Hélio Roberto Silva de Sousa

O transporte semiurbano de passageiros é aquele com características de transporte urbano, mas que cruza a fronteira de Estados limítrofes, como ocorre na região do Distrito Federal e cidades do Entorno.
Por força legal, a regulação deste tipo de transporte é atribuição da Agência Nacional de Transportes Terrestres – <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/antt">ANTT</a> (art. 26, I, da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/LEIS_2001/L10233.htm">Lei n. 10.233/2001</a>). Todavia, dado o caráter local desse tipo de serviço, a ANTT delegou, por meio do Convênio de Delegação n. 01/2020 e pelo prazo de 15 anos, a gestão, regulação e fiscalização do transporte semiurbano operado entre os Municípios da Região Integrada de Desenvolvimento do Distrito Federal e Entorno (RIDE) ao Governo do Distrito Federal — GDF, Ente político que conhece as peculiaridades locais desse serviço.
Para que se tenha ideia da complexidade desse tipo de serviço, há apenas 1 contrato de permissão assinado pela ANTT, com a empresa Taguatur, tendo em vista que os certames para licitar os demais trechos, antes mesmo da delegação do serviço ao GDF, resultaram em certames desertos. Esse serviço, apenas na região do DF e Entorno, contempla mais 400 linhas, transportando cerca de 175 mil passageiros por dia.
Uma das características mais marcantes desse serviço é o seu caráter pendular. Explico: há um alto fluxo de passageiros das cidades do Entorno para Brasília no período da manhã, e de Brasília para as mesmas cidades ao final do dia. Esses períodos são considerados como picos de demanda (maior volume de passageiros), caracterizando a parte da operação verdadeiramente rentável às empresas operadoras.
Por outro lado, a maior parte do dia – período entre o início e o fim do dia, também chamado de entrepico – as empresas devem continuar prestando os serviços, mas com os ônibus transitando praticamente vazios. É importante destacar que, dado o caráter público dessa prestação, os serviços não podem deixar de serem prestados no entrepico, já que há usuários que precisam do serviço de transporte para ir ao médico, dentre as outras atividades do dia.
Como decorrência disso, as empresas deixam a maior parte de seus ônibus (principal ativo da empresa) totalmente parado no período do entrepico, visto que, com a demanda reduzida, o número de viagens também reduz. A consequência disto são ônibus que, no entrepico, não produzem renda aos operadores, gerando apenas custos, seja porque os ônibus estão parados, seja porque a maioria dos motoristas também fica sem operar nesta maior faixa do dia.
Ademais, como o modelo de precificação contempla os custos e o devido lucro às empresas, o preço das passagens ao usuário aumenta, já que se deve compensar os prejuízos suportados no entrepico, chegando a quase R$ 10,00 cada passagem em alguns trechos.
Outrossim, a falta de integração por meio de bilhetagem eletrônica com as linhas domésticas operadas pelo GDF também é um fator que faz pesar no bolso do usuário, sendo obrigado a pagar nova tarifa quando chega a Brasília, de modo a chegar em seu destino final dentro da cidade.
Outro fator de grande impacto na concepção desse modelo de serviço, mormente quanto à atividade regulatória, se dá em virtude da assimetria de informações inerente ao setor.
Fruto da inexistência de monitoramento da frota por dispositivo que aufira efetivamente o itinerário realizado, com a respectiva quilometragem, o Ente Regulador tem grandes dificuldades com a base de informações que utilizará para implementar a sua regulação.
Como o Ente Regulador não tem acesso direto e primário aos dados de operação das empresas, o que configuraria uma fonte primária de dados para regulação, acaba tendo que tratar com os dados informados pelas próprias operadoras, o que torna a regulação mais fragilizada, por se tratar de dados secundários.
Diante desta complexa moldura regulatória, fica a cargo do Ente Regulador definir a tarifa a ser aplicada em cada uma das linhas que operam o transporte semiurbano de passageiros, tarefa, por vezes, hercúlea e de difícil concepção.
Voltando ao Convênio firmado entre a ANTT e o GDF, dispõe a sua Cláusula Primeira, VII, que cabe ao GDF proceder à revisão e ao reajuste de tarifas dos serviços delegados, consoante as disposições contratuais.
Em atendimento à atribuição delegada, o GDF promoveu o reajuste da tarifa na ordem de 26,458% referente ao contrato licitado com a empresa Taguatur, e na ordem de 25,12% para as linhas ainda não licitadas e que operam por meio de autorizações precárias.
Ato contínuo, o Governador do Goiás ajuizou Ação Civil Originária (ACO) sob o n. 3.470, perante o Supremo Tribunal Federal — <a href="https://www.jota.info/stf">STF</a>, requerendo, em caráter liminar, a suspensão do reajuste outrora concedido.
Em cognição sumária, decidiu o relator, Exmo. Min. <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/andre-mendonca">André Mendonça</a>, acolher o pedido do Governador do Goiás e suspender o reajuste na tarifa do transporte semiurbano de passageiros.
Segundo o Ministro, tamanha elevação tarifária, sem que tenha havido debate prévio nem demonstração dos critérios técnico-financeiros adotados para estimá-la, traz, inequivocamente, risco de dano grave à população da RIDE e entorno, público vulnerável a alterações abruptas no valor de bens e serviços de que dependem diariamente, como ocorre com o transporte coletivo de passageiros.
Deve-se ter em mente que o problema do transporte semiurbano de passageiros não é um problema jurídico, já que tanto a ANTT quanto o GDF cumpriram a norma afeta aos critérios utilizados para concessão dos reajustes previstos em contrato. Ademais, não se trata, em sua essência, de um problema regulatório. A ANTT, como Ente Regulador, tão-somente dá execução às políticas públicas definidas pelo Poder Executivo.
Não cabe à ANTT criar fórmulas mágicas que possam vir a trazer fragilidade legal-contratual ao setor, ainda que a intenção seja a mais nobre possível, qual seja o provimento de uma solução que resolva, definitivamente, os problemas do transporte semiurbano de passageiros.
A solução está no provimento de uma política pública que realmente direcione seus olhos para esse serviço. O transporte de passageiros tem, precipuamente, dois atores principais com objetivos e deveres diferentes: o Estado e as empresas operadoras.
O Estado, como provedor do serviço público, não pode se escusar de seus deveres constitucionais. O que quero dizer é que o Estado não é empresa, não podendo pautar suas ações com o viés do lucro, ao contrário das empresas operadoras do serviço.
Cabe ao Estado a implementação de uma política de subsídios a este tipo de serviço, o que deve ser feito por meio de lei, subsídio este cujo fim não é favorecer as empresas, mas sim aliviar o preço da tarifa no bolso do usuário, afinal, o transporte é direito fundamental positivo de segunda geração, que carece de um fazer, um agir do Estado para sua plena efetivação, conforme disposto no art. 6º, caput, da Carta Maior.
Além disso, cabe ao Estado garantir a continuidade da prestação dos serviços. Fazer com que as empresas operadoras suportem o aumento dos custos da operação, sem que estes custos sejam transferidos à tarifa (como ocorre no mundo todo) é transferir aos operadores um ônus que cabe ao Estado, legítimo obrigado a prestar os serviços de transporte.
Sangrar as operadoras é verdadeiro “tiro no pé”. Decisão judicial que, a despeito de visar à proteção do usuário ao bloquear os reajustes devidos, na verdade gera insegurança jurídica, afasta os investimentos externos, gera uma prestação de serviços sem a qualidade necessária e, por fim, pode provocar a paralisação dos serviços por completa inviabilidade econômica, ou seja, aquilo que visava, em um primeiro momento, a proteger os usuários pode gerar efeito exatamente oposto ao que se desejava.
Assim, concluo esse breve artigo afirmando que, conquanto estejamos sob a égide do Direito Fundamental da Inafastabilidade da apreciação do Poder Judiciário, deve-se privilegiar o princípio da deferência às decisões regulatórias. Paralelo a isso, não pode o Estado, como provedor da política pública, se eximir dos ônus necessários ao provimento dos serviços públicos, como o transporte, agente efetivador do direito fundamental de ir e vir, sendo, neste caso, o subsídio estatal a forma mais rápida e segura para mantença da prestação dos serviços com a qualidade e modicidade tarifária desejadas.

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JOTA

O transporte semiurbano se resolve com política pública, não com decisão Judicial

Transporte semiurbano de passageiros: idiossincrasias e desafios

O transporte semiurbano se resolve com política pública, não com decisão Judicial; e cabe ao Estado a aplicação de uma política de subsídios.