Sebastião Botto de Barros Tojal

Bruna Souza da Rocha

A interpretação de normas na aplicação do Direito não se circunscreve somente em tornar claro o seu respectivo dizer, em abstrato, mas sim, e sobretudo, revelar o sentido apropriado para a vida real, capaz de orientar o julgador no sentido de proferir a melhor decisão.
Considerando que as normas jurídicas não se quedam estáticas após a sua vigência, mas se denotam vivas, enquadráveis no plexo de interesses legítimos e dinâmicos que movem uma sociedade globalizada, que se alteram no tempo e em razão de cada caso concreto, a hermenêutica não se pode furtar à influência do meio, avaliando o efeito do processo interpretativo de modo a orientar-se por ele, preferindo o sentido do resultado mais razoável e que corresponda às necessidades da prática e às melhores consequências para o bem geral.
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A análise dos resultados no bojo de um processo interpretativo por quem compete dizer o Direito é tida, assim, como de enorme relevância e apreço pela hermenêutica jurídica, o que remonta ao tempo das lições de Carlos Maximiliano<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> e que, quase 1 século depois, encontra-se positivada nos art. 20 e 21 da LINDB.
Tais dispositivos estabelecem ao aplicador do Direito, inclusive e mormente na invalidação de atos, contratos, processos e normas, que avalie as consequências práticas da sua decisão, sob um viés prospectivo e realista, buscando a solução mais racional e proporcional ao caso concreto. Em outras palavras, impõem ao julgador que sejam consideradas as consequências do ‘dia seguinte’ (e dos anos seguintes) da decisão<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Na atuação do STF, a hermenêutica consequencialista não raro está presente. Destaca-se, nesse sentido, o que consta na ementa de julgamento da Pet 8002-AgR, de março de 2019, de relatoria do Min. Relator Luiz Fux: “O Magistrado tem o dever de examinar as consequências imediatas e sistêmicas que o seu pronunciamento irá produzir na realidade social, porquanto, ao exercer seu poder de decisão nos casos concretos com os quais se depara, os Juízes alocam recursos escassos”<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. O caso é expressivo porque, em seu voto, o Min. faz clara menção ao art. 20 da LINDB.
Também em outros casos, até anteriores à inserção dos art. 20 e 21 na LINDB, o STF lançou mão da análise das consequências para a prolação de decisões, como na ADPF 45, no ano de 2004, a qual, embora tenha perdido o seu objeto, provocou manifestação da Corte no sentido de que “a limitação de recursos existe e é uma contingência que não se pode ignorar. O intérprete deverá levá-la em conta ao afirmar que algum bem pode ser exigido judicialmente, assim como o magistrado, ao determinar seu fornecimento pelo Estado”<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
A par disso, sabe-se que tramita no STF a ADI 2.946, proposta em 2003 pela Procuradoria-Geral da República, na qual se questiona a constitucionalidade do art. 27 da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8987compilada.htm">Lei de Concessões</a>, que dispõe sobre a caducidade dos contratos de concessões que forem cedidos ou tiverem seu controle acionário transferido sem a anuência do poder concedente.
Em agosto de 2021, o Min. Dias Toffoli, relator do caso, acompanhado pelo Min. Alexandre de Moraes, prolatou voto reconhecendo a parcial inconstitucionalidade do dispositivo, especificamente no tocante à transferência da concessão, pois, no seu entendimento, a operação configuraria burla ao processo licitatório, previsto no art. 175 da CF. Como forma de modular os efeitos da decisão, o Relator propôs a fixação do prazo de 2 anos para que a Administração Pública licite os contratos que foram objeto de transferência. A demanda aguarda ser pautada para julgamento pelo Plenário do STF.
O voto exarado pelo Min. Relator no caso em comento causou insegurança e apreensão no ambiente negocial à vista dos efeitos desastrosos que da sua adoção pelo Plenário do STF podem reverberar, especialmente neste momento, em que o único caminho possível para a retomada do desenvolvimento socioeconômico parece estar na capacidade do governo de organizar a sua base de atuação no mercado e atrair os investimentos privados na infraestrutura e nos serviços públicos do país.
A declaração de inconstitucionalidade de uma norma vigente há 26 anos e que regulamentou incontáveis relações jurídicas contratuais de transferência de concessões, muitas das quais ainda em curso, realizada de modo completamente inesperado e sem conformação com a realidade das concessões e análise dos seus efeitos (mediatos e imediatos), traduz a perspectiva de verdadeira desorganização no ambiente de negócios e fomenta um quadro de insegurança jurídica absoluta.
Assim, questões como  o impacto da decisão, uma vez confirmada, sobre o custo dos projetos de infraestrutura, a inevitável desconfiança em relação ao setor público, a perspectiva de interrupção da prestação de serviços públicos diversos, a perda de qualidade dessa mesma prestação de serviços delegados, a pouca probabilidade de que os serviços seja relicitados no prazo aventado de dois anos, a precariedade das contas públicas e a necessidade de indenização de investimentos não amortizados, tudo está a configurar a absoluta temeridade de julgar-se de olhos vendados para a realidade em inequívoca ameaça ao interesse público
E, para que não paire nenhuma dúvida, impende reconhecer que o art. 27 da Lei 8.987/1995 não viola o art. 175 da CF. O dispositivo é claro ao determinar que devem ser mantidas as condições contratuais estabelecidas com o contratado originário, tais como os requisitos de habilitação e a proposta vencedora, o que demonstra a manutenção da contratação mais vantajosa ao interesse público. Isso tudo garantido pela disposição que condiciona a transferência da concessão e do controle acionário à prévia anuência do poder concedente, que se desveste de pessoalidade.
Por fim, convém ainda trazer dois preceitos fundamentais da doutrina de Carlos Maximiliano, atrás citado, sobre a interpretação do texto constitucional.
O primeiro consiste na regra de que a prática constitucional longa e uniformemente aceita pelo Poder Legislativo e Executivo é de maior valor ao intérprete do que as pontuais especulações abstratas em contrário, pois a Constituição é também instrumento de governo, sendo assegurada a adaptação da letra da lei aos fatos inevitáveis. O segundo é a ideia de que forte é a presunção de constitucionalidade de um ato ou de uma interpretação quando datam de grande número de anos - “Minime sunt mutanda, quoe interpretationem certam semper habuerunt” (Eles não devem ser alterados, uma vez que sempre tiveram uma interpretação definitiva)<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
Isso evidencia que, no julgamento da ADI 2.946<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>, além de o STF necessariamente ter que avaliar a realidade das concessões e todas as consequências práticas (administrativas, econômicas, jurídicas etc.) que da sua decisão possam resultar, em homenagem à hermenêutica consequencialista, hoje positivada nos art. 20 e 21 da LINDB, não poderá, por outro lado, se esquivar da questão atinente à legitimidade democrática da norma do art. 27 da Lei de Concessões depois de 26 anos de sua vigência e reconhecida validade.<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>.
Afinal, “saber das leis é conhecer-lhes, não as palavras, mas a força e poder”.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Hermenêutica e Aplicação do Direito, 22ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 151.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; FREITAS, Rafael Véras de. Comentários à Lei nº 13.655/2018 – Lei da Segurança para a Inovação Pública, 2ª reimpressão. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 43.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> O caso tratou de conceder efeito suspensivo à decisão proferida pelo STJ que criou um percentual de 25% a mais na aposentadoria de pessoas que precisam de cuidadores, o que poderia acarretar impacto financeiro na ordem de R$ 7,15 bilhões por ano nas contas da Previdência Social. Consoante voto do Relator, “o quadro apresentado indica que a eficácia imediata do acórdão recorrido representa grave risco para as contas públicas, revelando-se particularmente preocupante no cenário de crise fiscal e econômica atual”. Outro exemplo é o julgamento do RE 888.815/RE, no qual, após uma intensa discussão em que se ventilou dados empíricos sobre diversas questões, como o nível da educação no Brasil, a educação domiciliar em diversos países do mundo e o abuso sexual infantil, o Tribunal considerou inconstitucionais as espécies de unschooling radical, unschooling moderado e homeschooling puro, reconhecendo que o ensino domiciliar não é um direito público subjetivo do aluno ou de sua família, porém, que a sua criação por meio de lei federal não é vedada na Constituição Federal.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Min. Relator Celso de Mello, DJ: 20/04/2004. O julgado faz parte da construção do que se denomina cláusula de “reserva do possível”, em que se considera a limitação fática de recursos financeiros e orçamentários do Estado para a exigência judicial de cumprimento de direitos sociais.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Hermenêutica e Aplicação do Direito, 22ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 274/283.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Observe-se que após proferidos os votos dos Ministros Toffoli e Alexandre Moraes, o Ministro Gilmar Mendes formulou pedido de destaque, tendo sido o feito retirado do julgamento virtual e encaminhado para julgamento em plenário, quando será reiniciado sem o cômputo dos votos já disponibilizados, nos termos da Resolução 642/2019, do STF.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Para uma análise aprofundada da legitimidade democrática das normas no contexto atual de pluralismo jurídico: HESPANHA, António Manuel. O direito democrático numa era pós-estatal: a questão política das fontes de direito. (S. l.), Amazon, 2018. E-book. (Capítulo II – “Será que a legitimação democrática do Direito vai desaparecer?”).

concessão

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JOTA

Declaração inesperada de inconstitucionalidade de norma vigente há 26 anos fomenta quadro de insegurança jurídica absoluta

Constitucionalidade da transferência das concessões

Declaração inesperada de inconstitucionalidade de norma vigente há 26 anos fomenta quadro de insegurança jurídica absoluta