Camila Goldberg
Sócia das áreas de Mercados Financeiro e de Capitais e Societário do BMA Advogados

DAOs (Decentralized Autonomous Organizations) normalmente são geridas por tokens próprios emitidos por suas tesourarias, que podem ser distribuídos para seus fundadores e/ou membros (por meio de airdrops — uma distribuição não solicitada diretamente para a carteira dos indivíduos) ou que podem ser adquiridos por membros em troca de moeda fiduciária ou de outro criptoativo (como Ether, por exemplo). Deter o token de uma DAO significa, via de regra, ter poder de voto nas propostas que são apresentadas por seus membros, ajudando na condução de um modelo de governança e na tomada de decisões da organização.
Antes de iniciar um projeto de uma DAO, no entanto, é fundamental que seus fundadores avaliem se os tokens de governança a serem emitidos pela pretendida DAO podem vir a ser considerados valores mobiliários de acordo com a legislação aplicável, o que os sujeitaria à regulamentação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), especialmente no que se refere à caracterização de ofertas públicas (e todas as consequências regulatórias daí decorrentes). Tal determinação é de especial importância, uma vez que ofertas públicas de valores mobiliários são amplamente reguladas pela CVM — e sujeitas, em muitos casos, a registro obrigatório perante tal autarquia —, sendo certo que eventual oferta em desacordo com a regulamentação da CVM pode acarretar a aplicação de sanções gravosas aos infratores.
Isso dito, a determinação de quando um token de governança de uma DAO pode configurar um valor mobiliário não é necessariamente simples. Tal dificuldade advém do fato de que, além dos tipos taxativos de valores mobiliários disciplinados pelos incisos I a VIII do art. 2º da Lei 6.385/1976 (como ações, debêntures, derivativos e outros), também são classificados como valores mobiliários os contratos de investimento coletivo, um conceito funcional-instrumental, que engloba um leque abrangente de possibilidades.
Para a análise da eventual subsunção de um token de governança de uma DAO a esse conceito, os precedentes da CVM indicam a necessidade de análise dos requisitos do chamado Howey Test — teste criado pela Suprema Corte dos Estados Unidos na famosa decisão do caso Securities and Exchange Commission v. W. J. Howey Co. —, ainda que na sua versão tropicalizada.
Conforme decisão recente da CVM, no Processo Administrativo Sancionador nº 19957.003406/2019-91, existem cinco questões centrais que devem ser aferidas para avaliar a existência de um contrato de investimento coletivo como valor mobiliário: “(a) buscou-se captar recursos de investidores por meio de uma oferta pública?; (b) os investidores aportaram (ou foram chamados a aportar) dinheiro ou outro bem suscetível de avaliação econômica?; (c) os recursos captados na oferta (ou que se buscava obter com a oferta) foram (ou seriam) aplicados em um empreendimento coletivo?; (d) o aporte foi (ou seria) feito na expectativa de lucros, decorrentes de um direito de participação, de parceria ou alguma forma de remuneração (inclusive resultante de prestação de serviços)?; (e) os resultados esperados do investimento adviriam, exclusiva ou preponderantemente, dos esforços do empreendedor ou de terceiros?”. Em caso de resposta positiva a todos esses quesitos, estar-se-ia diante de um valor mobiliário, independentemente do ativo subjacente, na medida em que configurado um contrato de investimento coletivo pela legislação.
Nesse sentido, um dos aspectos primordiais para se determinar se o token de governança da DAO será (ou não) tido como valor mobiliário será a avaliação da função essencial do token, o que pode depender inclusive da categoria específica de DAO sob análise. Em determinadas condições, tokens de uma DAO de investimento possivelmente terão características muito mais próximas de um contrato de investimento coletivo do que tokens de uma DAO social ou de uma DAO de filantropia.
Nos Estados Unidos, por exemplo, a SEC interpretou que os tokens da The DAO, a primeira DAO a ser lançada na blockchain da Ethereum — que tinha como propósito ser uma DAO de investimento – deveriam ser considerados como valores mobiliários, uma vez que atendiam todos os requisitos previstos no Howey Test.
No Brasil, embora a CVM ainda não tenha se lançado a análises mais profundas especificamente sobre tokens de DAOs, no processo administrativo sancionador supramencionado, envolvendo o Initial Coin Offering da Iconic Intermediação de Negócios e Serviços Ltda., que tinha em sua estrutura uma DAO, a autarquia concluiu que o token emitido pela empresa era sim um contrato de investimento coletivo, e, portanto, um valor mobiliário que estaria sujeito — e deveria ter respeitado — às regras pertinentes a ofertas públicas, condenando tanto a empresa quanto o seu sócio administrador à sanção pecuniária de quase R$ 400 mil.
Considerando as possíveis e danosas consequências regulatórias para emissor de contrato de investimento coletivo que, pelas normas aplicáveis, possa ser considerado valor mobiliário — atraindo, portanto, as regras referentes a ofertas públicas — mostra-se extremamente prudente que essa análise seja feita de forma cautelosa pelo empreendedor antes do lançamento de uma DAO, visando a evitar riscos desnecessários.