Michell Przepiorka
Mestre e especialista em Direito Tributário (IBDT). Juiz do Conselho Municipal de Tributos da Prefeitura de São Paulo. Sócio de Takano e Przepiorka Advogados
No último dia 21 de maio de 2021, a Prefeitura de São Paulo publicou o Parecer Normativo n. 1/2021 em que fixa a interpretação quanto à aplicabilidade da imunidade tributária do Imposto de Transmissão de Bens Imóveis (ITBI), prevista no artigo 156, §2º, inciso I, da Constituição Federal e no artigo 3º, inciso III da Lei Municipal nº 11.154, de 30 de dezembro de 1991.
Neste parecer, com efeitos ex nunc, a municipalidade vincula os órgãos da administração aos efeitos do quanto decidido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) quando do julgamento do tema 796, que tratou do alcance da imunidade sob comento, restringindo-a ao valor do capital social integralizado. O parecer exarado não se manifesta, entretanto, quanto à totalidade dos efeitos da decisão, mormente a ausência de condições para o munícipe se beneficie desta imunidade.
A partir do que prescrevem os artigos 3º e 4º da Lei Municipal n. 11.154/1991, combinados com o que dispõe o referido Parecer Normativo, o munícipe de São Paulo terá imunidade restrita ao valor a ser integralizado, desde que comprove não ter a atividade imobiliária como preponderante[1], contrariando o que foi decidido pelo e. STF, implicando alto grau de macrolitigância na matéria, haja vista a obrigatoriedade de o fiscal municipal realizar o lançamento caso identifique que a imunidade foi “indevidamente” utilizada, ou seja, utilizada em divergência com o entendimento fazendário.
Tal postura, para além de incrementar o contencioso de forma desnecessária, também se mostra em desconformidade com a interpretação conjunta dos artigos 15, 926 e 927 do Código de Processo Civil, que nos levaria à conclusão de que a administração pública deveria, no âmbito de suas competências e de tribunais administrativos, aplicar as decisões vinculantes emanadas do STF.
Um pouco de contexto é necessário. O tema em análise foi objeto da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal nos autos do RE n. 796.376, tema 796 da Repercussão Geral, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, em que se discutia o escopo e alcance da imunidade prevista no §2º do art. 156 da CF[2], principalmente, se a imunidade acobertaria a totalidade do valor do imóvel integralizado no patrimônio da pessoa jurídica ou se estaria restrita ao valor subscrito como capital social.
Na ocasião, a partir de uma interpretação teleológica da norma de imunidade, o Ministro Marco Aurélio sustentou a equiparação de tratamento entre o ágio na subscrição de cotas ou ações à integralização de capital “pura e simples”, o que encontraria reforço no art. 182, § 1º, alínea “a”, da Lei n. 6.404/1976.
Acabou prevalecendo, entretanto, a tese proposta pelo Ministro Alexandre de Moraes, segundo a qual a imunidade em relação ITBI, prevista no inciso I do § 2º do art. 156 da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado. Mais do que a tese firmada, importa a análise da motivação da decisão[3] - sua ratiodecidendi[4].
A despeito de, pela literalidade do CPC/2015, o artigo 504 prever que “os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença”, não fazem coisa julgada, fato é que, ao mesmo tempo, o artigo 503 do mesmo diploma legal prevê que a“decisão que julgar total ou parcialmente o mérito tem força de lei nos limites da questão principal expressamente decidida”.
Com base nisso, há de se ter um elevado nível crítico na análise de decisões proferidas em âmbito de julgamentos repetitivos, de modo a entender se determinada argumentação ou motivação é relevante ao ponto de se caracterizar como uma questão principal decidida.
A nosso ver, este é um caminho para separar ratiodecidendide elementos que sejam meroobter dictum. No caso sob comento, quer nos parecer que a questão da limitação da imunidade ao capital social integralizado faz parte da questão principal decidida, daí por que não se trata de mero obter dictum.
O ministro distingue duas hipóteses: (i) realização de capital social e (ii) transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica. Segundo ele, a hipótese (i) trataria de imunidade incondicionada, enquanto a hipótese (ii) estaria a imunidade condicionada à atividade preponderante da adquirente.
Em relação à primeira hipótese, é bastante criticável a distinção de tratamento entre os valores subscritos na conta de capital social e de reserva de capital (decorrentes, por exemplo, da emissão de ações ou quotas com ágio) para fins de aplicação da norma de imunidade de ITBI, uma vez que ambas compõem o patrimônio da pessoa jurídica (art. 178, § 2º, inc. III, Lei n. 6.404/1976), sendo a segunda destinada ao registro da “contribuição do subscritor de ações que ultrapassar o valor nominal” (art. 182, § 1º, alínea “a”, Lei n. 6.404/1976) e, portanto, possui a mesma natureza da primeira, sendo segregada tão somente por força de determinação legal[5].
A diferença injustificada de tratamento fica evidente quando se tem em conta que o próprio caso consubstanciado no RE n. 796.376, que culminou na fixação da tese do Tema 796 da Repercussão Geral, trata de situação em que os sócios integralizaram 17 imóveis, avaliados em R$ 802.724,00, em pessoa jurídica cujo capital social totalizava R$ 24.000,00, registrando a diferença de R$ 778.724,00 como reserva de capital.
Isto é, o caso concreto tratava de uma mera segregação contábil decorrente do valor de avaliação dos imóveis em relação às ações ou quotas subscritas, sendo irrelevante se os imóveis foram avaliados pelo custo histórico ou pelo valor de mercado (art. 23, Lei n. 9.249/95)[6] para fins de aplicação da regra de imunidade de ITBI.
Ademais, a possibilidade de integralização de capital com reserva de ágio (isto é, com emissão de ações ou cotas por valor superior ao seus valores nominais) costuma ser utilizada como um perspicaz instrumento societário de estímulo ao financiamento empresarial e a novos empreendimentos, uma vez que garante que a entrada de sócios ingressantes e novos aportes de capital no patrimônio líquido de pessoas jurídicas não “dilua” a participação societária dos sócios originais por meio de uma variação indireta do seu percentual de participação no capital social, desequilibrando o poder político e econômico no controle da empresa entre sócios ingressantes e originais[7].
Assim, em que pese o entendimento fixado pelo voto do Min. Alexandre de Moraes tenha adotado interpretação reducionista da imunidade do ITBI na integralização de imóveis como patrimônio de pessoas jurídicas, fato é que, neste particular, a posição se consagrou vencedora. É preciso agora retornar aos demais fundamentos e pontos enfrentados no julgamento do RE n. 796.376, ou seja, a questão principal decidida.
Retornando ao Parecer Normativo n. 1/2021, percebe-se que a municipalidade está no “melhor dedois mundos”, incorporando a parcela da decisão no que lhe beneficia, sem maiores aprofundamentos no que diz respeito à ausência de condições, mormenteno que diz respeito àatividade preponderanteda adquirente, no caso de integralização de imóvel ao capital social.
Apesar de posicionamentos isolados, no Conselho Municipal de Tributos de São Paulo não se viu refletida a discussão sobre referida decisão, muito em razão da incompetência do órgão em se manifestar acerca da constitucionalidade e da legalidade da legislação, nos termos do § único do art. 53 da Lei Municipal n. 14.107/2005[8].
De outro lado, a questão tem sido suscitada perante o Tribunal de Justiça de São Paulo, em que se tem verificado a concessão de liminares em favor dos contribuintes, nos casos de Imunidade de ITBI sobre a transmissão debens para fins de integralização de capital social de pessoa jurídica, por entender que ela éincondicionada, nos termos do decidido do RE nº 796.376/SC pelo STF[9].
Ademais, para conceder pedidos liminares nesses termos, as decisões que afastam a “condição” para fruição da imunidade em realização de capital social, em verdade, acabam por partir da premissa de que o artigo 37 do Código Tributário Nacional seria inaplicável.
É que, referido artigo, ao dispor sobre a imunidade em comento, é expresso ao estabelecer que a “condição” para fruição da imunidade (pessoa jurídica não exercer atividade preponderantemente imobiliária) seria aplicável para ambas as situações, ao utilizar o termo “o dispositivo no artigo anterior”, ao passo que o dito “artigo anterior” (art. 36 do CTN) trata, justamente, das duas hipóteses de imunidade analisadas pelo STF no artigo 156, § 2º, I da Constituição.
Outra questão, portanto, poderá ser suscitada nos Tribunais: o artigo 37 do CTN se encontra em contrariedade ao entendimento fixado pelo STF na parte em que aplica a “condição” para fruição da imunidade também na hipótese de “realização de capital social”?
Ou, por outro lado, é possível que o conteúdo da imunidade do ITBI em “realização de capital social” seja restrito, mediante estabelecimento de uma “condição”, por lei complementar (tal como o artigo 37 do CTN)?
Além disso, a referida decisão do STF, julgada com repercussão geral reconhecida, alterou o entendimento consolidado que havia sido firmado desde a promulgação da Emenda Constitucional n. 18/1965, o que poderia ensejar a aplicabilidade do parágrafo único do art. 100 a lançamentos decorrentes de fatos geradores anteriores àquela decisão.
Tudo posto, verifica-se mais um caso em que uma decisão do Supremo Tribunal Federal em repercussão geral, proferida com o objetivo de sanar determinada controvérsia, tem efeitos com potencial aumento da macrolitigância fiscal. A uma, porque o fiscal que se deparar com operação que tenha se beneficiado da imunidade, autuará para cobrar eventual ITBI devido, caso o valor não tenha sido todo integralizado no capital social da empresa.
A duas, porque o contribuinte que integralizou imóvel no capital social da empresa, mas não cumpria o requisito de preponderância da atividade, inevitavelmente ingressará com ação objetivando a restituição dos valores recolhidos.
Essa teratologia nos remonta à série de comédia “The GoodPlace”[10], queexplora um grupo de desconhecidos que acaba indo parar no “mau lugar” por não terem alcançado a pontuação suficiente para ingressar no “bom lugar”.
Sem spoilers, chama atenção o sistema de contagem de pontos, em que estes são atribuídos considerando as consequências conhecidas e não conhecidas de cada ação dos indivíduos.Nesse cenário, o indivíduo ao tomar certa decisão não pode se limitar às consequências imediatas de seus atos, mas também aos efeitos indiretos dela decorrentes.
Transportando esse racional para a atividade judicante, parece claro que as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, principalmente quando há repercussão geral reconhecida ou em outros processos judiciais tipicamente voltados ao controle de constitucionalidade (concentrado ou difuso), devem estar atentas às consequências que delas decorrem[11].
Os juízes possuem um dever de coerência com sua decisão e também com sua motivação, para que não se viole o direito de igualdade expressamente previsto na Constituição Federal.
Inseridos num sistema processual que se diz "de precedentes vinculantes", nota-se que, mesmo decorridos 6 anos da edição do Código de Processo Civil de 2015, existem dúvidas acerca de quais “elementos” de um precedente seriam, de fato, vinculantes (a tese sumular fixada; os itens destacados na ementa; os fundamentos jurídicos adotados pelo voto vencedor; etc.).
Paradoxalmente, o sistema de precedentes vinculantes acaba por resultar, por via transversa, na patologia que pretendeu “curar”, como uma espécie de “efeito colateral”: a multiplicação de demandas que se valem, direta ou indiretamente, das consequências esperadas ou inesperadas de julgamentos relacionados a temas que se pensava terem sido definitivamente solucionados pelos Tribunais Superiores.
Assim, para não pararmos no “mau lugar”, em que vigora a insegurança jurídica, o desrespeito ao princípio da igualdade e ausência de coerência, até que eventual Emenda Constitucional altere o quadro normativo que orienta a questão, é importante que as municipalidades busquem se adequar à decisão proferida pelo STF, evitando desgastes desnecessários entre fisco e contribuintes, indicando um “bom lugar” para investimentos e empreendedorismo.
[1]Art. 37. O disposto no artigo anterior não se aplica quando a pessoa jurídica adquirente tenha como atividade preponderante a venda ou locação de propriedade imobiliária ou a cessão de direitos relativos à sua aquisição.
1º Considera-se caracterizada a atividade preponderante referida neste artigo quando mais de 50% (cinqüenta por cento) da receita operacional da pessoa jurídica adquirente, nos 2 (dois) anos anteriores e nos 2 (dois) anos subseqüentes à aquisição, decorrer de transações mencionadas neste artigo.
2º Se a pessoa jurídica adquirente iniciar suas atividades após a aquisição, ou menos de 2 (dois) anos antes dela, apurar-se-á a preponderância referida no parágrafo anterior levando em conta os 3 (três) primeiros anos seguintes à data da aquisição.
[2]Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre: (...)
II - transmissão "inter vivos", a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição;(...)
2º O imposto previsto no inciso II:
I - não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil;
II - compete ao Município da situação do bem.
[3] Embora haja quem defenda que a referida passagem se trata de mero obter dictum (FOLLADOR, Guilherme Broto,VALLE, Maurício DalriTimm do. A Imunidade do ITBI sobre as Operações de Transmissão Imobiliária Efetuadas em Realização do Capital de Pessoa Jurídica. Revista Direito Tributário Atual, n.46. p. 199-235), entendemos que se trata da própria fundamentação da decisão.
[4] Nesse sentido https://www.conjur.com.br/2021-abr-27/opiniao-stf-itbi-integralizacao-imoveis-capital-social.
[5] “Note que, conceitualmente, as reservas de capital são equivalentes ao próprio capital social. Portanto, ainda que conceitualmente, esses valores podem ser lançados diretamente na conta ‘capital social’ e, portanto, não seria necessária a criação desse grupo de reservas de capital. Porém, juridicamente, para que um valor seja registrado na conta ‘capital social”, deve, necessariamente, ocorrer uma alteração do estatuto ou contrato social” Cf. SALOTTI, Bruno Meirelles; LIMA, Gerlando de; MURCIA; Fernando Dal-Ri; MALACRIDA, Mara Jane; PIMENTEL, Renê Coppe. Contabilidade Financeira. São Paulo: Atlas, 2019, p. 106.
[6]Art. 23. As pessoas físicas poderão transferir a pessoas jurídicas, a título de integralização de capital, bens e direitos pelo valor constante da respectiva declaração de bens ou pelo valor de mercado.
[7] Sobre o tema: MUNIZ, Ian. Fusões e Aquisições – Aspectos Fiscais e Societários. 2ª Ed. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 40-42;
[8] Art. 53, Parágrafo único. Não compete ao Conselho Municipal de Tributos afastar a aplicação da legislação tributária por inconstitucionalidade ou ilegalidade.
[9] Nesse sentido TJSP, Agravo de Instrumento nº 2042850-06.2021.8.26.0000, 14ª Câmara de Direito Público, Desembargador – RelatorKleber Leyserde Aquino, j. em 23/04/2021.
[10]https://www.nbc.com/the-good-place
[11] Nesse sentido, SCHUARTZ,Luis Fernando. Consequencialismo Jurídico, Racionalidade Decisória e Malandragem, Revista De Direito Administrativo, 248, 2008, 130-158.