Alexandre de Oliveira Ribeiro Filho

Digamos, hipoteticamente, que determinada autoridade executiva, de um dado Estado Nação, atente contra os bens jurídicos mais caros à humanidade, mas, ainda assim, dada a conjuntura local, pelos mais diversos fatores, não se consiga responsabilizá-la por seus potenciais crimes no âmbito nacional. O que atrairia, nessa hipótese, a jurisdição (competência) do Tribunal Penal Internacional (TPI)? Como pode o TPI vir a ter sua jurisdição acionada?
Primeiro, é necessário compreender que o Direito Penal Internacional é norteado pelo princípio da subsidiariedade, segundo o qual é dever de cada Estado exercer a respectiva jurisdição penal sobre os responsáveis por crimes internacionais, de modo que o TPI funciona apenas e tão somente de forma complementar às jurisdições penais nacionais (ETPI, preâmbulo e art. 1º).
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>O exercício da jurisdição criminal, de forma independente ou imparcial, em conformidade com as garantias de um processo equitativo reconhecidas pelo direito internacional, ou a condução dessa jurisdição pelo Estado Nação de maneira que, no caso concreto, se revele compatível com a intenção de submeter a(s) pessoa(s) em causa à ação da justiça, afastam a jurisdição do TPI. No entanto, se a jurisdição penal nacional for exercida com o objetivo de subtrair o acusado à sua responsabilidade criminal pelos crimes internacionais, o TPI poderá ser acionado para julgar aquela(s) pessoa(s) (ETPI, art. 20).
Segundo, mas talvez ainda mais importante, há de se confirmar se aquele determinado Estado Nação é signatário do Estatuto de Roma e, desse modo, seus nacionais encontram-se submetidos à jurisdição do TPI (ETPI, arts. 4º.2, 11 e 12).
Terceiro, faz-se necessário verificar se os fatos se amoldam a um dos crimes graves previstos no Estatuto de Roma dentre aqueles que afetam a comunidade internacional no seu conjunto, quais sejam: o crime de genocídio, os crimes contra a humanidade, os crimes de guerra e o crime de agressão (ETPI, art. 5º).
Cabe ressaltar que o princípio da legalidade, tão caro ao civil law, não prepondera no âmbito do TPI, que contempla principalmente características do common law. Muito embora o princípio do nullum crimen sine lege esteja previsto no Estatuto de Roma, a tipificação de uma conduta como crime se dá nos termos do direito internacional, independentemente do Estatuto (ETPI, art. 22). Logo, os contornos dos crimes não são molduras fixas, são base para a aplicação de um direito consuetudinário. O TPI poderá aplicar os tratados, normas de direito internacional e normas de direito tal como já tenham sido interpretados em decisões anteriores (ETPI, art. 21). Os elementos constitutivos dos crimes podem ser interpretados e, até mesmo, alterados (ETPI, art. 9º).
<blockquote class="jota-article__eye">A despeito de todas as críticas que se possa fazer sobre isso, principalmente por juristas de tradição romano-germânica, a verdade é que, no âmbito do TPI, os tipos penais são abertos.</blockquote>
No caso do genocídio, por exemplo, os atos foram enumerados no Estatuto em rol não taxativo (ETPI, art. 6º). Já no caso dos crimes contra a humanidade, estão abrangidos, de forma ampla e genérica, atos desumanos que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental (ETPI, art. 7º, k).
Pois bem, saindo do campo abstrato para a realidade brasileira, atual, o que se vê é a formação de uma tempestade perfeita. Com efeito, temos um governo federal cujas políticas relacionadas à epidemia de Covid-19 causam espécie e, em tese, podem eventualmente caracterizar algum dos crimes internacionalmente repudiados; as autoridades constituídas, ao menos até o momento, não demonstraram real disposição de promover o devido escrutínio das ações das autoridades responsáveis; o Brasil é signatário do Estatuto de Roma, introduzido em nosso ordenamento jurídico interno pelo Decreto nº 4.388/02, e, portanto, nós brasileiros estamos sujeitos à jurisdição do TPI.
Há notícias de que “uma coalizão de entidades sindicais protocolou uma denúncia contra o presidente do Brasil Jair Bolsonaro no Tribunal Penal Internacional, sediado em Haia, por crimes contra a humanidade”. “A acusação diz respeito às ações do presidente durante a crise de saúde provocada pela Covid-19”.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> E seria a segunda do tipo, haja vista uma primeira denúncia relacionada a “ações de incitação ao genocídio e ataques sistemáticos contra populações indígenas”.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
Não bastasse, vozes importantes do cenário internacional já verbalizam a preocupação concreta de que a postura institucional da Presidência da República do Brasil, no tocante à forma como conduz as medidas sanitárias preventivas da pandemia de Covid-19, transcende as fronteiras nacionais, repercute internacionalmente e coloca em risco não apenas a saúde e a integridade física dos cidadãos brasileiros, mas de todos os cidadãos do mundo.
Internacionalmente, então, tirante a notícia de que já haveria uma denúncia formalizada, qualquer Estado Parte do Estatuto de Roma poderá denunciar a situação brasileira, tendo em vista a existência de indícios de que possa ter ocorrido a prática de um ou vários crimes da competência do Tribunal e solicitar uma investigação, com vista a determinar se uma ou mais pessoas identificadas deverão ser acusadas da prática desses crimes. Nesse caso, a palavra final quanto à tipificação criminal das condutas à luz do direito penal internacional estará a cargo do TPI, respeitado o devido processo o contraditório e a ampla defesa.
Daí que, a instalação da CPI da Covid no Senado, tão repudiada pelo presidente da República (como se ouviu no diálogo telefônico travado com parlamentar), pode constituir-se, paradoxalmente, em sua tábua de salvação, no sentido de afastar, ao menos por ora, a competência do TPI.
Entretanto, as hipóteses de não admissibilidade de casos pelo TPI restringem-se àquelas em que o Estado Parte efetivamente consiga levar a cabo inquérito ou procedimento criminal contra a(s) pessoa(s) em causa. Mais, é preciso que fique demonstrado, além da capacidade, o interesse de agir do Estado Parte (ETPI, art. 17).
Não basta, pois, que seja um simulacro de investigação. É preciso que a investigação parlamentar seja séria e efetiva, conduzida de maneira independente e imparcial, e de modo que, dadas as circunstâncias, seja compatível com a intenção de levar a(s) pessoa(s) em causa perante a justiça, caso contrário, a subsidiariedade restará superada e o caminho aberto para o TPI.
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pedra

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JOTA

Instalação da CPI da Covid pode, paradoxalmente, afastar, ao menos por ora, a competência do TPI

O caminho das pedras – e seus obstáculos – para o TPI

O princípio da legalidade, tão caro ao civil law, não prevalece no âmbito do Tribunal Penal Internacional (TPI)