Etienne Jacintho

“Eles estão chegando!”, alerta um forasteiro, com olhar entorpecido, em terras americanas. Seu ouvinte, um dos 40 moradores da cidade de Antelope, no Oregon, mal poderia imaginar que sua pacata vida sofreria uma transformação que atingiria proporção nacional. Esse é o início do documentário Wild Wild Country, que leva o espectador para uma gigantesca viagem audiovisual. A obra usa o suspense para contar a quase inacreditável ascensão e queda e Rajneeshpuram, a comunidade criada em 1981 pelos seguidores do guru indiano Bhagwan Shree Rajneesh, mais conhecido como Osho, em uma cidade conservadora americana.
O documentário analisa, em 6 horas e 30 minutos, os dois lados desta história real que parece produto de ficção. Parece, na verdade, uma série daquelas difíceis de acompanhar – e até de engolir – por juntar um pouco de tudo: vida em sociedade, preconceito religioso, liberdade sexual, repressão sexual, drogas, força espiritual, Constituição, fraude eleitoral, conspiração, ataque biológico, tentativa de assassinato, briga em tribunais, disputas legais, cobertura jornalística em massa, sensacionalismo e por aí vai...
Wild Wild Country traz uma riqueza de informações que até quem conhece a trajetória de Osho vai se surpreender. Começa nos anos 1970, na Índia, mas tem foco nos anos 1980. A narrativa é construída a partir de entrevistas com ex-prefeitos e moradores de Antelope e com gente do alto escalão da comunidade de Rajneeshpuram, principalmente de sua mais influente administradora, a secretária de Bhagwan, Ma Anand Sheela. Ora retratada como uma discípula devotada, ora como uma traidora implacável, Sheela é a figura de destaque do documentário por sua personalidade forte, sua liderança nata e as acusações que enfrentou – tentativa de assassinato, participação em ataque biológico, grampo, fraude eleitoral. Da Suíça, onde mora atualmente, Sheela conta sua visão de Bhagwan, de Rajneeshpuram e de sua partida da comunidade.
Outro rico depoimento vem de Swami Prem Niren ou Philip Toelkes, ex-prefeito de Rajneeshpuram e advogado americano que largou uma carreira de dinheiro e sucesso em Los Angeles para seguir o líder espiritual. Niren foi um dos advogados responsáveis por estabelecer a comunidade no Oregon, apoiado na Constituição dos Estados Unidos.
Além dos depoimentos, o documentário traz ainda as muitas imagens reais dos cultos com a presença de Bhagwan, das meditações, das festividades, da construção da comunidade, das alegrias e dos medos dos rajneeshees. O olhar das pessoas diante de Bhagwan é algo inexplicável. É impressionante e bonito ver a motivação daquelas pessoas ao construir uma comunidade utopicamente fraterna e de cultura de paz. A pressão da sociedade, no entanto, transformou a utopia em medo, que chegou carregado de distorções morais e fez aflorar as sombras numa comunidade de luz.
Contra os ‘vermelhos’ – Do outro lado do tabuleiro estão os moradores de Antelope que não aceitaram, principalmente por preconceito sexual e religioso, o estabelecimento dos seguidores de Bhagwan no quintal da casa deles. Quando foi apresentado nos cinemas um filme gravado em um culto em Rajneeshpuram com pessoas nuas, em transe, dançando e se tocando, os moradores se uniram numa empreitada nacional contra os inimigos, apelidados de “vermelhos”, pois eles só vestiam roupas em tons vermelhos, alaranjados, rosas e lavandas. A perseguição foi tão implacável que deu início a uma verdadeira guerra que envolveu até mesmo Charles Turner, promotor público federal pelo Estado do Oregon. Turner quase foi assassinado por Catherine Jane Stork, uma discípula de Bhagwan, a pedido de Sheela. Catherine, aliás, também conta sua versão dos fatos no documentário e admite a autoria de outros crimes.
<a name="_GoBack"></a> Em Wild Wild Country não dá para saber o que impressiona mais: a lista de contravenções atribuídas aos rajneeshees ou a força dos mesmos ao construir, em meses, uma comunidade completamente autossustentável, que poderia abrigar 30 mil pessoas, estruturada por bairros, com ruas, casas, lojas, postos de serviços em geral, galpão de meditação, terra para agricultura, shopping center e até aeroporto.
Uma verdadeira cidade que reuniu pessoas de todos os continentes e todas as esferas sociais. Havia até gente da indústria cinematográfica de Hollywood, como Françoise Ruddy (Anan Hasya), ex-mulher do produtor de O Poderoso Chefão, Albert Ruddy. Moraram lá também, por um breve período, muitos sem-teto de várias partes dos Estados Unidos. Isso porque os advogados de Rajneeshpuram, para ganhar força política no condado de Wasco, decidiram aumentar o número de eleitores “vermelhos”. Dezenas de ônibus recolheram centenas de sem-teto e levaram todos para morar em Rajneeshpuram. Deram abrigo, comida e cerveja e ganharam eleitores.
Claro que houve uma batalha judicial contra o cadastramento dessas pessoas como eleitores do condado. Além do desgaste dessa luta, os rajneeshees tiveram de enfrentar outro problema: o controle ou a expulsão dessas pessoas da comunidade. E mais um crime foi cometido, uma vez que o controle foi exercido com o uso de drogas.
Atribui-se ainda aos rajneeshees a autoria de um ataque bioterrorista que atingiu cerca de 750 pessoas em Wasco: uma contaminação com salmonela deixada em restaurantes espalhadas pelo condado.
Abusos, partidas e traições – Como toda boa história, Wild Wild Country não poderia deixar de ter um desfecho dramático. Após cometer atos criminosos com a desculpa de que era para um bem maior, Sheela e seus discípulos perceberam que tinham ido longe demais e que haviam cruzado a linha que separa a defesa do ataque. Essa percepção trouxe apenas uma certeza: todos precisavam partir. Até mesmo Sheela. E assim foi feito. Sheela e seus discípulos voaram para a Alemanha. A partir daí, a fraternidade se quebrou. Bhagwan contou aos rajneeshees e aos jornalistas presentes em coletiva de imprensa, que Sheela era uma criminosa e precisava ser punida.
Após essa traição, a vitória dos moradores de Antelope nessa guerra já poderia ser dada como certa. Era o fim de um sonho, de uma utopia. Rajneeshpuram talvez tivesse dado certo se os 40 moradores não tivessem um olhar preconceituoso em relação aos forasteiros ou se Sheela não tivesse comprado a briga com a cidade. A tolerância, caso tivesse sido praticada por ambos os lados, talvez levasse prosperidade a Rajneeshpuram. E, se essa comunidade tivesse tido a chance de se desenvolver, mantendo sua autossuficiência e sua cultura de paz, o mundo hoje provavelmente seria diferente, com essa sementinha plantada, crescendo e espalhando suas ramas por aí. Poderia ter sido lindo. Quem sabe um dia chegamos lá. Utopia?

WILD WILD COUNTRY (1280×889)

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JOTA

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