Felipe Fonseca

Susana R. C. van der Ploeg

Maria Clara Pfeiffer

Alan Rossi Silva

As barreiras que certas regras de propriedade intelectual podem gerar, impedindo a distribuição equitativa de vacinas e medicamentos, é um tema recorrente nos debates de saúde global. Experiências traumáticas como a crise de acesso a tratamentos de HIV/Aids nos anos 90, o racionamento global de tratamentos de hepatite C em 2014 e a distribuição injusta de vacinas de Covid-19 são evidências concretas de que o direito à saúde é sistematicamente violado quando monopólios sobre tecnologias médicas são estabelecidos e exercidos de forma arbitrária.
É urgente, portanto, reconhecer, expor e enfrentar os abusos que são cometidos no sistema de patentes e que resultam em morte e sofrimento para milhões de pessoas. No Brasil, vivemos hoje uma situação de abuso triplo, que ameaça o acesso da população a dezenas de medicamentos essenciais.
Em 12 de maio de 2021, no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5.529/DF, o Supremo Tribunal Federal (<a href="https://www.jota.info/stf">STF</a>) declarou a <a href="https://www.mision-salud.org/2021/05/la-corte-suprema-declara-inconstitucional-la-extension-del-plazo-de-patentes-en-brasil/">inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 40 da Lei nº 9.279/1996</a>, conhecida como Lei da Propriedade Industrial (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/lei-da-propriedade-industrial">LPI</a>). Com esta importantíssima decisão, a Suprema Corte eliminou a possibilidade de se ampliar, sob qualquer pretexto, o prazo de vigência das patentes no Brasil e colocou um fim a uma injustiça que já durava mais de duas décadas em nosso país.
A partir deste julgamento, todas as patentes concedidas no Brasil teriam um prazo de vigência de, no máximo, 20 anos, contados da data do depósito do pedido de patente (seguindo a regra do artigo 40, caput, da LPI). Mais do que isso, considerando a essencialidade do direito à saúde e <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/extensao-prazo-patentes-combate-covid-24102020">os desafios impostos pela pandemia de Covid-19</a>, os ministros também estabeleceram que esta decisão teria efeitos retroativos sobre todas as patentes relacionadas a produtos e processos farmacêuticos, bem como a equipamentos e/ou materiais de uso em saúde.
Isso significa dizer que, graças a esta decisão, milhares de patentes relacionadas à área da saúde expiraram imediatamente ou tiveram seus prazos de vigência consideravelmente reduzidos. Na prática, abriu-se um caminho enorme para a ampliação da oferta de medicamentos genéricos no mercado, para a <a href="https://www.scielosp.org/article/csp/2020.v36n11/e00169719/">economia de bilhões de reais em recursos públicos</a> e para o fortalecimento das políticas públicas em saúde. Sem dúvidas, <a href="https://pp.nexojornal.com.br/ponto-de-vista/2021/Como-o-julgamento-sobre-a-extens%C3%A3o-das-patentes-vai-afetar-seus-direitos">uma grande vitória para todo o povo brasileiro!</a>
Como era de se esperar, no entanto, um grupo de empresas farmacêuticas transnacionais e seus lobistas não ficaram nada satisfeitos com esse resultado. Para eles, o <a href="https://www.migalhas.com.br/depeso/341418/sistema-de-patentes-e-monopolio-de-fato">monopólio de duas décadas</a> sobre tecnologias que poderiam salvar vidas não era suficiente. Para ganhar ainda mais dinheiro, seria necessário subverter a decisão do STF e recuperar a possibilidade de ampliar o prazo de vigência das patentes no Brasil.
Assim, ao reconhecerem a impossibilidade de se recorrer de uma decisão da Suprema Corte, essas empresas mobilizaram seus vultosos recursos financeiros e recorreram a um subterfúgio inacreditável. <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/extensao-de-prazo-de-patentes-no-brasil-13092022">Sem qualquer base jurídica aceitável</a>, elas ajuizaram dezenas de ações em primeira instância e pediram que o judiciário estendesse o prazo de vigência de patentes específicas, caso a caso. Isso foi o que elas passaram a chamar de Patent Term Adjustment (PTA) — instituto inexistente no ordenamento jurídico brasileiro.
A fragilidade dos argumentos apresentados é tão grande que, desde o início, ninguém tem qualquer dúvida de que essas ações são inconstitucionais e afrontam diretamente a autoridade do STF. Em um perverso jogo de tentativa e erro, as empresas que estão patrocinando essas ações tentam abusar da complexidade do sistema judiciário e, mais do que contando com a própria sorte, estão investindo rios de dinheiro para emplacar suas teses, por mais esdrúxulas que sejam.
Nesse sentido, tendo sido a primeira entidade a se manifestar como amicus curiae na ADI nº 5.529/DF, a Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA) tem denunciado o absurdo dessas ações desde o início. Além de participação em <a href="https://www.jota.info/tributos-e-empresas/saude/liminar-patentes-medicamentos-genericos-26052022">entrevistas</a>, <a href="https://www.google.com/url?q=https://deolhonaspatentes.org/gtpi-participa-da-cupula-global-sobre-propriedade-intelectual-e-acesso-a-medicamentos-do-itpc/&amp;sa=D&amp;source=docs&amp;ust=1669908504252077&amp;usg=AOvVaw0BMATTht_Oox21QCiYR-Ce">eventos</a> e <a href="https://diplomatique.org.br/bolsonaro-e-industria-farmaceutica-as-ameacas-ao-tratamento-do-cancer-de-mama/">artigos de opinião</a>, a ABIA se manifestou duas vezes, como amicus curiae, no processo que tenta ampliar o prazo de vigência de uma patente relacionada ao medicamento <a href="https://deolhonaspatentes.org/gtpi-se-mobiliza-para-garantir-acesso-a-medicamento-contra-cancer-de-mama/">palbociclibe</a>, essencial no combate ao câncer de mama avançado ou metastático.
Para se ter uma ideia, apenas neste processo, a empresa farmacêutica Warner-Lambert Company  LLC., <a href="https://www.pfizer.com/about/history/pfizer_warner_lambert">que compõe o grupo econômico da Pfizer</a>, quer estender a patente sobre esse medicamento por um prazo de quase 10 anos. Isto é, por um prazo ainda maior do que a extensão inconstitucional corrigida pelo STF!
Diante desse cenário absurdo, mais recentemente, a ABIA e outras 18 organizações da sociedade civil<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> formularam uma consulta ao ministro aposentado do STF, professor Eros Roberto Grau, sobre o tema. Em resposta, o ministro elaborou um parecer pro bono, no qual é taxativo: <a href="https://deolhonaspatentes.org/ministro-eros-grau-extensao-do-prazo-de-vigencia-de-patentes-e-inconstitucional/">a proposição dessas ações judiciais é triplamente abusiva</a>! Segundo o ministro, (i) ao contrariarem a letra do artigo 40, caput, da LPI, essas ações abusam do direito de patente; (ii) ao almejarem uma compensação sem qualquer comprovação de dano, abusam do direito de petição; e (iii) ao tentarem ocultar a inércia estratégica de suas autoras durante a análise dos pedidos de patente, abusam do sistema de patente.
O sistema judiciário brasileiro precisa dar uma resposta enérgica a esses casos e parar, de uma vez por todas, a conduta abusiva dessas empresas transnacionais. O direito à saúde da nossa população e a integridade da Constituição Federal estão em jogo nessas ações. Além do mais, o Brasil pode servir como um exemplo a nível internacional na matéria, rechaçando de forma contundente essa situação de abuso triplo.
É certo que a ADI nº 5.529/DF foi uma grande vitória e precisa ser amplamente celebrada por aqueles que defendem o interesse público. Vista em uma perspectiva histórica, ela pode ser colocada na mesma trajetória de vitórias que remontam à inclusão do direito à saúde na constituição de 1988, à criação do Sistema Único de Saúde (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/sus">SUS</a>) e ao estabelecimento de programas de acesso universal e gratuito a tratamentos e métodos preventivos. Portanto, as tentativas de subverter o espírito da decisão tomada no âmbito desta ADI constituem uma afronta a todas estas conquistas sociais.
Os 3 abusos apontados pelo ministro <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/eros-grau">Eros Grau</a>, caso ignorados, tendem a se proliferar, deixando um rastro de retrocessos. Porém, se combatidos agora, os atores econômicos que almejam obter ainda mais poder de mercado pelas vias tortuosas da inconstitucionalidade, receberão uma resposta clara de que, no Brasil, o direito à saúde é levado a sério.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Organizações que solicitaram o parecer ao Ministro Eros Grau: A Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), a Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA), a Associação de Gays e Amigos de Nova Iguaçu, Mesquita e Rio de Janeiro (AGANIM-RJ), a Conectas Direitos Humanos, a Federação Nacional dos Farmacêuticos (Fenafar), o Fórum Maranhense das Respostas Comunitárias de Lutas ao Combate as IST, HIV, Aids e HV, o Fórum ONG AIDS RS, o Grupo de Apoio à Prevenção da Aids da Bahia (Gapa/BA), o Grupo de Apoio à Prevenção da Aids no Rio Grande do Sul (Gapa/RS), o Grupo de Incentivo à Vida (GIV), o Grupo de Resistência Asa Branca (GRAB), o Grupo pela Vidda Rio de Janeiro (GPV/RJ), o Grupo pela Vidda São Paulo (GPV/SP), o Grupo Solidariedade é Vida, a Internacional de Serviços Públicos (ISP), Médicos Sem Fronteiras (MSF), a Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/AIDS no Maranhão (RNP+MA), a Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/AIDS núcleo Pernambuco (RNP+PE) e a Universidades Aliadas por Medicamentos Essenciais (UAEM).
* Os autores deste artigo fazem parte da ABIA, que é amicus curiae nos processos mencionados

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JOTA

Se abusos forem combatidos agora, atores econômicos receberão resposta de que, no Brasil, direito à saúde é levado a sério

Tentativas de extensão do prazo das patentes no Brasil: abusos e contradições

O direito à saúde da nossa população e a integridade da Constituição Federal estão em jogo nessas ações e Brasil pode servir como um exemplo a nível internacional na matéria.