João Marcos Braga

Não é recente a discussão na dogmática penal acerca da teoria do bem jurídico. Atribui-se a sua origem a BIRNBAUM e o seu desenvolvimento, sob a perspectiva liberal, a FEURBACH, isso ainda no século XIX. Longe de fazer uma digressão histórica, o presente artigo pretende explorar as potencialidades da teoria pessoal do bem jurídico no campo da tipicidade penal, propondo algumas alternativas, para atingir o objetivo de contenção do poder punitivo.
A denominada teoria teoria pessoal do bem jurídico é talvez, como lembra NEUMANN, a contribuição mais pessoal de Winfried HASSEMER à teoria do delito, isso em dois sentidos: em primeiro lugar, uma contribuição pessoal como uma abordagem original, comprometida apenas com alguns poucos modelos que lhe antecederam. Mas ela é também uma contribuição pessoal no sentido de uma concepção jurídico-penal que traduz num modelo penal consistente as marcantes convicções éticas e político-jurídicas de seu autor<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Segundo o Professor de Frankfurt, a ideia de proteção do bem jurídico é um limite à política criminal, na medida em que somente podem ser objeto de lei penal bens palpáveis, concretos e delimitáveis. Exige-se que os bens jurídicos penais a serem protegidos sejam solidamente descritos<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. Assim, o bem jurídico deve guardar (1) estrita relação com a pessoa humana, devendo (2) ser apreendido com precisão. A criminalização somente pode ocorrer caso haja o cumprimento desses dois requisitos.
Contra a formulação proposta por HASSEMER, opõe-se a crítica de que o conceito pessoal de bem jurídico não abarcaria o que usualmente se costumou chamar de “bens jurídicos coletivos”<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. A mencionada teoria, entretanto, não está em desacordo com a estrutura de boa parte dos delitos cujos bens jurídicos referenciados são coletivos, desde que se possa proceder à redução do bem jurídico pressuposto na norma a um dado de interesse da pessoa humana. HASSEMER combate a crítica, pois se deve de início insistir que um conceito pessoal de bem jurídico não nega a possibilidade de bens jurídicos da coletividade ou do Estado, mas que ele funcionaliza esses bens a partir da pessoa humana: somente pode aceitá-los como condição da possibilidade de servir a interesses dos seres humanos<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
A partir do conceito de bem jurídico como objeto real, relacionado à pessoa, condiciona-se a validade da norma e subordina-se sua eficácia à demonstração de lesão ou colocação em risco do bem jurídico, o qual passa a ser um elemento primário da estrutura do tipo<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>. Passa a se entender o bem jurídico-penal como uma parcela da realidade social que recebe um status da coletividade, de modo a funcionar como o conteúdo material do injusto<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
Nesse contexto, a tipicidade deixa de ser uma mera subsunção da norma ao fato e passa a abarcar um conflito de elevada relevância social. Para a aplicação da proibição prevista no tipo penal é imprescindível a lesividade social da conduta, pois o Direito Penal é o instrumento de controle mais grave em um Estado Democrático. Como lembra o próprio HASSEMER, o que diferencia o Direito Penal dos demais mecanismos de controle é o seu objeto – os conflitos desviantes com grande relevância social – e o seus instrumentos – os meios de intervenção de efeito mais rigoroso.
Na medida em que ao Direito Penal somente interessam os conflitos que não são solucionáveis por outras esferas de controle, pode-se entender que o bem jurídico-penal foi lesionado ou colocado em perigo apenas quando o conflito social manifesto no crime não tiver outra solução que não pela intervenção jurídico-penal. Dessa forma, por exemplo, o caso de furto em que é possível a composição do conflito pelo Direito civil, ou por meio de um acordo entre as partes, deixaria de ser um fato típico.
A partir de então, não se trataria apenas de estipular um valor máximo da res furtiva para a aplicação do princípio da insignificância, como têm feito os nossos Tribunais<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>, mas sim de analisar a possibilidade de resolução do conflito por outras esferas do controle social.
A lesão ao patrimônio, para fins da lei penal, somente ocorrerá quando for de tal gravidade que torne impossível a solução do conflito em outras esferas. A incriminação, quando proibitiva por si só, independentemente de lesão social que dela resulte, acarreta em efetivo efeito dessocializador, tornando típicas condutas socialmente aceitáveis e inclusive inseridas no âmbito normal de relação de pessoas<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>.
Essa conclusão poderia ser estendida a toda espécie de delito, já que sempre há a necessidade da lesão ou colocação em perigo do bem jurídico, inclusive para os crimes de perigo abstrato. BOTINNI alerta para a necessidade de se afastar a tipicidade dos crimes de perigo abstrato, quando se observa em concreto a inexistência absoluta de perigo. O citado autor defende que a construção segundo a qual a exposição do bem jurídico ao perigo é o critério de avaliação da relevância penal, propondo, assim, uma espécie de construção material dos delitos de perigo abstrato<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>.
Esse é o caso, por exemplo, do tráfico de drogas em pequena escala e de substância que não tenha o potencial para lesionar de forma efetiva a saúde da pessoa concreta. Como lembra ROXIN, segundo os conhecimentos mais recentes, o consumo de drogas leves não é, de modo algum, mais lesivo do que o do álcool ou do tabaco<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>, nessa situação não se justifica a intervenção do direito penal na esfera de liberdade da pessoa, existindo formas mais brandas de solução do conflito. Aqui, também, não há tipicidade material, por ausência de lesão a bem jurídico. Na imensa maioria dos casos de criminalização da conduta da mulher que entra com pouca quantidade de maconha em presídios masculinos, a intervenção do poder punitivo somente agrava a situação familiar dos envolvidos e gera mais malefícios do que benefícios. Falta justificativa, portanto, para a jurisprudência dos Tribunais brasileiros no sentido de que não se aplicaria o princípio da insignificância ao tráfico de substância entorpecente.
É que o princípio da insignificância, tal como vem sendo formulado, relaciona-se diretamente com a lesão ao bem jurídico, ele afasta a tipicidade material. Como dito antes, toda norma penal tem como pressuposto um conflito irresolvível por outra forma de controle social. No caso das normas penais de drogas não pode ser diferente, somente se pode concluir pela lesividade do bem jurídico quando não existir a possibilidade de resolução do conflito por outra esfera de controle, ou seja, quando há efetiva lesão ou risco de lesão à saúde da pessoa concreta.
A partir da adoção do critério da impossibilidade de resolução do conflito por outra forma para se aferir a lesão ao bem jurídico, estabelece-se uma dogmática penal limitada por dados empíricos e se garante a máxima segundo a qual a regra é a da preservação da liberdade, em primeiro plano, e a exceção de intervenção só pode ser executada em caso de necessidade e desde que atendidas sua adequação e proporcionalidade<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>. Essa, na nossa opinião, é a opção constitucionalmente mais adequada.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> NEUMANN, Unfried. A Teoria pessoal do Bem Jurídico. (Conferência proferida no Seminário Internacional em homenagem a Winfried Hassemer – EMERJ – RIO DE JANEIRO – março de 2014). Tradução de Antônio Martins.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> HASSEMER, Winfried. Linhas gerais de uma teoria pessoal do bem jurídico. In: GRECO, Luíz e Tórtima, Fernanda Lara (Orgs.). O bem jurídico como limitação do poder estatal de incriminar? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 19.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Essa crítica é formulada no Brasil por Pierpaolo Bottini em BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato – 3 ed rev. e atual. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais e, na Alemanha, por Roxin, em: ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como missão do Direito Penal?. In: A proteção de bens jurídicos como função do Direito Penal. 2013. p. 21.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> HASSEMER, Winfried. Linhas gerais de uma teoria pessoal do bem jurídico. In: GRECO, Luíz e Tórtima, Fernanda Lara (Orgs.). O bem jurídico como limitação do poder estatal de incriminar? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 22.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> TAVARES, Juarez. Os objetos simbólicos da proibição: O que se devenda a partir da presunção de evidência. p. 11
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> JOFFILY, Tiago. Desvalor da ação e desvalor do resultado como fundamentos do injusto penal: uma revisão a partir do modelo habermasiano de sociedade. p. 128.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> O Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal têm aplicado o princípio da insignificância quando o valor da res furtiva não ultrapassa o montante de R$ 100,00 (cem reais.).
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> TAVARES. Juarez. Teoria do injusto penal. 2003. p. 120.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato – 3 ed rev. e atual. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> ROXIN, Claus. Que comportamentos pode o Estado proibir sob a ameaça de pena? Sobre a legitimação das proibições penais. In: Estudos de Direito Penal. 2ª Edição. p. 47.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> TAVARES. Juarez. Teoria do injusto penal. 2003. p. 120.

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Teoria pessoal do bem jurídico e tipicidade

Regra é a preservação da liberdade