Isabella Filgueiras Gomes

Sob fortes pressões da sociedade civil e de organismos internacionais, o Brasil reconheceu, em 1995, a persistência da chaga do trabalho escravo em seu território. Desde então, foram desenvolvidos importantes mecanismos de combate ao trabalho em condições análogas à escravidão, a exemplo das fiscalizações empreendidas pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel, responsável pelo resgate de milhares de trabalhadores.
A definição de trabalho análogo ao de escravo, atualmente, encontra-se prevista no artigo 149 do Código Penal, especificando condutas que, violando a dignidade humana, seriam suficientes para configurar situação de trabalho escravo contemporâneo.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>O conceito criminal, utilizado também na área trabalhista para fins de atuação do Ministério Público do Trabalho, Superintendência Regional do Trabalho e outras instituições, contempla como hipóteses de trabalho escravo típico o trabalho forçado, a jornada exaustiva, o trabalho em condições degradantes e o trabalho com restrição de locomoção, em razão de dívida contraída com o empregador.
Por equiparação, contempla também a retenção da pessoa no local de trabalho, por cerceamento do uso de qualquer meio de transporte, manutenção de vigilância ostensiva e retenção de documentos ou objetos de uso pessoal.
A escravidão contemporânea possui elementos diferenciadores consideráveis em relação à escravidão negra dos períodos da Colônia e do Império: não mais encontra amparo jurídico nem implica grilhões e açoites, baseando-se na violência da completa supressão de direitos e afronta à dignidade dos trabalhadores.
<blockquote class="jota-article__eye">No entanto, são inegáveis as reminiscências e profundas marcas da escravidão clássica na atualidade, a começar pelas vítimas históricas da pobreza e pelas atividades em que se concentra o trabalho análogo ao de escravo.</blockquote>
Por muito tempo, e ainda de forma prevalente nos dias de hoje, a partir das próprias denúncias de repercussão internacional, os estudos e ações de combate ao trabalho escravo contemporâneo enfatizaram claramente o trabalho rural. Consequentemente, traçou-se um perfil das vítimas com ampla preponderância de trabalhadores do sexo masculino, ocupados no labor braçal nos campos, lavouras e canaviais.
Segundo dados do Observatório Digital do Trabalho Escravo, criado por meio de cooperação técnica internacional do Ministério Público do Trabalho (MPT) e da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de fato, dentre os 36.524 resgatados entre os anos de 2003 a 2018, os homens atingem percentual de 94,63% (34.562), ao passo que as mulheres representariam apenas 5,37% das vítimas (1.962).
A partir de uma análise histórica e social da transformação da escravidão no Brasil, no entanto, é perturbadora a ausência de análises críticas dos dados sobre a situação das mulheres. Com a Lei Áurea, em 1888, teriam sido estas poupadas da mazela do trabalho escravo, em suas feições contemporâneas? Ou, ao contrário, não estariam sendo enxergadas e libertadas?
De fato, do Brasil Colônia aos tempos atuais, as lavouras, campos e canaviais seguem espaços de exploração e sonegação de direitos a trabalhadores. No meio rural, os trabalhadores foram frequentemente privados dos benefícios da legislação trabalhista construída ao longo do século XX, o que se percebe pela exclusão dos trabalhadores rurais dos direitos assegurados pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), quando de sua edição, em 1943.
Por outro lado, o equivalente feminino do trabalho braçal no campo, em termos de feição escravagista e permanência histórica de exploração e sonegação de direitos, pode ser encontrado no trabalho doméstico. Para tal constatação, basta atentar para o fato de que os trabalhadores domésticos não foram apenas, como os rurais, excluídos originariamente da proteção da CLT, como também do próprio rol mínimo de direitos previstos no artigo 7º da Constituição de 1988, quando de sua promulgação.
Recentes casos de resgates de trabalhadoras domésticas escravizadas, por atuação do Ministério Público do Trabalho, Superintendência Regional do Trabalho e outras instituições, com ampla divulgação pela mídia, vêm demonstrar que as vinculações ao preconceito de sexo e raça, o estigma e a proteção jurídica diminuta tornam o trabalho doméstico, como o trabalho rural, especialmente sujeito à violência, degradação e indignidade próprias das condições análogas à escravidão.
Além disso, a frequente desconsideração do trabalho doméstico como trabalho, somada à inviolabilidade da esfera privada das famílias, pode explicar, em muito, a ausência de dados estatísticos e a desconsideração de situações de degradação doméstica como trabalho escravo contemporâneo.
Transcorridos mais de cem anos da abolição da escravidão clássica, o trabalho doméstico, não obstante impactado também por lutas e reivindicações, permanece estigmatizado e ocupado de forma absolutamente majoritária por mulheres pobres, especialmente negras.
Trata-se de ocupação com altas taxas de informalidade, baixas remunerações e de difícil proteção jurídica e fiscalização pelos órgãos competentes, pela blindagem dos domicílios e invisibilidade das responsáveis pelos afazeres domésticos. Persistem ainda, da mesma forma, a vulnerabilidade à violência, casos de exploração sexual e a conturbada combinação entre intimidade, relações pessoais, familiares e de trabalho.
A delegação de tarefas domésticas a mulheres em condições economicamente desfavorecidas é incentivada, atualmente, também por um contexto que impulsiona a bipolarização do trabalho feminino, adotado como importante fator de determinação dos modelos de conciliação entre vida familiar e vida profissional.
Acerca do trabalho reprodutivo, de cuidado e assistência, percebe-se que a progressiva incorporação ao mercado de trabalho produtivo das mulheres não se fez acompanhar, na mesma velocidade, da assunção de responsabilidades familiares e domésticas por parte dos homens.
Não se adota, assim, o justo modelo de parceria e repartição igualitária das tarefas entre homens e mulheres. Cada vez mais solicitado o envolvimento pessoal no trabalho, são muitas as mulheres de classes economicamente favorecidas que precisam externalizar o trabalho doméstico que lhes é imputado socialmente recorrendo à imensa reserva de mulheres em situação de precariedade.
Em síntese, o trabalho doméstico conserva marcas do histórico escravocrata e patriarcal brasileiro. Sequer considerado trabalho pelas estatísticas, quando não remunerado, é reservado como profissão às mulheres de classes economicamente desfavorecidas, preponderantemente negras, caracterizando-se pela majoritária informalidade, baixas remunerações e desempenho oculto no interior das residências.
Tais condições, logicamente, são propícias à configuração do trabalho em condições análogas à escravidão, na forma especificada pelo artigo 149 do Código Penal.
As possibilidades fáticas de enquadramento do trabalho doméstico como escravidão contemporânea são variadas, devendo-se considerar a amplitude da sonegação de direitos e as peculiaridades históricas e sociais desta modalidade de labor.
Na modalidade de trabalho forçado, exemplificativamente, poder-se-ia considerar a imposição da prestação de serviços por meio de violência doméstica contra a mulher, em contexto de ameaças e pressões psicológicas.
Modalidades equiparadas que implicam cerceamento de liberdade, como a retenção de documentos pessoais, também são de viável configuração e já registradas na prática, notadamente considerando-se a baixa instrução de grande parcela das trabalhadoras domésticas.
No que tange às condições degradantes, não são incomuns as histórias de mulheres que, “pegas para criar” pelos empregadores, ainda crianças, são mantidas prestando serviços sem qualquer remuneração ou direito até a vida adulta ou velhice, nutrindo, por vezes, sentimentos deturpados de gratidão ao empregador pelo fornecimento de algum tipo de moradia e alimentação.
A situação dos filhos envolvidos na dinâmica familiar do empregador e a inexistência de parentes próximos e em condições de acolhimento da trabalhadora também a impelem a suportar condições de trabalho deploráveis.
Moradias em barracões ou cômodos em precárias condições de higiene e conforto são aparentemente comuns, conforme verificado em recentes casos de atuação do MPT. Por razões históricas, merece também preocupação a vulnerabilidade das mulheres em trabalho doméstico, especialmente quando iniciado na infância, a abusos sexuais por parte de empregadores e familiares.
Relativamente à servidão por dívida, há registros de comprovada apropriação pelo empregador de pensão por morte de titularidade de empregada doméstica, somada à ausência de remuneração pelos serviços prestados. A retenção de valores previdenciários ou assistenciais devidos às empregadas pode ser realizada indevidamente sob a justificativa de necessidade de pagamento das despesas com a moradia e gêneros alimentícios.
Finalmente, quanto à jornada exaustiva, o longo período de desproteção jurídica da duração do trabalho das domésticas era condizente com a prática corriqueira de exigência desmesurada de serviços a qualquer horário, quando residentes as empregadas no local de trabalho.
A total ausência de separação entre relações pessoais, vida familiar e laboral pode ser extremamente desgastante, especialmente quando associada a situações de degradação do ambiente de trabalho e local de moradia.
Gênero, raça, pobreza, invisibilidade, abuso sexual, violência, filhos, família, estigma: eis os elementos que, dentre tantos outros, merecem redobrada atenção dos juristas, estudiosos e instituições públicas comprometidas com o combate ao trabalho escravo, em se tratando do ambiente doméstico.
O trabalho de conscientização geral parece ser, por fim, a ferramenta primordial para a erradicação do trabalho escravo doméstico contemporâneo. A exploração de mulheres pobres e negras deve ser visibilizada e rechaçada pelos órgãos e instituições públicas para que possa, em consequência, indignar quem mais também dela se aperceba.
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JOTA

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