalidade do processo eleitoral”. Esse seria o fundamento constitucional explícito para questionar a EC, já que a Constituição faz, de fato, referência à legitimidade e normalidade das eleições em seu artigo 14, §9º.
Embora esteja contido no capítulo da Constituição que trata dos direitos políticos, não é óbvio que esse trecho seja relevante para a discussão sobre cláusulas pétreas, porque está inserido em um dispositivo que trata de uma questão específica: inelegibilidades. Segundo o artigo 14, §9º, da Constituição, hipóteses de inelegibilidade além das previstas no próprio texto constitucional devem ser regulamentadas por lei complementar. A preservação da legitimidade e normalidade das eleições é, ali, critério que deve guiar a criação de novos casos de inelegibilidade – uma restrição a um direito político. Mas é um critério a ser observado nesse contexto específico. Reconhecer uma proteção constitucional genérica à “legitimidade e normalidade das eleições” desvinculada desse dispositivo, por outro lado, é uma ideia que tem bastante afinidade com meu argumento original.
Mesmo supondo que a referência de Megali Neto e Ribeiro ao trecho do artigo 14, §9º, da Constituição seja pertinente para a discussão sobre cláusulas pétreas e que o artigo 73, §10, da Lei 9.504/97 regulamente esse dispositivo, entender que essa lei é relevante para o controle de uma emenda constitucional é, sim, ao contrário do que afirmam os autores, “tomar a lei como parâmetro para o controle de constitucionalidade”.
A regulamentação infraconstitucional de normas da Constituição pode, é claro, servir para dar conteúdo a normas genéricas e cuja aplicação direta teria resultados incertos. Mas ela não é relevante quando uma norma de mesmo status que aquela regulamentada, i.e., uma norma constitucional dispõe em sentido contrário. A norma constitucional original deve ser interpretada, primeiro, à luz da nova regra constitucional e, apenas em seguida, caso restem dúvidas quanto à sua aplicação, com referência à lei.
Se definições legais do conteúdo de cláusulas pétreas forem entendidas como parâmetros para o controle de emendas à Constituição, essas leis passam a ter, elas mesmas, status de cláusula pétrea. Levar esse argumento às últimas consequências implicaria reconhecer que uma emenda constitucional que buscasse especificar o conteúdo de uma cláusula pétrea poderia ser considerada inconstitucional caso houvesse uma lei ordinária determinando esse conteúdo de maneira contrária.
O segundo argumento de Megali Neto e Ribeiro é que a PEC seria inconstitucional por violar a forma federativa de Estado. Segundo eles, esse seria o caso, porque a medida reduziria a arrecadação e aumentaria as despesas dos municípios e, assim, restringiria suas possibilidades de autogestão. Ela, portanto, fragilizaria “o exercício de suas autonomias e, consequentemente, o equilíbrio da forma federativa”.
A emenda realmente interfere sobre a organização federativa e sobre a autonomia municipal. Mas isso não é suficiente para que viole cláusula pétrea. O artigo 60, §4º, I, da Constituição proíbe deliberação sobre propostas de emenda tendentes a abolir a forma federativa de Estado. Não parece plausível supor que a EC 123 teria essa capacidade: embora ela restrinja a autonomia dos municípios, ela o faz por meio de um rearranjo temporário da distribuição de recursos. Seus efeitos são limitados material e temporalmente. Portanto, ela não é inconstitucional.
Quanto à crítica à qualificação da emenda como anticonstitucional, é de se observar, primeiro, que, ao contrário do que argumentam os autores da réplica, ela não contradiz a afirmação de que a emenda não é inconstitucional. Trata-se de categorias logicamente distintas: uma regra é inconstitucional se contrária às normas estabelecidas pela Constituição; é anticonstitucional se, a despeito de não violar nenhuma regra explicitamente formulada, é contrária ao propósito mesmo de organizar uma comunidade política por meio de uma constituição.
Uma analogia ajuda a esclarecer o ponto. No futebol, agredir um jogador adversário é uma conduta contrária às regras que, por isso, lhe cominam uma sanção: posse de bola para o time adversário e cartão vermelho para o agressor. Marcar gols contra, de propósito, não é propriamente contrário às regras do futebol – não é proibido, nem punido –, mas subverte o sentido desse jogo, aquilo que orienta todos os jogadores em campo: marcar gols na goleira adversária, para ganhar a partida. É uma forma de “antijogo”, ainda que não seja propriamente ilícita.
Para além disso, Megali Neto e Ribeiro se contrapõem a meu argumento de que uma emenda à Constituição pode ser anticonstitucional com a mesma crítica que eu dirigi à chamada “doutrina da estrutura básica”: ambas as teses fixariam um núcleo constitucional independente das disposições específicas de uma Constituição, que seria colocado fora do alcance do processo de tomada de decisão democrática.
Os autores estão corretos em identificar essa similaridade. De fato, nos dois casos há referência a um “núcleo constitucional” que está fora do alcance do poder de reforma. No caso do argumento da anticonstitucionalidade, porém, esse núcleo não se refere a um núcleo positivo, fixado por uma decisão concreta e específica. Não se protege, por exemplo, a opção por um “constitucionalismo social” tomada em 1988, ou pela <a href="https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_busca_art_velho.php?nid=4&amp;artigonum=4A0002&amp;n_versao=1&amp;so_miolo=">transição para o socialismo tomada pelo povo português em 1976</a>. O que se protege é um núcleo conceitual – os limites daquilo que pode ser entendido como uma constituição.
Meu argumento é que esse núcleo corresponde à institucionalização de um Estado de Direito democrático. O ato de criar uma constituição não seria inteligível como tal se não se propusesse a institucionalizar um governo desse tipo. Por isso, mesmo constituições autoritárias proclamam ser fundadas na vontade popular. A veracidade dessa afirmação é algo a ser investigado em cada caso, mas isso não anula o fato de que ela existe e que seria absurdo – porque contraditório: contrário à prática de governar por meio de uma constituição – substituí-la por algo como “João da Silva é o déspota plenipotenciário do Estado X e sua vontade é lei”.
Não há petrificação da Constituição, porque o argumento da anticonstitucionalidade, por tratar de limites conceituais amplos, só se aplica a casos absolutamente excepcionais, ou seja, a medidas desenhadas explicitamente para contornar proibições legais e constitucionais, com o objetivo de subverter a democracia. A EC 123 parece ser uma medida desse tipo.

perspectiva de gênero

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JOTA

Agora Emenda Constitucional 123/22, a medida ainda apresenta as mesmas dificuldades

Tréplica: a PEC Kamikaze é inconstitucional?

PEC Kamikaze, agora transformada em EC 123, ainda apresenta as mesmas dificuldades