Alan Kozyreff

Hoje, sexta-feira, é dia de mais um capítulo do projeto <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/pergunte-ao-professor" target="_blank" rel="noopener noreferrer">“Dúvida Trabalhista? Pergunte ao Professor!</a>” dedicado a responder às perguntas dos leitores do JOTA, sob a Coordenação Acadêmica do Professor de Direito do Trabalho e Mestre nas Relações Trabalhistas e Sindicais, Dr. Ricardo Calcini. O projeto tem periodicidade quinzenal, cujas publicações são veiculadas sempre às sextas-feiras. E a você leitor que deseja ter acesso completo às dúvidas respondidas até aqui pelos professores, basta acessar o portal com a <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/pergunte-ao-professor">#pergunte ao professor</a>.
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Neste episódio de nº 42 da série, a dúvida a ser respondida é a seguinte:
Pergunta ► É legítima a abertura de processos seletivos para contratação de pessoas negras, a exemplo do fato notório ocorrido com empresa Magazine Luiza? Afinal, adotar critérios como sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar, deficiência, reabilitação profissional ou idade não são hipóteses discriminatórias, tais como referidas pela Lei n. 9.209/95?
Resposta ► Com a palavra, o Professor Alan Kozyreff.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
O tema proposto foi objeto de vários debates e causou uma série de discursos apaixonados sendo até mesmo utilizado para sustentar discursos políticos das mais variadas ideologias.
A presente abordagem tem a intenção de dar uma visão precipuamente jurídica, não sendo utilizada a expressão “somente” como forma de simplificar o debate, mesmo porque neste campo a análise da matéria é também polêmica e desperta várias análises de múltiplos recortes científicos sobre o mesmo fato. Também é importante que se registre que não há nenhuma intenção de esgotar o assunto, pois o embate de ideias é exatamente o que se espera. Já disse um eminente professor que não existe argumento certo ou errado, mas sim aquele que é e o que não é fundamentado.
A adoção de práticas antidiscriminatórias tem como fim principal combater a segregação por qualquer motivo, para então conceder efetivamente o mesmo tratamento às pessoas humanas independentemente de qual seja a sua condição.
Em nosso ordenamento jurídico vários são os exemplos de normas que estabelecem a igualdade entre as pessoas naturais. A começar pelo texto constitucional que, no art. 5º, inaugura os direitos fundamentais da pessoa humana, estabelecendo o princípio da isonomia, sendo vedada distinção de qualquer natureza, salvo se prevista em lei.
Nas relações de emprego, a norma que estabelece o combate à discriminação é a Lei nº 9.209/1995, advinda do Projeto de Lei nº 229/1991 e que inicialmente visava impedir a empresa de exigir atestado de esterilidade ou teste de gravidez da trabalhadora e de candidatas ao emprego. Posteriormente, durante o processo legislativo, foram inseridos no caput do artigo 1º demais vedações a práticas discriminatórias, como limitar acesso ou manutenção de emprego em razão de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar, deficiência, reabilitação profissional, idade, dentre outros.
É importante para análise do questionamento proposto entender a ratio da norma. Nos valendo novamente da construção legislativa, nota-se que foi buscada uma forma de impedir o empregador de selecionar o trabalhador com base em elementos discriminatórios, sem fundamentação legal, diante de um conceito preestabelecido, sem uma análise mais pormenorizada da sua capacidade, ou seja, de forma a inibir a concorrência diante de critérios que não irão impactar na prestação dos serviços.
Em nível internacional, a Convenção nº 111 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) nos auxilia na conceituação da discriminação como sendo “toda distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social, que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidade ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão”. No item 2 da referida norma é exposto que não se consideram práticas discriminatórias as distinções, exclusões ou preferências, desde que devidamente fundamentadas e necessárias para o emprego.
É importante estabelecer que, no caso amplamente divulgado da empresa Magazine Luiza, parece evidente e incontroverso que não se está diante de um oferecimento de vagas de emprego regular, mas sim de inserção de pessoas com perfil escolar adequado em programa de Trainee, ou seja, um período em que jovens realizam treinamento para capacitação pessoal e que, eventualmente, no futuro, podem ser chamados para a participação em projeto de seleção e contratação pela empresa. Neste sentido, até mesmo a aplicação da Lei nº 9.029/1995 pode ser entendida como prejudicada, pois ela não abordaria situações à margem da relação de emprego, tal como ocorrido com os “trainees” do Magazine Luiza.
No entanto, é importante verificar que todas as normas que procuram estabelecer isonomia entre pessoas têm escondida em suas entrelinhas a indução de práticas para que esta igualdade seja eminentemente material, e não simplesmente formal, fato que é altamente recomendável.
Atitudes de preferência a determinada raça ou etnia, quando existe uma clara consciência de que ela é historicamente prejudicada e mesmo ilegalmente segregada, representam o que se chama de ações afirmativas, de modo a induzir que a igualdade de condições seja estabelecida, com a finalidade de correção efetiva de desigualdades. Neste prumo é o Estatuto da Igualdade Racial, Lei nº 12.288/2010, que tem como finalidade “garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica” (art. 1º).
Diante de tal finalidade, são eleitas uma série de ferramentas com fundamento jurídico e apoio sociológico, cujas ações afirmativas são entendidas como “programas e medidas especiais adotados pelo Estado e pela iniciativa privada para a correção das desigualdades raciais e para a promoção da igualdade de oportunidades” (inciso VI do parágrafo único do art. 1º).
Quando o dispositivo menciona que os programas e medidas a serem adotados podem ser realizados pela iniciativa privada, franqueia que este importante ator social realize projetos contribuindo com a igualdade racial. Assim, a lei reconhece a função social da empresa como fomentadora da inclusão e da promoção social por meio da educação constitucionalmente prevista.
Ao conceder treinamento para jovens negros, o escopo não é de oferecer emprego, mas sim capacitar uma grande parcela da população que não teria condições de ingressar em um programa se estivesse em concorrência com demais jovens com melhores oportunidades na vida até aquele momento. Ou seja, os jovens negros possuem, como reconhecido pela própria Lei nº 12.288/2010, menores oportunidades que os jovens brancos.
Isso fica bastante evidente quando é analisado o mercado de trabalho pelo topo da carreira. Em matéria veiculada no sítio da internet do jornal Estadão<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, em 27/09/2020, foi constatado que na direção das 100 maiores empresas do Brasil não há um presidente negro, sendo que em cargos de direção os negros representam 4,7% e na gerência 6%. Na mesma reportagem, o professor Carlos Arruda, da Fundação Dom Cabral, uma das mais conceituadas escolas do Brasil na formação de executivos, gestores públicos e empresários, afirmou que, desde que o MBA da instituição foi criado em 1989, mais de 1.000 executivos foram formados, mas desses somente 10 (ou 1%) eram negros.
Ainda como forma de apresentar fatos ao debate, em 2019 o IBGE divulgou dados sobre a desigualdade no país e os publicou na edição nº 41 da Revista Estudos e Pesquisas - Informação Demográfica e Socioeconômica<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Pelos números apresentados podemos notar que em 2018, apesar das pessoas pretas ou pardas representarem mais da metade da força de trabalho (54,9%), elas possuíam a maior taxa de desocupados ou subutilizados, formando cerca de 2/3 dos desocupados (64,2%) e dos subutilizados (66,1%). Dessa forma, quando se nota a prática de seleção para o programa de trainee visando a população negra, e, sobretudo, diante do quadro acima apresentado, infere-se que se trata, em realidade, de uma forma de proporcionar uma ação afirmativa cidadã, bastante razoável ao princípio da função social das empresas.
Destaca-se ainda que ações afirmativas, como essa bastante divulgada pela Magazine Luiza, bem como aquelas encampadas por empresas como a Bayer, são atuações que não representam uma alteração por completo da forma de contratação da empresa, mas sim, em certa medida, trazer para dentro da corporação pessoas de realidades distintas fomentando a diversidade.
O Ministério Público do Trabalho – que tem como função principal a atuação na defesa dos direitos coletivos e individuais na área trabalhista – quando foi instado a se pronunciar sobre caso envolvendo o Magazine Luiza, entendeu pela inexistência de irregularidade no processo seletivo para o seu Programa de Trainee, não se identificando lesão nem ameaça de lesão a direitos<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
É importante que esclareça que, se o caso do Magazine Luiza abordasse a efetiva contratação de empregados, o enfrentamento da Lei nº 9.029/1995 poderia ser outro. No entanto, mesmo nesta situação, de forma analógica, pode ser utilizado como argumento de validade a apreciação, até mesmo pelo STF, do sistema de reserva de vagas para negros em concurso público.
A esse respeito foi o julgamento da ADPF nº 186: “Não contraria - ao contrário, prestigia – o princípio da igualdade material, previsto no caput do art. 5º da Carta da República, a possibilidade de o Estado lançar mão seja de políticas de cunho universalista, que abrangem um número indeterminados de indivíduos, mediante ações de natureza estrutural, seja de ações afirmativas, que atingem grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a estes certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitir-lhes a superação de desigualdades decorrentes de situações históricas particulares”<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
Ademais, outras ações de práticas antidiscriminatórias são encontradas, por exemplo, no sistema de cotas como as pessoas com deficiência (PCDs). Nestas situações, a legislação somente impõe um mínimo para a contratação e, dessa forma, não haveria qualquer vedação no caso de o empregador extrapolar a contratação de pessoas com algum grau de vulnerabilidade.
Um ator social bastante importante e que pode induzir ações afirmativas é, sem dúvida, o sindicato, pois ele representa legitimamente os interesses de grande parte dos trabalhadores, podendo até estabelecer normas coletivas sobre essas práticas.
É relevante ainda entender que a lógica das ações afirmativas, da mesma forma que as normas relativas a cotas para pessoas com determinadas características legalmente descritas, tende a ser aplicada com alguma previsão de prazo de sua validade, qual seja, até que seja sentido algum resultado social minimamente satisfatório indicado na política pública que o fundamenta. Mais ainda, portanto, há que se apoiar a iniciativa da empresa Magazine Luiza, na medida em que sem ela o vazio de atividades inclusivas seria ainda mais profundo.
Para fins de apresentar o debate de ideias, a Defensoria Pública da União entendeu que a prática da referida empresa viola o ordenamento jurídico, em razão da discriminação pela cor como critério para admissão de empregados e, por tal razão, ajuizou Ação Civil Pública em face do Magazine Luiza<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>. Para a Defensoria, a opção da empresa não seria uma ação afirmativa, pois esta possui a prática de atividade com a conotação de promover a igualdade de oportunidades, sem privar a generalidade dos indivíduos das demais pessoas no mercado de trabalho.
Diante dessa tese, a Defensoria apresenta como pedidos principais a limitação das inscrições para o programa de trainee, a abstenção de condutas que discriminem o trabalhador e a condenação em uma compensação financeira por danos morais coletivos, em valor não inferior a R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais).
Sobre esta ação, a Defensoria Pública da União emitiu nota oficial informando que a Ação Civil Pública representa o entendimento pessoal do defensor público que a propôs e que o referido órgão “apoia e incentiva medidas do poder público e da iniciativa privada que proporcionem redução de carências e de vulnerabilidade”.
A par de todo exposto, e como mencionado no início do texto, o tema comporta grande número de argumentos jurídicos, centro de nosso interesse de colaboração e não se está atrás do que pode ser considerado subjetivamente correto, mas sim de se trazer argumentos para um qualificado debate.
É preciso, em arremate, ter clareza que chegará um momento que nós, como sociedade, devemos reconhecer que erros foram praticados no passado e que a grande desigualdade social necessita ser consertada.
<hr />
O Sem Precedentes desta semana analisa <a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/bolsonaro-indica-kassio-nunes-stf-01102020" target="_blank" rel="noopener noreferrer">surpreendente indicação</a> de Kassio Nunes Marques, hoje desembargador do Tribunal Regional Federal da Primeira Região (TRF1), para o Supremo Tribunal Federal (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stf">STF</a>). Ouça:
https://www.youtube.com/watch?v=6UbopF1SKqA&amp;feature=emb_title
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Advogado e professor na Universidade de Sorocaba. Doutorando em Ciências Farmacêuticas, Mestre em Direito da Saúde, Especialista em Direito do Trabalho e Especialista em Direito Previdenciário.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2020/09/27/novo-consumidor-leva-empresas-a-buscar-maior-inclusao-de-negros.htm
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> https://www.conjur.com.br/dl/trainee-magazine-luiza.pdf
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> ADPF 186; Relator Min. Ricardo Lewandowski; j. em 26/04/2012.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> https://www.conjur.com.br/dl/acao-dpu-magalu.pdf

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JOTA

É legítima a abertura dos processos seletivos como do Magazine Luiza? 

Abertura de processos seletivos para contratação de pessoas negras

É legítima a abertura de processos seletivos para contratação de pessoas negras? Adotar critérios como sexo, origem, cor ou deficiência não são hipóteses discriminatórias, tais como referidas pela Lei n. 9.209/95?