Luiz Guilherme Branco

Tradicionalmente, política industrial é definida pelos economistas como um conjunto de medidas e instrumentos tomado pelo Estado visando (i) corrigir falhas de mercado [se você for ortodoxo] ou (ii) o desenvolvimento e modernização econômica [se você for heterodoxo]. Tem o nome industrial pois nos séculos XIX e XX formou-se um certo consenso sobre a necessidade de industrialização da economia para que um país se tornasse “desenvolvido”.
Neste contexto, cabe lembrar que não há política industrial “neutra” ou “ausência de política industrial”, pois optar por menos intervenção (como se faria em uma economia liberal ou libertária) também é uma escolha política, que pode ter suas vantagens e problemas.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Por que um aplicativo como o TikTok pode ser relevante para isso?
TikTok é uma rede social voltada para criação e edição de mídia (vídeos de 15 segundos a um minuto). Coreografias, dublagem (lip-sync), comédia, storytelling, remixes, duetos são conteúdos dominantes.
O aplicativo foi desenvolvido em Pequim em 2016, com o nome “A.me” e em seguida renomeado “Douyin” (a versão chinesa mantém este nome até hoje). Foi um sucesso na China de imediato, alcançando 100 milhões de usuários logo no primeiro ano. Já com o nome TikTok, teve alcance mundial em 2017 após fusões com plataformas semelhantes, dentre elas o “musical.ly”. Se tornou um fenômeno em 2018, ultrapassando a popularidade de redes sociais consolidadas como Twitter e Snapchat, mas viralizou na América Latina apenas em 2020.
A plataforma dispõe de linguagem acessível e prática para os usuários que produzem o conteúdo, ao mesmo tempo que a combina com um sistema complexo de machine learning, A.I. e algoritmos que distribuem os vídeos de forma que mantenham os usuários ativos e engajados. Isto é, o aplicativo rapidamente aprende as preferências de cada usuário e monta de forma personalizada (tailor-made) a tela de rolagem “For You” onde aparecem os vídeos; esta tela de rolagem For You é virtualmente infinita. Segundo o especialista Matthew Brennan, este conjunto de elementos seriam a receita para o aplicativo se tornar viciante.
Olhando do lado comercial, o TikTok reúne para seu dono um dos insumos mais valiosos do Século XXI: os dados. No presente, mais de 1 bilhão de usuários cedem seus dados ao aplicativo. A dona desta “mina de ouro” (ou ainda, “poço de petróleo”) é a ByteDance, atualmente a startup mais valiosa do mundo – 250 bilhões de dólares americanos (avaliação divulgada pela Bloomberg, março de 2021).
Sendo a ByteDance baseada em Pequim, cabe destacar que a China possui diretrizes e regras pouco transparentes sobre proteção de dados, inclusive em relação à abrangência das obrigações de cooperar com o governo chinês, que são impostas pela Lei de Segurança Cibernética da China. Empresas chinesas são acusadas recorrentemente de “roubar” propriedade intelectual e dados pessoais, e em seguida cede-los ao governo chinês. Obviamente estas acusações de cooperar com espionagem podem ter viés imperialista, e viés xenofóbico também. Contudo, controvérsias envolvendo o aplicativo nos indicam a existência de problemas graves, cuja natureza inclusive excedem a proteção de dados pessoais.
Índia, Bangladesh, Indonésia, Hong Kong, Holanda, EUA, Austrália, Armênia e Paquistão já aplicaram algum tipo de restrição ao aplicativo ou emitiram multa por atuação irregular. A própria China baniu o TikTok de seu território, de forma que os chineses usam o Douyin, que é um aplicativo equivalente – controlado pela mesma empresa ByteDance – mas que por sua vez obedece às políticas e restrições determinadas pelo governo chinês.
Qual o caso concreto envolvendo o TikTok e política industrial?
As diversas acusações contra o TikTok sobre uso indevido de dados e cooperação com espionagem levaram a empresa a planejar uma mudança de sua sede para o Reino Unido. Antes de consumar essa mudança, o então presidente dos EUA, Donald Trump, decidiu “comprar a briga” contra o TikTok e inseriu este aplicativo no centro da guerra comercial entre os EUA e a China (que envolve também outras questões).
Em meio às tensões entre os EUA e a China, ameaças de banir o TikTok do território americano apareceram. Em seguida, Donald Trump passou a reconsiderar a questão, dizendo que não baniria o aplicativo caso seus ativos americanos fossem vendidos para uma empresa “muito segura” e “muito americana”. Microsoft, Twitter, Walmart, Oracle apareceram como potenciais compradores; mas seu principal rival é o conglomerado Facebook.
Mark Zuckerberg, fundador do Facebook e CEO do conglomerado, é conhecido pelas táticas agressivas de aquisição de aplicativos e tecnologias em ascensão, quando impossibilitada a aquisição, copia-las e mina-las. Dentre os adquiridos, vale mencionar Instagram, WhatsApp, Oculus VR, Giphy; dentre os “imitados”, o temos SnapChat.
Antes de ser adquirido pelo TikTok, o Facebook tentou adquirir o musical.ly, que à época era o aplicativo de vídeos curtos que mais fazia sucesso nos EUA (enquanto na China o Douyin da ByteDance era o mais popular). A aquisição do musical.ly foi justamente o que deu projeção no ocidente para a ByteDance/TikTok. Diante da popularidade atual do TikTok e a impossibilidade de sua aquisição, temos imitação: o Instagram Reels (o próprio Facebook já tentara imitar com o “Lasso”, e o Google imitou a imitação lançando o “YouTube Shorts”) – junto a críticas severas feitas por Zuckerberg à política de censura do TikTok. A ByteDance já acusou publicamente o Facebook por plágio e difamação.
Diante deste cenário caótico de ameaças de proibição por Donald Trump e de ameaça comercial pelo rival Facebook, avançaram as negociações para aquisição das operações e ativos do TikTok nos EUA. Ativos do TikTok localizados no Canadá, Austrália e Nova Zelândia entraram na negociação também.
Formou-se o xeque-mate nesse xadrez de política industrial.
Ainda que os EUA não integrem a maioria dos usuários do TikTok, é inegável sua importância para a difusão e engajamento do aplicativo. Por exemplo, dos 10 usuários de TikTok com o maior número de seguidores, todos os 10 são americanos (Charli D’Amelio, Addison Era, Bella Poarch, Zach King, Spencer Polanco Knight, Loren Gray, Dixie D’Amelio, Will Smith, Michael Le, Jason Derulo – dados de abril de 2021).
<blockquote class="jota-article__eye">O TikTok vinha quebrando recorrentemente os recordes de aplicativo mais baixado no mundo, desbancando seus rivais americanos (o que era um feito raro, se não inédito nos últimos 10 anos). Agora “não resta opção”, a não ser tornar-se americano também.</blockquote>
Os usuários estão espalhados ao redor do mundo, mas seus valiosos dados serão concentrados no mesmo país, ao lado daqueles que foram coletados por Facebook/Instagram/Whatsapp, Amazon, Google/YouTube/Kaggle, General Electrics, IBM, eBay, PayPal, entre outros.
Como o governo americano consegue fazer essas ameaças envolvendo o TikTok?
O Secretário do Tesouro dos EUA (equivalente ao Ministro da Economia), assessorado por outros Ministros e diretores de autarquias, chefia um órgão chamado CFIUS (Comittee on Foreign Investment in the United States) que responde ao Presidente dos EUA. Esse CFIUS tem a competência para analisar transações econômicas de empresas estrangeiras realizadas nos EUA – aprovando/reprovando sua realização. Inclusive, o CFIUS pode rever operações que já foram concluídas.
No caso em tela, mediante provocação do Senado americano, o CFIUS está investigando a entrada do TikTok nos EUA através da aquisição do musical.ly (consumada quase 3 anos antes da controvérsia). A despeito das declarações polêmicas de Donald Trump e de suas decisões unilaterais no sentido de forçar o banimento precoce da ByteDance nos EUA no meio do ano passado, o CFIUS continua analisando a questão e participando das negociações de desinvestimento; a proposta do comprador americano deverá ser aprovada também pela administração chinesa. Com a entrada do novo presidente Joe Biden e a consequente revisão das políticas EUA-China, a venda dos ativos americanos do TikTok está em espera.
O principal motivo alegado para a existência de um Conselho para analisar investimento estrangeiro no país é o argumento coringa de “segurança nacional”. Contudo, para muito além de questão de defesa (no sentido bélico-militar), o CFIUS já foi amplamente usado para proteger a política tecnológica, industrial e comercial dos Estados Unidos, vetando aquisições estratégicas vindas do Japão, Cingapura, Rússia, Emirados Árabes Unidos, e agora de seu principal rival econômico: a China.
Por exemplo, recentemente o CFIUS participou dos vetos (i) da aquisição da produtora de chips americana Qualcomm pela singapuriana Broadcom; (ii) da venda do aplicativo de encontros Grindr para a chinesa Kunlun.
Além dos Estados Unidos, muitos países formaram corpo regulatório especializado para analisar investimento estrangeiro, que geralmente é chefiado por um Ministro de Estado. Alemanha, Canadá, China, França, Rússia, Reino Unido, México e Vietnã, por exemplo, apresentam este tipo de regulação. A União Europeia inseriu este controle no âmbito da Comissão Europeia. Muitos outros países apresentam regulação difusa (por exemplo, voltado para alguns setores específicos, como o bancário ou militar).
Por que investigar e analisar o capital estrangeiro?
Ter uma economia aberta pressupõe uma série de controles para que ela funcione bem, ainda que seja pretensamente liberal.
Tributação, proteção de propriedade intelectual, antitruste/defesa da concorrência, regulação setorial, defesa do consumidor, regras de bolsa de valores mobiliários, política cambial e monetária. Elencando poucos exemplos que mostram que mesmo em uma economia aberta e liberal, não há como fugir de alguns controles e intervenções estatais. Intervenções estas que as empresas demandam que sejam o mínimo necessário e o mais eficiente possível (pelo menos, em tese) para não causar mais óbices ainda ao funcionamento do mercado.
Em alguns casos, já vimos que mimetizar sem reflexão as instituições de países ricos no mundo subdesenvolvido pode ser uma péssima ideia.  Por outro lado, pode fazer sentido inserir mais um controle, que feito de maneira eficiente e correta, não necessariamente vai desmontar a relação do país com o mundo, e daria uma oportunidade de proteger sua economia evitando grandes traumas.
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