Romulo de Sousa Mesquita

Guilherme Brügger D’Amato

Até os menos interessados em política e finanças públicas hão de concordar que o uso do dinheiro público precisa ser fiscalizado.
No caso das transferências especiais, apesar de não expressa no texto da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc105.htm">Emenda Constitucional 105/2019</a>, fica clara de quem é a responsabilidade pela fiscalização.
No texto original que tramitou no Congresso Nacional, ainda sob o título de PEC 48/2019, os recursos das emendas “a título de doação”, como eram chamadas as transferências especiais, teriam sua aplicação fiscalizada pelos órgãos de controle interno dos entes federativos e pelos Tribunais de Contas sob suas jurisdições.
Apesar desse dispositivo ter sido suprimido no texto final da EC 105/2019, a redação dada ao inciso II, §2º, do artigo 166-A da Constituição Federal por aquela PEC indica que os recursos oriundos deste tipo de transferência “pertencerão ao ente federado no ato da efetiva transferência financeira”.
Dessa forma, não haveria que se falar em ingerência da União sobre a aplicação de recursos dos quais não é titular.
Mesmo assim, é preciso estabelecer o nexo entre a destinação do recurso pela União e o bem público que se pretende alcançar.
Tanto é que o mesmo §2º do artigo 166-A estabelece que os recursos “serão aplicadas em programações finalísticas das áreas de competência do Poder Executivo do ente federado beneficiado” (sic).
Afinal de contas, o próprio objetivo da EC 105/2019 era facilitar as transferências a estados e municípios, sem a necessidade de convênios, contratos de repasse e instrumentos congêneres, dando mais agilidade às ações de atendimento à população brasileira, mas sem desconsiderar a fonte da arrecadação, em nível federal.
E ainda que se alegue que a capacidade técnica dos entes é insuficiente para desenvolver projetos sem a mão da União, essas transferências podem ser vistas como um empurrão para que isso se desenvolva.
Portanto, vencida a discussão e determinados os incumbidos, resta a dúvida: como fiscalizar as transferências especiais desde sua origem à aplicação?
As informações sobre as transferências especiais estão disponíveis para consulta no <a href="https://www.portaltransparencia.gov.br/transferencias/detalhe?paginacaoSimples=true&amp;tamanhoPagina=&amp;offset=&amp;direcaoOrdenacao=asc&amp;de=01%2F01%2F2020&amp;ate=31%2F12%2F2020&amp;tipo=2&amp;acao=0EC2&amp;colunasSelecionadas=mesAno%2Ctipo%2CtipoFavorecido%2Cuf%2CnomeFavorecido%2CcpfCnpj%2Cmunicipio%2Cfuncao%2Cprograma%2Cacao%2ClinguagemCidada%2Cvalor%2Cgrupo%2Celemento%2Cmodalidade&amp;ordenarPor=grupo&amp;direcao=asc">Portal da Transparência</a> sob a ação “0EC2 - TRANSFERENCIAS ESPECIAIS”.
Ali é possível identificar a data da transferência, o favorecido, a modalidade de aplicação (se transferência a estado ou município), o grupo de natureza de despesa (se para investimento ou despesas correntes), e o valor transferido.
No entanto não é possível determinar que parlamentar destinou cada emenda ou sua situação corrente.
Para isso é possível fazer uma consulta ao <a href="https://painelparlamentar.economia.gov.br/extensions/painel-parlamentar/painel-parlamentar.html">Painel Parlamentar da Plataforma +Brasil</a> do Ministério da Economia. Restringindo-se o filtro de Modalidade às emendas especiais, é possível selecionar um parlamentar e obter uma lista das transferências provenientes de emendas apresentadas por ele.
A partir daí, é possível acessar os detalhes do Plano de Ação correspondente àquela transferência na Plataforma +Brasil, além do artefato mais importante para a presente discussão: o relatório de gestão.
O relatório de gestão é o único recurso tecnológico disponível para o registro da execução financeira do dinheiro recebido pelo ente federado via transferência especial.
O problema é que o parecer do relatório de gestão é apenas um texto livre, que deve ser digitado em um campo que comporta 10 mil caracteres. Também é possível anexar arquivos ao relatório, porém sujeitos à discricionariedade do usuário.
[caption id="attachment_362697" align="aligncenter" width="546"]<img class="wp-image-362697 " src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2022/04/imagem-6-300x152.png" alt="" width="546" height="277" /> Figura 1- Página do relatório de gestão na Plataforma +Brasil[/caption]
A fim de facilitar o preenchimento, o Ministério da Economia disponibiliza um <a href="https://redemaisbrasil.plataformamaisbrasil.gov.br/media/files/passo_a_passo_relatorio_de_gestao_-_transferencia_especial_2D3oU46.pdf">manual</a> de 27 páginas chamado “Passo a passo do relatório de gestão”.
Nesse manual, as únicas informações sobre o que deve constar do parecer estão na página 16, onde se lê: “Descrever de maneira sucinta as ações executadas” e “O relatório de gestão aqui registrado estará relacionado as ações que que foram executados, na totalidade ou em partes, com recursos oriundos de emendas especiais” (sic).
Ou seja, o “passo a passo” orienta a descrever de forma sucinta as ações, algo que se observa na figura 1, na qual o parecer descreve apenas que o recurso foi utilizado para custeio, apesar de tratar-se de informação óbvia, que já consta dos dados básicos da transferência.
No caso observado na figura 1, não há qualquer referência a um contrato ou a uma ação de custeio constante do orçamento anual ou das demonstrações contábeis do ente beneficiado.
[caption id="attachment_362698" align="aligncenter" width="520"]<img class="wp-image-362698 " src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2022/04/imagem-7-300x168.png" alt="" width="520" height="291" /> Figura 2- Percentual de Planos de Ação com alguma prestação de contas na Plataforma +Brasil. Fonte: Painel Parlamentar do Min. da Economia.[/caption]
Para piorar, até março de 2022, apenas 4,9% das 6.300 transferências concretizadas em 2020 e 2021 tiveram alguma prestação de contas, ainda que irrelevante como a do exemplo anterior.
O valor total transferido nos dois anos supera R$ 2,7 bilhões, mas apenas para R$ 121 milhões gastos se deu alguma satisfação ao contribuinte.
Ainda de acordo com os dados do Painel Parlamentar, 24 das 27 unidades da federação não apresentaram prestação de contas para as transferências especiais recebidas em 2020 e 2021, assim como 95% dos municípios beneficiados.
É importante lembrar que, ao contrário das transferências com finalidade definida, a não prestação de contas pelos entes beneficiados não bloqueia a possibilidade de novas transferências especiais, uma vez que essa modalidade inovadora não se sujeita ao artigo 25 da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Parece que ao eximir a União de fiscalizar, o Congresso Nacional também a eximiu de normatizar os procedimentos para tal. As regras até existem, mas são genéricas demais.
Em 2020 o Ministério da Economia editou a Portaria nº 252/2020, que “estabelece normas de execução orçamentária e financeira da transferência especial a estados, Distrito Federal e municípios prevista no artigo 166-A da Constituição, no exercício de 2020”.
De acordo com o artigo 18 dessa Portaria, “o ente federativo beneficiário poderá registrar na Plataforma +Brasil, para fins de transparência e controle social das transferências especiais, os dados e informações referentes à execução dos recursos recebidos, na forma do Decreto nº 10.035, de 1º de outubro de 2019” (grifo nosso).
Portanto, a Portaria apenas autoriza que se use a Plataforma +Brasil – e somente ela – para prestação de contas das transferências especiais.
O problema é que ao tentar fixar a forma de transparência, o dispositivo menciona apenas um decreto que também não é específico sobre como o uso do dinheiro deve ser publicado.
De acordo com o artigo 2º do Decreto nº 10.035/2019, estão entre os objetivos da Plataforma +Brasil “permitir que os recursos aplicados sejam rastreados” e “oferecer meios tecnológicos para o fortalecimento da integridade e a transparência das informações” (grifo nosso).
Ora, é ineficiente, para dizer o mínimo, rastrear o dinheiro por um campo texto que não indica sequer em que fonte de receita o recurso recebido foi classificado no orçamento do ente.
Além disso, cada ente tem seu mecanismo próprio de transparência e nem sempre a fiscalização pode ser automatizada, já que nem todos publicam seus dados em portais de dados abertos.
De certo há outros “meios tecnológicos para o fortalecimento da (...) transparência” que podem inclusive aproveitar a descentralização das transferências especiais, característica pouco comum no orçamento público, onde a centralização costuma ser a norma.
Um desses mecanismos é a tecnologia blockchain, que já vem sendo <a href="https://www.serpro.gov.br/menu/imprensa/Releases/serpro-desenvolve-rede-blockchain-para-a-receita-federal">aplicada pelo Serpro</a> em projetos piloto como o bCONNECT.
Mas ainda que não seja possível aplicar recursos tecnológicos avançados neste momento, é preciso que se crie ao menos um padrão para preenchimento do relatório de gestão. Um padrão que forneça subsídios mínimos para que qualquer pessoa interessada possa ir atrás do dinheiro nas contabilidades públicas municipal ou estadual.

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JOTA

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