Carlos Alberto Vilhena

Há 15 anos, estreava nos cinemas brasileiros Tropa de Elite, <a href="https://cbn.globoradio.globo.com/default.htm?url=%2Finstitucional%2Fhistoria%2Faniversario%2Fcbn-25-anos%2Fboletins%2F2016%2F08%2F03%2F2007-TROPA-DE-ELITE-E-SUCESSO-DE-BILHETERIA-E-DE-PIRATARIA.htm&amp;ref=">um dos maiores sucessos de 2007</a><a href="#_edn1" name="_ednref1">[i]</a>. O filme conta a história de Roberto Nascimento, capitão do Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro, o temido BOPE.
Uma das sequências mais brutais da película mostra o capitão e sua equipe interrogando um adolescente negro ligado ao tráfico de drogas. Os policiais buscam o chefe do tráfico e perguntam ao jovem, amarrado e ajoelhado, sobre seu paradeiro. O rapaz não delata, mesmo sendo esbofeteado repetidamente. Nascimento então ordena: “Bota ele no saco!”. Um policial asfixia o adolescente com um saco plástico. Ao voltar a respirar, ele é ameaçado de morte, mas não responde. Só fala quando ameaçam estuprá-lo com um cabo de vassoura.
A cena é fiel à definição de tortura contida na Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes:
<blockquote class="jota-article__citation">(...) qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência.<a href="#_edn2" name="_ednref2">[ii]</a></blockquote>
O Dia Internacional em Apoio às Vítimas de Tortura, celebrado em 26 de junho, tem o intuito de conscientizar a sociedade e <a href="https://treaties.un.org/Pages/ViewDetails.aspx?src=TREATY&amp;mtdsg_no=IV-9&amp;chapter=4&amp;clang=_en">fomentar o combate a toda forma de violência</a><a href="#_edn3" name="_ednref3">[iii]</a>.
A truculência dos personagens de Tropa de Elite baseia-se na experiência real de integrantes do BOPE, <a href="https://www1.folha.uol.com.br/livrariadafolha/788592-leia-trecho-de-livro-que-gerou-tropa-de-elite.shtml">descrita no livro </a>A Elite da Tropa<a href="#_edn4" name="_ednref4">[iv]</a>. Os policiais do filme seguem a longa tradição de tortura deste país.
Torturaram-se os escravos e os indígenas no período colonial; os pobres e marginalizados na virada do século XX; e os presos políticos durante o Estado Novo. A institucionalização e o agravamento da tortura política ocorreram durante a ditadura militar, após a edição do AI-5 em 1968<a href="#_edn5" name="_ednref5">[v]</a>.
A atuação policial no padrão Tropa de Elite, com uso da tortura contra os mais pobres deve-se, em parte, à ditadura. O regime militar valeu-se sistematicamente das polícias para torturar, deixando uma marca naquelas instituições.
Marca confirmada recentemente em Sergipe, onde agentes da polícia rodoviária federal fecharam Genivaldo de Jesus Santos na traseira de um camburão, junto com uma granada de gás lacrimogêneo, causando sua morte por asfixia.
Genivaldo era esquizofrênico e ofereceu resistência à prisão<a href="#_edn6" name="_ednref6">[vi]</a>, mas como não classificar o ato dos policiais como tortura? Qual é a razão de prender uma pessoa em um cubículo e enchê-lo de gás, senão coagi-la ou castigá-la?
Tortura é crime tipificado pela Lei nº 9.455, de 1997, que prevê pena de até 21 anos de reclusão, caso um agente público, por praticá-la, provoque a morte de alguém<a href="#_edn7" name="_ednref7">[vii]</a>.
Ainda assim, esse mal se espalha por outras áreas do Estado, como nosso sistema carcerário. Nele, segundo o CNJ, há quase 920 mil pessoas<a href="#_edn8" name="_ednref8">[viii]</a> e um déficit de 212 mil vagas<a href="#_edn9" name="_ednref9">[ix]</a>.
A superlotação, por si só, já é desumana. Em audiência na Câmara dos Deputados, em 2021, houve relato de pessoas presas em viaturas por 15 ou 20 dias, por falta de vagas nas celas das delegacias de Porto Alegre/RS<a href="#_edn10" name="_ednref10">[x]</a>.
Em 2020 e 2021, inspeções do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) — órgão federal formado por 11 peritas e peritos — evidenciaram maus-tratos contra pessoas encarceradas.
Superlotação, castigos físicos e psicológicos, além de cuidados inadequados no combate à pandemia de Covid-19, são apenas alguns dos problemas apontados pelo MNPCT<a href="#_edn11" name="_ednref11">[xi]</a>.
O próprio mecanismo enfrenta desafios. O Executivo buscou minar sua atuação, editando o Decreto nº 9.831/2019, que transformou o trabalho dos peritos em atividade não remunerada. Sem salários, não haveria equipe pericial exclusiva para aquele órgão. Felizmente, decisão liminar da Justiça Federal do RJ sustou os efeitos do decreto<a href="#_edn12" name="_ednref12">[xii]</a>.
O MNPCT integra o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (SNPCT), que articula ações entre seus membros para fortalecer o enfrentamento à tortura. Dele também fazem parte o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária e o Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça<a href="#_edn13" name="_ednref13">[xiii]</a>. Podem igualmente participar do sistema comitês e mecanismos estaduais e distritais de combate à tortura, entre outras entidades dedicadas ao tema<a href="#_edn14" name="_ednref14">[xiv]</a>.
Comitês e mecanismos estaduais tendem a aumentar a eficácia do SNPCT, ampliando seu alcance. Neles, poder público e sociedade podem desenvolver políticas públicas e ações de fiscalização contra a tortura.
Até 2021, existiam só 18 Comitês e 4 Mecanismos Estaduais de Prevenção e Combate à Tortura no Brasil, operando com parcos recursos financeiros e pouco apoio do poder público<a href="#_edn15" name="_ednref15">[xv]</a>.
Para enfrentar esse desafio, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) tem buscado estimular a criação desses órgãos.
Em fevereiro, a PFDC articulou-se com 22 Procuradorias Regionais dos Direitos do Cidadão (PRDCs) para buscar as autoridades estaduais e distritais, visando criar comitês e mecanismos de combate à tortura naqueles entes federativos.
A meta é seguir o exemplo do Acre, onde um Termo de Ajustamento de Conduta foi celebrado entre a PRDC, o governo estadual e outros órgãos públicos para reativar o comitê daquele estado<a href="#_edn16" name="_ednref16">[xvi]</a>.
Além disso, em 2022, a PFDC e o MNPCT inspecionaram prisões em Goiás, Pernambuco e Paraná, constatando as condições desumanas daqueles locais.
A situação é grave. A população vulnerável está sob a constante ameaça de tortura do Estado. Um Estado que deveria protegê-la.
O SNPCT necessita dos comitês e mecanismos estaduais. Os agentes públicos precisam receber boa formação em direitos humanos. A tortura deve ser desnaturalizada por meio de campanhas educacionais, que promovam o valor constitucional da dignidade humana.
É preciso entender que a integridade física de inocentes, suspeitos ou culpados é igualmente importante. “Bota ele no saco!” tem de pertencer aos livros de história e às obras de ficção. Senão, mantendo práticas opostas àquelas necessárias ao fortalecimento da nossa democracia, asfixiaremos o futuro do Brasil.
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<a href="#_ednref1" name="_edn1">[i]</a> <a href="https://cbn.globoradio.globo.com/default.htm?url=%2Finstitucional%2Fhistoria%2Faniversario%2Fcbn-25-anos%2Fboletins%2F2016%2F08%2F03%2F2007-TROPA-DE-ELITE-E-SUCESSO-DE-BILHETERIA-E-DE-PIRATARIA.htm&amp;ref=">https://cbn.globoradio.globo.com/institucional/historia/aniversario/cbn-25-anos/boletins/2016/08/03/2007-TROPA-DE-ELITE-E-SUCESSO-DE-BILHETERIA-E-DE-PIRATARIA.htm</a>. Acesso em 20/06/2022.
<a href="#_ednref2" name="_edn2">[ii]</a> Conforme o texto ratificado pelo Decreto nº 40/1991. Disponível em <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0040.htm">http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0040.htm</a>. Acesso em 13/06/2022.
<a href="#_ednref3" name="_edn3">[iii]</a> <a href="https://treaties.un.org/Pages/ViewDetails.aspx?src=TREATY&amp;mtdsg_no=IV-9&amp;chapter=4&amp;clang=_en">https://treaties.un.org/Pages/ViewDetails.aspx?src=TREATY&amp;mtdsg_no=IV-9&amp;chapter=4&amp;clang=_en</a>. Acesso em 22/06/2022.
<a href="#_ednref4" name="_edn4">[iv]</a> <a href="https://www1.folha.uol.com.br/livrariadafolha/788592-leia-trecho-de-livro-que-gerou-tropa-de-elite.shtml">https://www1.folha.uol.com.br/livrariadafolha/788592-leia-trecho-de-livro-que-gerou-tropa-de-elite.shtml</a>. Acesso em 13/06/2022.
<a href="#_ednref5" name="_edn5">[v]</a> COIMBRA, Cecília Maria Bouças. TORTURA ONTEM E HOJE: RESGATANDO UMA CERTA HISTÓRIA Disponível em <a href="https://www.scielo.br/j/pe/a/sHSXNwdpt6x5LsLMc9S7pgd/?format=pdf&amp;lang=pt">https://www.scielo.br/j/pe/a/sHSXNwdpt6x5LsLMc9S7pgd/?format=pdf&amp;lang=pt</a>; Acesso em 09/06/2022;
<a href="#_ednref6" name="_edn6">[vi]</a> <a href="http://?">https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/05/homem-morre-asfixiado-em-viatura-da-policia-rodoviaria-federal-em-se.shtml</a>. Acesso em 14/06/2022.
<a href="#_ednref7" name="_edn7">[vii]</a> <a href="http://?">http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9455.htm</a>. Acesso em 14/06/2022.
<a href="#_ednref8" name="_edn8">[viii]</a> Disponível em <a href="https://portalbnmp.cnj.jus.br/#/estatisticas">https://portalbnmp.cnj.jus.br/#/estatisticas</a>. Acesso em 14/06/2022.
<a href="#_ednref9" name="_edn9">[ix]</a> Segundo matéria do site Metrópoles. Disponível em <a href="https://www.metropoles.com/brasil/sistema-prisional-brasileiro-tem-deficit-de-212-mil-vagas-diz-depen#:~:text=Sistema prisional brasileiro tem déficit de 212 mil vagas%2C diz Depen,-O Departamento Penitenciário">https://www.metropoles.com/brasil/sistema-prisional-brasileiro-tem-deficit-de-212-mil-vagas-diz-depen#:~:text=Sistema%20prisional%20brasileiro%20tem%20d%C3%A9ficit%20de%20212%20mil%20vagas%2C%20diz%20Depen,-O%20Departamento%20Penitenci%C3%A1rio</a>. Acesso em 14/06/2022.
<a href="#_ednref10" name="_edn10">[x]</a> Disponível em <a href="http://?">https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/noticias/observatorio-parlamentar-verifica-situacao-de-carceres-e-de-combate-a-tortura-no-brasil-1</a>. Acesso em 14/06/2022.
<a href="#_ednref11" name="_edn11">[xi]</a> Disponível em <a href="http://?">https://mnpctbrasil.files.wordpress.com/2022/05/relatocc81rio-bienal-2020-2021-versao-final-3.pdf</a>. Acesso em 14/06/2022.
<a href="#_ednref12" name="_edn12">[xii]</a> Conforme relatório do MNPCT, págs. 35. Disponível em <a href="http://?">relatocc81rio-bienal-2020-2021-versao-final-3.pdf (wordpress.com)</a>. Acesso em 20/06/2022.
<a href="#_ednref13" name="_edn13">[xiii]</a> <a href="http://?">https://www.gov.br/participamaisbrasil/o-sistema-nacional-de-prevencao-e-combate-a-tortura</a>; Acesso em 15/06/2022.
<a href="#_ednref14" name="_edn14">[xiv]</a> <a href="http://?">http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12847.htm</a>. Acesso em 15/06/2022.
<a href="#_ednref15" name="_edn15">[xv]</a> Conforme relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura para o biênio 2020-2021, pág. 44. Disponível em <a href="http://?">https://mnpctbrasil.files.wordpress.com/2022/05/relatocc81rio-bienal-2020-2021-versao-final-3.pdf</a>. Acesso em 15/06/2022.
<a href="#_ednref16" name="_edn16">[xvi]</a> <a href="http://?">http://www.mpf.mp.br/pfdc/noticias/pfdc-incentiva-a-implantacao-de-orgaos-de-prevencao-e-combate-a-tortura-em-todo-o-brasil</a>. Acesso em 15/06/2022.

direitos humanos

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JOTA

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