Fernando dos Santos Lopes

Consonte é possível observar na recente decisão publicada em 27 de outubro de 2020<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> pela Comissão de Valores Mobiliários, mesmos os chamados tokens utilities<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, modalidade de cryptoativos, também podem ser considerados valores mobiliários.
Tal decisão é paradigmática na medida em que afasta senso comum difundido não apenas pelo mercado, mas também por boa parte da comunidade jurídica no sentido de que apenas token securities poderiam ser considerados valores mobiliários.
<a href="http://conteudo.jota.info/jota-pro-tributos"><img class="aligncenter wp-image-259015 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/07/cta-jota-pro-tributos.jpeg" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
Em que pese nenhuma decisão administrativa esteja acima de críticas ou de revisão por instâncias judiciais, a decisão ora analisada, independentemente do mérito, pode ser considerada como atenta, em grande parte, à boa técnica jurídica na medida em que busca aplicar critérios objetivos relacionados com a teleologia da Lei, evitando-se aforismos terminológicos que em nada contribuem para o debate científico.
Em outros termos, conforme já vínhamos afirmando em outros artigos<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, a caracterização de um criptoativo como valor mobiliário independe tanto de sua denominação, quanto da tecnologia por meio da qual é desenvolvido, uma vez que para um ativo vir a ser considerado como valor mobiliário, basta que se subsuma aos critérios utilizados para determinar quando um ativo é um valor mobiliário.
Tais critérios, por sua vez, podem ser explícitos ou ainda decorrerem da significação teleológica das regras e princípios legais, dado o princípio da reserva legal, ressalvando-se neste momento a discussão sobre os limites da interpretação teleológica em face do princípio da legalidade<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. Interpretação teleológica que, inclusive, orienta de forma decisiva a fundamentação do voto do relator.
Especificamente no que tange à situação concreta analisada pela autarquia especial, trata-se de “Processo Administrativo Sancionador" (PAS) instaurado pela Superintendência de Registro de Valores Mobiliários (SRE ou Acusação) para apurar a responsabilidade de ICONIC Intermediação de Negócios e Serviços Ltda. (ICONIC) e seu administrador Jonathan Doering Darcie (Jonathan Darcie) pela realização de oferta pública de valores mobiliários sem a obtenção do registro previsto no artigo 19 da Lei nº 6.385/1976 e no artigo 2º da Instrução CVM nº 400/2003, ou sem a dispensa prevista no inciso I do § 5º do artigo 19 da Lei nº 6.385/1976 e no artigo 4º da Instrução CVM nº 400/2003. 2.”
Ainda segundo a CVM, o processo teve origem no Processo Administrativo CVM nº 19957.004215/2018-66, instaurado em 11.04.2018 para investigar indícios de oferta pública irregular de valores mobiliários relacionados à Initial Coin Offering (ICO) divulgada pela <a href="https://www.joiniconic.com/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">ICONIC em sua página na Internet</a>.
Nesse contexto, em que pese a existência de diversos aspectos na decisão dignos de serem discutidos, neste artigo vamos nos debruçar mais detidamente para a interpretação funcional do conceito de valor mobiliário, que permitiu ao regulador considerar que mesmo um token utility poderia ser considerado um valor mobiliário, a depender de sua função econômica.
<h3>Por que tokens utilities também podem ser considerados valores mobiliários no entendimento da CVM</h3>
Questão fundamental para entender por que tokens utilities também podem ser considerados valores mobiliários é a concepção funcional de valor mobiliário, que aplicada ao caso permitiu à CVM expedir as seguintes considerações:
<blockquote>“A classificação de um ativo digital como um payment token, um utility token ou um security token, dependerá não do seu rótulo, mas de sua função. Essas categorias, cabe ressaltar, não são estanques, de modo que um único criptoativo pode se enquadrar em uma ou mais modalidades, a depender das funções que desempenha e dos direitos a ele associados."</blockquote>
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Ou seja, o que a CVM irá analisar em um caso de suposta oferta ilegal de valores mobiliários não é a denominação do ativo, mas se este se enquadra ou nas hipóteses listadas nos incisos I a VIII do artigo 2º da Lei nº 6.385/1976, ou no conceito de investimento coletivo.
Em relação ao conceito de investimento coletivo os critérios a serem analisados são os seguintes, consoante leitura da Lei feita pelo relator Gustavo Machado Gonzalez:
“Os elementos caracterizadores do contrato de investimento coletivo estão dispostos no inciso IX do artigo 2º da Lei nº 6.385/1976. Tendo em vista o desenvolvimento das discussões acerca da matéria ao longo dos anos, parece-me que o exame da questão tem se orientado a partir de cinco questões: (a) Buscou-se captar recursos de investidores por meio de uma oferta pública? (b) Os investidores aportaram (ou foram chamados a aportar) dinheiro ou outro bem suscetível de avaliação econômica? (c) Os recursos captados na oferta (ou que se buscava obter com a oferta) foram (ou seriam) aplicados em um empreendimento coletivo? (d) O aporte foi (ou seria) feito na expectativa de lucros, decorrentes de um direito de participação, de parceria ou alguma forma de remuneração (inclusive resultante de prestação de serviços)? (e) Os resultados esperados do investimento adviriam, exclusiva ou preponderantemente, dos esforços do empreendedor ou de terceiros? (grifo nosso) (CVM, 2020)”
Conforme se observa, os critérios invocados pelo relator são, de fato, legais, cabendo apenas a verificação da aplicação desses critérios ao caso concreto.
Tratam-se ainda de critérios cumulativos, o que exige fundamentação do caso à luz de cada critério, o que foi feito no contexto do processo em análise.
Desse modo, percebe-se claramente que a concepção funcional de valor mobiliário visa assegurar aos investidores que os captadores de recursos não apenas irão realizar o empreendimento no interesse dos investidores, mas que apresentam as mínimas condições de realização do empreendimento.
Não se trata, por óbvio, de assegurar retorno positivo aos investidores, ou proibir a existência de empreendimentos empresariais, naturalmente de risco, mas apenas de preservar condições mínimas de honestidade no que concerne à administração de recursos de terceiros.
Logo, para esses objetivos pouco importa a forma de representação dos instrumentos utilizados para captação de recursos, desde que tais recursos sejam passíveis de avaliação econômica, consoante entendimento da CVM.
Ou seja, ainda que os recursos ofertados, captados como investimento, ou pagos como rendimentos, sejam criptoativos, e exerçam funções tradicionalmente afetas aos utility tokens, nada impede a caracterização de oferta de investimento coletivo, desde que esses instrumentos preencham os critérios classificatórios de natureza legal.
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O episódio 42 do podcast <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/sem-precedentes" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Sem Precedentes</a> analisa as acusações de Donald Trump questionando a legalidade do pleito eleitoral nos EUA. Ouça:
https://youtu.be/xRgH-5h1gH8
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> PROCESSO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR CVM Nº 19957.003406/2019-91. Disponível em: &lt;<a href="http://www.cvm.gov.br/export/sites/cvm/noticias/anexos/2020/20201027_PAS_CVM_19957_003406_2019_91_voto_diretor_gustavo_gonzalez.pdf">http://www.cvm.gov.br/export/sites/cvm/noticias/anexos/2020/20201027_PAS_CVM_19957_003406_2019_91_voto_diretor_gustavo_gonzalez.pdf</a>&gt;. Acesso em 28 de outubro de 2020.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Tendo por base o entendimento de organismos internacionais como a OCDE e a IOSCO a CVM apresenta a seguinte definição de token utilities: (...) (ii) os tokens de utilidade (utility tokens), que representam direitos de aquisição de produtos e serviços;”. Ibidem, 2020, p.4/5.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> LOPES, Fernando. Cryptoproperties: “A captação pública de recursos mediante a emissão de ações ou tokens é estritamente regulamentada”. Disponível em: &lt;<a href="https://migalhas.uol.com.br/depeso/325281/cryptoproperties">https://migalhas.uol.com.br/depeso/325281/cryptoproperties</a>&gt;. Acesso em 28 de outubro de 2020.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Sobre o tema conferir inúmeros debates entre positivistas jurídicos e não positivistas dentre os quais o mais famoso é o que ocorre entre Herbert Hart e Ronald Dworkin. Cf. Schauer, Frederick. Playing by the Rules: A Philosophical Examination of Ruled-Based Decision-Making and Law and in Life. Oxford: Clarendon Press, 1991.

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JOTA

Em outubro, CVM determinou que a modalidade de cryptoativos também poder ser considerada valor mobiliário

Tokens utilities também podem ser considerados valores mobiliários

Tokens utilities valores mobiliários: Em outubro, CVM determinou que a modalidade de cryptoativos também poder ser considerada valor mobiliário