Pedro Marcos Nunes Barbosa

Na bolha em que habito, o seguinte relato é relativamente comum: durante viagens internacionais os interlocutores notam que os mesmos produtos achados em centros comerciais nacionais são disponibilizados no exterior a preços substancialmente menores. Seja quando o bem de consumo versa sobre aparatos tecnológicos, maquilagens ou mesmo indumentária de luxo, as percepções não são essencialmente díspares. Aliás, quase sempre há um consenso holístico de que tudo seria resultado de uma política pública de severa tributação canarinha.
Em tempos de legítimas restrições às perambulações internacionais, tal heurística pode ser confirmada como verdadeira consultando sítios virtuais. Se o leitor estiver cogitando trocar seu aparelho telefônico por um modelo mais novo, experimente acessar o sítio do fornecedor com o sufixo ‘.br’ e o mesmo sítio virtual do originador, porém com o final ‘.com’. Compare o exato modelo convertendo a moeda (Dólar estadunidense para o Real), e repare se não há um fosso abissal entre o preço lá e cá?!
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Não me parece haver grandes dúvidas acerca da forte oneração tributária sobre o consumo no Brasil, mas há certa mitologia no tocante à pseuda ausência de densa tributação nos países ricos, aqueles mesmos nos quais tais sujeitos realizam suas atividades turísticas. Para o assombro de muita gente, um dos maiores condicionantes da disparidade de preços dos idênticos produtos, a nosso desfavor, é correlacionado ao direito da propriedade intelectual<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Em outras palavras, o sujeito empresário (titular de direitos de exclusividade) é tão responsável pelos salgados valores cobrados aqui<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> quanto o ente tributante<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> (muitas vezes tratado como a protagonista da canção ‘Geni e o Zepelim’ de Chico Buarque).
Tal assertiva parte da seguinte premissa: apesar do dito mercado globalizado, muitas práticas comerciais são regionalizadas, estratégias empresariais são estratificadas e os preços podem ser profundamente diferenciados. Sabe-se que, de outro lado, “faturas” mais gordas aos hipersuficientes nem sempre é sinal de injustiça. Pense-se no princípio da capacidade contributiva<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> que influi a hermenêutica do direito tributário, ou no binômio da possibilidade/necessidade que impacta na hermenêutica sobre pensões alimentícias.
<blockquote class="jota-article__eye">O direito propulsiona, incentiva e promove raciocínios sobre paridade de armas e isonomia material.</blockquote>
Contudo, o que legitimaria cobrar-se mais caro pelo mesmo bem, em harmonia de condições, do consumidor sul-americano face àquilo exigido ao destinatário final europeu, asiático ou norte-americano? Dentro de tal mote, eventual discriminação<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> de preços parece ser inversamente proporcional ao poder médio de compra do destinatário.
Os seguintes casos podem auxiliar o leitor a notar a relevância do problema narrado: (A) uma pessoa ‘x’ compra um carro zero quilômetro por R$30 mil, tendo adimplido integralmente o valor devido a credora/concessionária ‘y’. Desfilando com seu veículo automotor pelo bairro em que mora, um transeunte lhe faz uma proposta ‘indecorosa’ para imediatamente lhe pagar R$35 mil pelo carro. Teria ‘y’ algum direito a mais-valia incidental? Poderia a concessionária ‘y’ impedir a atividade de ‘x’ para novas vendas (com lucro) a outros transeuntes exóticos que estejam tomados pelo desidério de pagar mais caro pelos carros? A resposta a ambas as perguntas é negativa, já que seja pela autonomia privada de ‘x’ e do adquirente incidental, ou pelas faculdades cabíveis aos titulares de direitos de propriedade, nenhuma voz tem ‘y’ nestes assuntos. O controle de ‘y’ sobre o bem vendido simplesmente cessou. A eficiência de ‘x’ ao encontrar quem quisesse lhe comprar a mesma coisa que ‘y’ oferece, porém a maior preço, será do legítimo lucro do primeiro.
Ainda, (B) um brasileiro (‘w’) durante um aprazível passeio por Buenos Aires adquire um conhecido alfajor (com cobertura de merengue) alienado pelo produtor ‘z’, e verifica que o preço daquele exato bem praticado no Brasil, mesmo com a conversão monetária, é cinco vezes mais caro. Encantado pela oportunidade de mercado (expectativa de lucro) ou entusiasta da lógica de majoração de acesso às guloseimas adocicadas (utopia), resolve comprar milhares de discos com recheio de doce de leite na capital argentina e revendê-los com lucro no Brasil. Ao ingressar no território nacional, ‘w’ adimple todos os tributos pertinentes e consegue, ainda assim, ofertar – com lucro – um preço mais baixo do que aquele praticado pelo titular dos direitos de propriedade intelectual no Brasil. Os consumidores de alfajores portenhos então em júbilo, pois além do fornecedor/produtor ‘z’, agora há também ‘w’ que vende produtos originais a preços que se aproximam dos docinhos nacionais. No entanto, ‘z’ fica furioso com tal tropeço em sua estratégia de preços diferenciados no mercado global. A questão a ser respondida é: ‘z’ pode obstar ‘w’, depois de ter alienado em escala seus produtos para o último a preço de mercado, de realizar sua autonomia privada para com terceiros?
A expressão ‘chave’ que explica o cerne das possíveis respostas ao caso (B) se chama exaustão de direitos, bem como comporta fenômenos interessantes como o da importação paralela<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>. Tal questão controversa não atingiu parâmetros razoáveis de consenso internacional, de modo que em acordo ao mais importante Tratado-Contrato (Acordo ADPIC/TRIPs<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>) pertinente, todos os modelos regulatórios são aceitáveis<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>.
Ou seja, tanto um país pode determinar que após a primeira venda o alienante-titular de ‘direitos intelectuais’ (i) não tenha mais qualquer controle sobre o bem (exaustão internacional); (ii) não tenha controle sobre o bem se ele for objeto de novos atos de comércio dentro do bloco econômico (exaustão regional); ou (iii) não tenha controle sobre o bem se ele for objeto de novos atos de comércio dentro do país em que ocorreu a alienação, mas pode cercear qualquer outro ato em outros países.
A exaustão nacional – segundo alguns autores<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a> – seria o modelo vigente no Brasil. Ele, entretanto, não garante a fabricação nacional<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a> dos produtos protegidos por direitos de Propriedade Intelectual, bem como não traduz qualquer vantagem específica. Cuida-se, apenas, de uma opção política. Desta forma, ressalte-se inexistirem vantagens para o desenvolvimento tecnológico, econômico e social local (art. 5º, XXIX, da CRFB) em hipertrofiar<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a> o controle pós-venda do dono dos direitos de propriedade intelectual. Pelo contrário, os países que adotam o modelo (iii) tornam-se vítimas – em potencial – de preços discriminatórios. Aliás, para além da lesão direta ao consumidor local, o próprio erário tem seus interesses públicos secundários vilipendiados, já que acaba perdendo parte da renda tributária com o turismo de consumo sendo praticado em outros países que não sofrem com preços discriminatórios.
Apure-se que não são inéditas na Ordenação nacional regras que majoram o controle pós-venda do alienante, a exemplo da restrição a prática popularmente conhecida como cambismo<a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a>. Contudo, o bem jurídico ali tutelado é a economia popular, contra atos de intermediários que sirvam a criar barreiras de acesso ilegítimas às atividades culturais. Em outras palavras, cuida-se de manietar um intermediário que apenas sirva para majorar preços e atravancar o contato direto entre consumidor e fornecedor: é o sujeito traduzido pela expressão ‘pedra no sapato’.
O caso (B) denota exatamente o oposto do caso (ilegal e ilegítimo) do cambista: um intermediário que serve a evitar que o fornecedor cobre preços muito maiores do consumidor, concorrendo dentro da esfera da titularidade dos direitos intelectuais, ofertando produtos/serviços originais. A concorrência endógena aos bens tutelados por propriedade intelectual não é apenas conforme uma leitura capitalista e liberal da ordem econômica (art. 170, IV e IV da CRFB), mas também bastante saudável e proveitosa a todos aqueles afetados pelas titularidades. Exemplo positivo de tal fenômeno pode ser observado, além do caso da importação paralela, nas marcas coletivas, nas indicações geográficas, nas franquias (entre os próprios franqueados), nos direitos dos pré-utentes de patentes (dono da patente e possuidor anterior), na licença compulsória (titular e licenciado) etc.
Desta forma, se temos o direito de nos portarmos como tolinhos e pagar mais caro pelo mesmo produto (caso ‘A’) – desde que seja o puro e espontâneo funtor de nossa autonomia privada –, não temos o dever de fazê-lo. A moldura hermenêutica internacional e pátria sobre um regime de capitalismo de mercado não nos impõe hipertrofias pós-venda em favor de titulares de direitos de propriedade intelectual que queiram discriminar o Brasil (e os brasileiros) com preços artificialmente maiores. Portanto, a resposta a questão (caso ‘B’) mais consentânea à legalidade constitucional é aquela que não prestigia, apenas, a autonomia privada do primeiro alienante, mas, na mesma medida, as liberdades do segundo e a dos adquirentes<a href="#_ftn13" name="_ftnref13">[13]</a>. Titularidade e controle não são fatos jurídico-econômicos ilimitados e irrestritos<a href="#_ftn14" name="_ftnref14">[14]</a>.
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O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Para uma introdução objetiva a tal matéria recomenda-se a leitura de SILVEIRA, Newton. Propriedade Intelectual. 6ª Edição, São Paulo: Manole, p. 83.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a>“Se o agente sabe que pode influenciar os preços, procurará necessariamente encontrar a combinação de quantidade e preço que lhe proporcione o maior lucro.” SALOMÃO, Calixto Filho. Direito Concorrencial, as estruturas. 2ª Edição São Paulo, Malheiros: 2002, p. 96.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> “[...] embora as forças de mercado ajudem a moldar o nível da desigualdade, as políticas governamentais moldam essas forças de mercado. Muita da desigualdade atual resulta de políticas governamentais, tanto as que o Governo aplica como as que se abstêm de aplicar. O Estado tem o poder de movimentar dinheiro do topo para a base e para o meio, ou vice-versa.” STIGLITZ, Joseph Eugene. O preço da Desigualdade. 2ª Edição, Lisboa: Bertrand, 2016, p. 89.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> “No plano legislativo, o princípio da capacidade contributiva tem a função de servir como limite à escolha da matéria factual para compor a hipótese de incidência de normas tributárias, porquanto o fato escolhido deverá ser revelador, com certa precisão, da capacidade econômica do sujeito passivo para suportar o encargo fiscal.” TÔRRES, Heleno Taveira. Direito Tributário e Direito Privado – Autonomia Privada, Simulação, Elusão Tributária. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 262.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Mutatis mutandi: “Discrimination produces on average, so far as anyone knows, no net social benefits. The motive and consequence are to increase profits, and the costs incurred in discriminating, which include not only those mentioned already but also distortions in competition between favored and disfavored purchasers from the discriminating seller, are, on average, a net social cost, since, on average, discrimination does not improve resource allocation (it does when it increases output over the single-price monopoly output).” LANDES, William M &amp; POSNER, Richard Allen. The Economic Structure of Intellectual Property Law. EUA: Harvard University Press, 2003, p. 389.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Para um aprofundamento na matéria permita-se a remissão ao texto “A Autonomia Interna e as Relações Externas nos Contratos Empresariais: as Restrições Verticais, o Direito Antitruste e a Importação Paralela de Marcas”, publicado em coautoria com Leandro Saito e Ana Cristina von Gusseck Kleindienst na Revista da EMARF, Tribunal Regional Federal da 2ª Região, 19º Volume, novembro de 2013, disponível em <a href="about:blank">https://emarf.trf2.jus.br/site/documentos/revistaemarfvol19.pdf</a>.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Documento que regula o grau de soberania exercida por cada país membro da Organização Mundial do Comércio, com relação aos direitos de propriedade intelectual, do qual o Brasil faz parte.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> “Reflecting the sensitivity of the issue, the TRIPS agreement does not establish any mandate for rules on exhaustion in any area of intellectual property law. TRIPS Article 6 expressly permits WTO member states to adopt a rule of international exhaustion (i.e., an authorized sale of an intellectual property-protected good anywhere in the world exhausts domestic intellectual property rights) or national exhaustion (i.e., only an authorized domestic sale exhausts domestic intellectual property rights).” JANIS, Mark D. Trademark and Unfair Competition. 2ª Edição, Albuquerque: West Academic, 2017, p. 339.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Tais autores realizam uma interpretação a contrário sensu do texto da Lei 9.279/96: “Art. 68. O titular ficará sujeito a ter a patente licenciada compulsoriamente se exercer os direitos dela decorrentes de forma abusiva, ou por meio dela praticar abuso de poder econômico, comprovado nos termos da lei, por decisão administrativa ou judicial. (...) § 4º No caso de importação para exploração de patente e no caso da importação prevista no parágrafo anterior, será igualmente admitida a importação por terceiros de produto fabricado de acordo com patente de processo ou de produto, desde que tenha sido colocado no mercado diretamente pelo titular ou com o seu consentimento.” Suscitando que o modelo da exaustão internacional afugentaria a transferência de tecnologia para países em desenvolvimento vide BASSO, Maristela. Propriedade Intelectual e Importação Paralela. São Paulo: Atlas, 2011. Não localizei, contudo, qualquer estudo, fundamento jurídico ou econômico firme neste sentido.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> Convenção União de Paris: “Art. 5o A. - (1) A introdução, pelo titular da patente, no país em que esta foi concedida, de objetos fabricados em qualquer dos países da União não acarreta a caducidade da patente.”
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> “Nesse contexto, evidencia-se novamente que a visão tradicional da propriedade intelectual não é mais adequada à sua disciplina. Em vez de meio de atribuição de um direito egoísta ao seu titular, ela deve assumir sua dimensão como instrumento concorrencial.” FORGIONI, Paula Andrea. A evolução do direito comercial brasileiro: da mercancia ao mercado. 2ª Edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 143.
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> Lei 12.299/2010: “‘Art. 41-F. Vender ingressos de evento esportivo, por preço superior ao estampado no bilhete: Pena - reclusão de 1 (um) a 2 (dois) anos e multa.’ ‘Art. 41-G.  Fornecer, desviar ou facilitar a distribuição de ingressos para venda por preço superior ao estampado no bilhete: Pena - reclusão de 2 (dois) a 4 (quatro) anos e multa.”
<a href="#_ftnref13" name="_ftn13">[13]</a> Portanto, parece-me correto o posicionamento do Tribunal da Cidadania no precedente STJ, 4ª Turma, Min. Luis Felipe Salomão, Resp 609047/ SP, 16.11.2009. Logo, incorreto o posicionamento do sodalício no precedente STJ, 3ª Turma, Min. Sidnei Beneti, Resp 1249718/ CE, 12.03.2013.
<a href="#_ftnref14" name="_ftn14">[14]</a> Na toada dos clássicos: BERLE, Adolf A. e MEANS, Gardiner C. A moderna sociedade anônima e a propriedade privada. Traduzido por AZEVEDO, Dinah de Abreu. São Paulo: Abril Cultural, 1984; e COMPARATO, Fábio Konder. O poder de controle na sociedade anônima. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1976.

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JOTA

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