Roberto D. Taufick

Dona Ana acorda religiosamente às 3h50min da madrugada de segunda a sexta. Sai de Samambaia, uma região administrativa do Distrito Federal, às 4h30min, para chegar ao <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ministerio-da-justica">Ministério da Justiça</a> às 6h. Precisa encerrar sair do trabalho até as 16h, mesmo quando tem de repor horas. Primeiro, porque o seu ônibus passa de hora em hora e, se o perder, terá de gastar trinta minutos, caminhando a passos largos até a rodoviária, para pegar outro mais rápido. Segundo, porque, quanto mais tarde pegar o coletivo, maior o tempo que levará para chegar até a sua casa, onde deve iniciar a sua segunda jornada de trabalho. Terceiro, porque, quanto mais tarde sair, menores as chances de encontrar assento vazio para viajar sentada. Dona Ana tem mais de sessenta anos.
Dona Ana não está só. Todos os dias centenas de terceirizados literalmente viajam para o Plano Piloto de Brasília para cumprir a sua jornada de trabalho. Muitos vão trabalhar doentes, porque, mesmo com toda a tecnologia disponível, mesmo com a milenar existência de malotes que poderiam percorrer departamentos e até a Esplanada para ser recolhidos sazonalmente pela empresa, ela exige que o atestado seja entregue pessoalmente pelo empregado. E isso lhe custa tanto transporte, como horas de trabalho.
Mas não é só. Com uma política rígida de cobrança de ponto, o empregado tem de bater o seu precisamente quando completar oito horas de trabalho diário. Um minuto a menos, e fica a dever para a empresa. Um minuto a mais e corre o risco de ser demitido, sob a alegação de que está fazendo hora extra sem necessidade. Não há qualquer incentivo para ganhos de eficiência.
Essa mesma rigidez é encontrada quanto à jornada de trabalho e quanto aos dias de doença. Mesmo quando o servidor público não tenha expediente e a presença dos terceirizados prestando serviço de apoio é dispensável, o empregador exige que o trabalhador faça a sua viagem e esteja preparado para encontrar repartições vazias, ausência de trabalho, restaurantes e lanchonetes fechadas e, muito pior, um serviço de transporte público contingenciado. Em outras palavras, o trabalhador não só vai desnecessariamente para o trabalho, como terá de sacrificar a sua já sofrida rotina, caso não queira ficar a dever horas.
Quanto aos dias nos quais passam mal, preferem ir trabalhar a ter que perder horas entregando atestado e correr o risco de ser demitidos por faltas frequentes. Essa situação é mais sacrificante para pais e, principalmente, mães que optam por faltar exclusivamente em dias nos quais os seus filhos se adoentam e precisam ficar em casa para exercer a maternidade, ou a paternidade. E para os idosos, que se ocupam dos serviços de limpeza e de copa, fisicamente exigentes, quando não deveriam estar de pé.
Nada disso é novidade e acontece, governo entra, governo sai. É uma situação aviltante, que vitimiza o trabalhador terceirizado, composto majoritariamente por minorias. A terceirização, se foi uma ferramenta eficiente para transferir parte dos custos das obrigações trabalhistas em atividades não finalísticas, por outro lado, não representa, em absoluto, a exoneração do Estado quando à sua responsabilidade na escolha e na fiscalização da empresa terceirizada.
Essa responsabilidade ganhou cores mais contundentes com a crescente valorização das práticas ambientais, sociais e de governança (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/esg">ESG</a>) no mundo corporativo. E, quanto a isso, há um exemplo bastante simbólico. No passado recente, o ganhou bastante repercussão a discussão acerca da responsabilidade da Zara e de outras marcas com a ausência de fiscalização das práticas de contratação de mão-de-obra escrava pelas empresas terceirizadas, ou pelas subcontratadas. Não importava se o barateamento da mão-de-obra fosse a única forma de a marca competir em pé de igualdade no mercado global com empresas chinesas, que se impunham um patamar muito inferior de responsabilidade social: o comportamento não fiscalizado pela Zara era inaceitável segundo o padrão mercadológico da maioria das economias ocidentais, inclusive a nossa.
E por que ao Estado deveria ser diferente? Por que poderia o Estado brasileiro fechar os seus olhos para práticas desumanas, ou, no mínimo, que conferem aos terceirizados a condição de uma subcategoria de trabalhadores nas repartições públicas, quando, na verdade, deveria dar o exemplo? Por que deve o Estado contratar mão-de-obra exclusivamente com base no valor do serviço, assim incentivando a perenização dessa cultura de achatamento dos custos do terceirizado e da sua condição humana?
Já passou da hora de o Estado incluir a responsabilidade social nos seus contratos com prestadores de serviços e efetivamente criar canais de denúncia e meios de fiscalização de condições sociais indignas. Se a plataforma de maior diversidade e de restauração da dignidade das minorias do novo governo for para ser levada a sério, é necessário impor ordem dentro de casa. Em casa de ferreiro, o espeto não pode ser de pau.

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JOTA

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