Carlos Nitão

O poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade costuma explorar, nos seus textos, temas do cotidiano, estando, dentre eles, o poema "José", cujo verso inicial tomamos de empréstimo para o título dessas breves reflexões.
Na mitologia romana, o deus Janus (ou Jano) tem duas faces. Uma delas tem o olhar voltado para o passado e a outra o olhar para frente, esperando, aguardando aquilo que há de vir. Simboliza, portanto, as mudanças, as transformações. Vivemos, atualmente, as desesperanças quanto à aplicação da <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14133.htm">Lei 14.133/2021</a>.
Essas reflexões estão relacionadas com o momento de transição no sistema brasileiro de contratações públicas, uma vez que se aproxima a aplicação obrigatória da Lei 14.133/2021, conhecida por nós como nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Nesse momento, Drummond indaga: “Você marcha, José! José, para onde?”.
E talvez José, fã de Caetano Veloso[1], responda: “Tempo, tempo, tempo, tempo. Ouve bem o que te digo”, uma vez que, para ele, é preciso adiar a aplicação obrigatória da nova Lei de Licitações.
Nesse cenário, José observa que “No meio do caminho tinha uma pedra. Tinha uma pedra no meio do caminho”[2]. Talvez pelo fato de que, ao longo dos dois últimos anos, não lhe foi oportunizado aplicar a lei, ainda que em contratações mais simples, seja pelo fato de que a lei exige, para isso, a edição de quatro ou cinco dezenas de regulamentos, seja pelo receio de viver o novo.
Não obstante isso, após algumas reflexões ao som de agradável chorinho no Clube do Choro de BH, José conclui que “é preciso ter força, é preciso ter raça. É preciso ter gana sempre”[3], afinal de contas é preciso ter “Fé na vida, fé no homem, fé no que virá. Nós podemos tudo, nós podemos mais. Vamos lá fazer o que será”, pois José também é fã de Gonzaguinha[4].
Em razão disso, caras leitoras e caros leitores, é preciso refletir com responsabilidade sobre a necessidade de eventual prorrogação da aplicação da Lei 14.133/2021. Essas reflexões não podem estar relacionadas apenas com eventual questão estrutural dos entes federativos. É preciso se questionar se não estaríamos, por exemplo, apenas adiando ou postergando a necessidade de enfrentar eventual problema operacional ou de estruturação administrativa. Dito isso, não posso deixar de registrar que até há pouco tempo estava inclinado a defender essa sobrevida para a Lei 8.666/1993.
No entanto, após algumas conversas com amigos, amigas, professores, professoras, servidores e servidoras, mudei de opinião e penso que perdemos o bonde quando não estabelecemos um regime de aplicação dentro do prazo de dois anos de transição que foi estabelecido pela Lei 14.133/2021.
Mas você há de afirmar que a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos estabelece regime de transição. Esclareço que as minhas preocupações estão mais relacionadas com as dificuldades que os municípios enfrentarão, sobretudo aqueles com menor estrutura administrativa.
Nesse contexto, quando menciono um regime de aplicação, quero dizer que a lei deveria ter previsto a possibilidade de sua flexibilização nesse prazo de dois anos de transição, isto é, deveria ter oportunizado aos entes federativos a realização de ajustes graduais no seu processo de adequação às novas exigências, sobretudo aquelas relacionadas com o planejamento e a governança nas contratações públicas. Basta ver o debate sobre a figura do agente de contratação, por exemplo.
Digo mais, poderia ter admitido a sua aplicação, permitindo que os acertos fossem realizados à medida que a norma fosse sendo aplicada. Basta imaginar a necessidade de elaboração de estudo técnico preliminar e matriz de riscos, cuja confecção pode ensejar dificuldades reais, haja vista que, como regra, são artefatos não usualmente utilizados nos modelos de contratações dos estados e municípios, sobretudo por esses últimos.
Nessa conjuntura, a Lei de Introdução às Normas de Direito Público (LINDB, nosso canivete suíço), nos oferece meios para a sugestão apresentada acima. Ela admite regime de transição, alerta sobre os obstáculos e as dificuldades reais de gestão. Enfim, é preciso não apenas editar leis, mas sobretudo, pensar na sua aplicação e isso acontece no dia a dia da atividade administrativa.
Para além disso, parece-me que no Brasil há uma predisposição a deixar as providências necessárias para os últimos instantes, seja para implantação de uma nova rotina de trabalho, seja para ir aquele happy hour, seja para embarcar em um avião, no entanto, em algumas situações é preciso subir na bicicleta e pedalar, sem que haja qualquer opção.
Essa é a nossa impressão sobre a aplicação obrigatória da nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, porque, para nós, a prorrogação da vigência da Lei de Licitações de 1993 representaria um descompromisso com a face de Janus que olha para o futuro e almeja eficiência na gestão pública (princípio constitucional), mas que dialoga com a outra que observa o passado, onde o pacto legislativo foi celebrado e, portanto, precisa e deve ser observado, sob pena de caminharmos para um retrocesso institucional. Como diria o poeta português[5], “Navegar é preciso”. Nesse entretempo, Drummond[6] polemiza: “E agora, José? A festa acabou. A luz apagou”.
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[1] Trecho da música "Oração ao tempo", de Caetano Veloso. 
[2] Trecho do poema "No meio do caminho", de Carlos Drummond de Andrade. 
[3] Trecho da música "Maria, Maria", de Milton Nascimento. 
[4] Trecho da música "Nunca pare de sonhar", de Gonzaguinha. 
[5] Trecho do poema "Navegar é preciso", de Fernando Pessoa. 
[6] Trecho do poema "No meio do caminho", de Carlos Drummond de Andrade.

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JOTA

Parece haver no Brasil uma predisposição em deixar as providências necessárias para os últimos instantes

E agora, José? A transição para a nova Lei de Licitações

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