Luiz Eloy Terena

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“Não há índio sem terra, pois a relação com o solo é marca característica da essência indígena, pois tudo o que ele é, é na terra e com a terra. Daí a importância do solo para a garantia dos seus direitos, todos ligados de uma maneira ou de outra à terra.”
<footer class="western jota-article__quote-cite">Supremo Tribunal Federal. Pleno. Petição nº 3.388/ED/RR. Voto-Vista: Ministro Menezes Direito. DJ 25.09.2009.</footer>
</blockquote>
Um vírus parou o mundo e impactou a vida das pessoas, fez cidadãos de diferentes nações repensarem seus ritmos e seus estilos de vida. Fez a humanidade reconsiderar, mesmo que por alguns momentos, sua relação com a Terra. Quis o destino que esse fosse o momento de o Supremo Federal Tribunal nos por a refletir sobre o importante papel que os territórios indígenas desempenham na equalização entre humanidade e natureza, dupla que tantos teimam em ver como desconexa. Para além das culturas tradicionais, as Terras Indígenas (TI) protegem fauna e flora brasileiras. Protegê-las é, portanto, proteger a vida.
Além de cumprir esse papel vital para toda a humanidade, as TIs pertencem ao patrimônio público federal (art. 20, CF/88). A Constituição atribui o usufruto aos povos indígenas, outorgando-lhes a posse, mas cabe à União ser a detentora de sua propriedade inalienável e indisponível. Quem desrespeita a preservação de um território tradicional não apenas desrespeita os direitos indígenas, dilapida o patrimônio público da União. Nas palavras da liderança indígena Sônia Guajajara, durante a Cúpula do Clima da Organização das Nações Unidas em 2019, “a luta pela Mãe Terra é a mãe de todas as lutas”. Portanto, sua proteção contribui para o fortalecimento do Estado Democrático de Direito.
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Na próxima semana, o destino destas terras e a sobrevivência dos povos originários está nas mãos dos eminentes ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). No dia 28 de outubro, a Suprema Corte irá analisar o recurso extraordinário nº 1.017365, da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), que discute a posse da Terra Indígena Ibirama Laklaño, do povo Xokleng, localizada em Santa Catarina. Por se tratar de Repercussão Geral, o Supremo terá que decidir sobre o estatuto jurídico das terras indígenas. O que ficar decidido ali, passará a valer para todas as comunidades indígenas brasileiras.
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Estarão em análise duas teses jurídicas: a) a teoria do indigenato e b) a tese do marco temporal. De um lado, temos os povos que historicamente sofrem com todo tipo de violência, seja pelo Estado ou por parte de particulares com o aval do Estado. Do outro lado, está o poder político e econômico de quem vê os povos indígenas como entraves aos seus empreendimentos financeiros que, em pleno século XXI, seguem a lógica colonial, subjugando territórios, pessoas e a própria Mãe Terra à exploração avassaladora.
Trazida à centralidade do debate jurídico com a Petição nº 3.388/RR, a qual discutiu no âmbito do Supremo Tribunal Federal a constitucionalidade da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, a tese do marco temporal condiciona que o direito ao usufruto dos territórios pelos povos indígenas só poderia ser consagrado desde que estes estivessem ocupando as terras pleiteadas no dia 05 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal vigente, ou que comprovem que tenham sido removidos à força, tendo a resistência para tanto – esbulho renitente. Relega, portanto, a história milenar dos povos indígenas a pouco mais de três décadas. Tampouco encontra qualquer possibilidade de acolhimento constitucional, sendo a-histórica, anacrônica, casuística e inadmissível.
<blockquote class="western jota-article__eye">Já a tese do indigenato se fundamenta no próprio texto constitucional, que reconheceu aos povos indígenas o direito originário de viver nas terras tradicionalmente ocupadas. E este direito já possuía respaldo legal antes mesmo da Carta Constitucional de 1988. </blockquote>
Durante o julgamento das Ações Civis Originárias (ACOs) 362 e 366, no STF, o ministro relator Marco Aurélio trouxe um relato histórico das Constituições:
“Desde a Carta de 1934 é reconhecida a posse dos indígenas das terras que tradicionalmente ocupam:
Art. 129. Será respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se achem permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las”
Ainda em um resgate histórico, a Lei nº 6.001/73, também conhecida como Estatuto do Índio, previu em seu art. 65 que o “Poder Executivo fará, no prazo de cinco anos, a demarcação das terras indígenas, ainda não demarcadas”. Ou seja, todas as terras indígenas brasileiras deveriam ter sido demarcadas até 1978. Dez anos depois, sobreveio a Carta de 1988 e novamente se impôs o prazo de cinco anos. Há, ainda hoje, mais de quarenta anos depois, 829 Terras Indígenas aguardando o processo de demarcação.
Peço, aqui, a licença de parêntesis pessoal, já que essa história é também minha: muito antes disso tudo, nos idos de 1791, foi feito o primeiro acordo de paz selado entre Portugal os ancestrais do povo Terena – os meus ancestrais. 
<blockquote class="western jota-article__eye">Como poderia a Carta, conhecida como Constituição Cidadã, gerar um retrocesso tamanho a ponto de por em risco um direito que nos foi reconhecido ainda nos tempos da Colônia?</blockquote>
E é nesta mesma Constituição, mais especificamente no artigo 231, que fica evidente: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Qualquer tentativa de delimitação hermenêutica fora da moldura constitucional para cercear os direitos ao usufruto exclusivo dos povos indígenas sobre seus territórios deve ser encarada com uma afronta à vontade Constituinte.
Portanto, a inconstitucionalidade do marco temporal é flagrante. A Constituição determina que o direito dos povos indígenas sobre suas terras tradicionalmente ocupadas é originário, antecedendo inclusive ao próprio Estado brasileiro. E a tradicionalidade a qual se aponta em nada tem a ver com uma marcação no tempo cronológico. Refere-se à forma como a terra é ocupada e, por consequência, consubstancia-se no território para um determinado povo indígena, com o qual é estabelecida uma vinculação cultural inerente. É a relação do que cada povo tem com sua Terra no sentido de costumes e práticas culturais.
O ponto central que alguns aparentam carecer de compreensão é o seguinte: a posse indígena em seus territórios não é da mesma natureza jurídica da posse civil. Não falamos aqui de uma propriedade privada, mas sim de um bem comum da União. Seu fundamento de validade é extraído diretamente da Carta Magna, o que lhe atribui natureza jurídica constitucional.
O professor José Afonso da Silva, constitucionalista que formou gerações de juristas no Brasil e das maiores referências para o STF, emitiu Parecer Jurídico no qual elucida detalhadamente as razões de fato e de direito pelas quais resta inconstitucional a tese do marco temporal: 
<blockquote class="jota-article__quote">
“A ocupação indígena de suas terras não é uma mera posse como tal conceituada no direito civil. Os índios as ocupam com fundamento no indigenato, ou seja, com base nos direitos originários sobre ela.” 
<footer class="western jota-article__quote-cite">(AFONSO DA SILVA, 2016, p. 22)<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote1sym" name="sdfootnote1anc">[1]</a></footer>
</blockquote>
Da mesma forma, o Ministro Ayres Britto proferiu em voto durante a PET 3388/RR que a natureza da posse das terras indígenas extrai seu fundamento de validade diretamente da Constituição Federal, sendo este um direito originário, antecessor à criação do próprio Estado brasileiro. Isto em razão da teoria do indigenato, tese expressamente admitida pela Assembleia Nacional Constituinte 87-88, expressão da soberania do povo brasileiro, ao prescrever o art. 231.
Ainda que se ignore o fato de que não há qualquer limitação temporal estabelecida pela Carta, é potencialmente inalcançável a exigência de que os indígenas estivessem todos em suas terras na data de 05 de outubro de 1988. A História do Brasil é nossa testemunha mais importante. O século XX foi de extrema violência contra os povos indígenas, inclusive com ações assimilacionistas ou integracionistas diretamente capitaneadas pelos órgãos indigenistas oficiais de Estado: primeiro sob a forma do Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais (SPI) e posteriormente transformado em Fundação Nacional do Índio<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote2sym" name="sdfootnote2anc">[2]</a>.
Em ecos deste período, desde 2019 a Funai vem abandonando a defesa de comunidades indígenas em diversos processos judiciais com base na norma. Deixa, portanto, os indígenas à mercê de despejos e da anulação da demarcação de suas terras. Ao desistir das ações em curso no Poder Judiciário, a Funai extirpa seu papel institucional, ferindo princípios básicos da Administração Pública, destacando-se o da Legalidade, Moralidade e Eficiência. O órgão fez isso em pelo menos quatro processos.
O próprio Estatuto do Índio retirava a possibilidade de capacidade jurídica por parte dos indígenas. Como os povos indígenas poderiam resistir à expulsão pelos meios legalmente estabelecidos, se nem sequer poderiam ingressar em juízo em nome próprio?! Exigir que tivessem resistido à espoliação até o dia 05 de outubro de 1988 é exigir que tivessem tido seu direito fundamental à vida violado para que pudessem tentar preservar seu direito originário ao território.
Todavia uma decisão recente reafirmou nossa capacidade jurídica. No dia 05 de agosto de 2020 a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) foi admitida como entidade de representação nacional dos povos indígenas, com legitimidade ativa para realizar o controle concentrado de constitucionalidade. A decisão foi expedida pela unanimidade do Pleno, no âmbito do julgamento da ADPF 709, proposta pela APIB e seis partidos políticos com representação no Congresso Nacional. Ressalta-se que esta decisão ocorreu quase 32 anos após a promulgação da Constituição Cidadã.
Foi a mais alta Corte do país que garantiu a legitimidade dos indígenas na jurisdição constitucional, atributo indispensável para aprimorar o acesso à justiça e defender os preceitos fundamentais. Agora, os eminentes ministros têm a oportunidade de garantir o nosso direito à existência.
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Qual a decisão mais problemática no caso André do Rap, de Marco Aurélio ou de Fux? <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/sem-precedentes" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Podcast do JOTA</a> discute o fato de o plenário do STF ter gastado 2 sessões para resolver problema que a própria Corte criou. Ouça:
https://www.youtube.com/watch?v=e97vUcxozK4&amp;feature=emb_title
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<a class="sdfootnotesym" style="font-family: inherit; font-style: inherit; font-variant-ligatures: inherit; font-variant-caps: inherit;" href="#sdfootnote1anc" name="sdfootnote1sym">[1]</a> SILVA, José Afonso da. Parecer – Marco Temporal, 2016. Disponível em: &lt;http://www.mpf.mp.br/atuacaotematica/ccr6/documentos-e-publicacoes/artigos/docs_artigos/jose-afonso-da-silva-parecer-maio-2016-1.pdf&gt;.
<div id="sdfootnote2">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote2anc" name="sdfootnote2sym">[2]</a> SOUZA LIMA, Antônio Carlos de. Um grande cerco de paz: poder tutelar, indianidade e formação do Estado no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1995.
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JOTA

Direitos originários sob a guarda do Supremo

Terras indígenas e o compromisso da Constituição Cidadã

Direitos originários sob a guarda do Supremo: terras indígenas e o compromisso da Constituição Cidadã. STF julga caso no dia 28 de outubro