Paulo Fernando Pinheiro Machado

<blockquote class="jota-article__quote">
"Ser feliz significa ser livre e ser livre significa ser corajoso. Portanto, não faça pouco caso dos perigos da guerra."
<footer class="jota-article__quote-cite" style="text-align: left;">Péricles</footer>
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Em assuntos internacionais, geralmente os eventos mais significativos se formam a partir das consequências não antecipadas da ocorrência de um evento trivial, normalmente ocorrido na periferia do sistema. Identificar esses eventos, ainda em germe, antes que a maioria os perceba, é uma das principais tarefas do estadista. “Se os furos pequenos não forem consertados, os furos grandes trarão dificuldades”, diz um famoso provérbio chinês.
No último dia 27 de maio, <a href="https://www.ft.com/content/0bdde91a-21d3-4d97-8879-a79b9bd2b0cf?desktop=true&amp;segmentId=7c8f09b9-9b61-4fbb-9430-9208a9e233c8#myft:notification:daily-email:content">o Irã apreendeu dois navios petroleiros de bandeira grega no Estreito de Ormuz</a>, uma das passagens mais importantes para o transporte internacional de petróleo. O fato ocorre cerca de um mês após Atenas ter apreendido um petroleiro de bandeira russa por carregar óleo iraniano que estava sob sanções.
A notícia é bastante significativa para os rumos da economia global, em particular para a indústria marítima e para o mercado internacional de petróleo, cujas altas já estão perto dos 120 dólares por barril, aumentando a pressão inflacionária global. Além disso, cerca de um quarto de todos os navios superpetroleiros são gregos. Trata-se, cara leitora e caro leitor, de uma escaramuça entre o Estado que controla a principal rota marítima do transporte internacional de petróleo e o Estado que tem o maior número de navios petroleiros, em um momento no qual a economia global está atolada no pântano da estagflação, conforme viemos analisando <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/os-impactos-politico-sociais-da-estagflacao-global-13052022">aqui nesta coluna</a>, e o preço internacional do petróleo já está nas alturas. O resultado só pode ser um desastre. E um desastre geralmente vem de uma conversa descuidada, diz outro famoso provérbio chinês.
O Estreito de Ormuz é uma área de enorme importância geopolítica. Trata-se de um estreito canal de passagem, entre o Irã e a península de Omã, que conecta o Golfo Pérsico ao Golfo de Omã. O estreito possui uma boa profundidade de calado (c. 650 pés), o que permite a passagem segura de grandes embarcações. Para a leitora ter uma idéia da importância da área, segundo o <a href="https://www.strausscenter.org/strait-of-hormuz-assessing-the-threat/">Robert Strauss Center for International Security and Law</a>, o Estreito de Ormuz é a única conexão marítima entre o Golfo Pérsico e a economia mundial, por onde todos os dias transitam cerca de 90% de todo o petróleo exportado pelos países do Golfo, o que equivale à 20% da demanda diária global. Qualquer disrupção na área pode gerar um impacto desproporcional na já combalida economia mundial.
Sob o aspecto jurídico, por sua vez, o instituto do apresamento de embarcações é um ponto tradicional e muito debatido do Direito Internacional do Mar. No âmbito da Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar (CNUDM), a questão vem regulada nos seus artigos 110 e 111, que estabelecem duas exceções ao princípio da liberdade de navegação e da jurisdição exclusiva do Estado da bandeira em alto-mar - o direito de visita e o direito de perseguição, quando o Estado costeiro tenha razões para acreditar que a embarcação esteja cometendo um ilícito internacional ou tenha violado as leis e regulamentos internos desse Estado costeiro. Já o direito de apresamento de embarcações propriamente dito está previsto em diversos dispositivos da CNUDM, especialmente no seu artigo 73, que garante o cumprimento de leis e regulações do Estado costeiro, e seu no artigo 105, que regula o apresamento de navios-pirata.
A CNUDM, contudo, oferece um balanço entre os interesses dos Estados costeiros e dos Estados da bandeira em seu artigo 73 (2), ao estabelecer que “as embarcações apresadas e as suas tripulações devem ser libertadas sem demora logo que prestada uma fiança idônea ou outra garantia.” O procedimento para essa pronta liberação, por sua vez, vem regulamentado no artigo 292 da CNUDM, que desempenha um papel importante na jurisprudência do Tribunal Internacional para o Direito do Mar (TIDM). A jurisdição do TIDM para o procedimento de pronta liberação é compulsória para as partes. Vale notar, cara leitora, que, no caso específico do Estreito de Ormuz, o Irã assinou a CNUDM, mas não a ratificou, não sendo parte, portanto, do regime do tratado, o que dificulta o encontro de uma solução institucional para o diferendo.
A verificação de tensões no Estreito de Ormuz, assim, é um alerta significativo do aumento dos riscos geopolíticos globais. Para os mercados emergentes, dentre eles o Brasil, o fato é particularmente alarmante, uma vez que a deterioração do cenário internacional já vinha impondo pesadas perdas a essas nações. Os países emergentes estão assistindo a maior debandada de investidores em seus títulos em cerca de três décadas, com <a href="https://www.ft.com/content/1e5dbb60-5c9c-47b7-8f81-7022c9f26349">perdas de cerca de 36 bilhões de dólares só neste ano</a>. Até o momento o Brasil tem se saído relativamente bem nesse quadro, devido à pujança do nosso setor agroexportador, <a href="https://www.ft.com/content/1e5dbb60-5c9c-47b7-8f81-7022c9f26349">com os títulos do tesouro apresentando uma alta acumulada no ano de 16% ajustada para o dólar</a>. O aumento das tensões geopolíticas na área marítima, contudo, pode alterar rapidamente essa situação.
Para a indústria marítima, em específico, já há uma série de disrupções atualmente em curso, marcando um cenário particularmente volátil. Além do enorme esforço de redirecionamento das rotas comerciais, provocado pelo conflito no leste europeu, a indústria vem enfrentando um aumento exponencial de custos com as novas regras de bunker, além de congestionamentos de portos ao redor do globo, provocando atrasos e realocação de viagens. A escassez de embarcações no mercado, em especial de contêineres – <a href="https://theconversation.com/global-shortage-of-shipping-containers-highlights-their-importance-in-getting-goods-to-amazon-warehouses-store-shelves-and-your-door-in-time-for-christmas-168233">a espinha dorsal do comércio global</a> -, que já se mostrava extremamente preocupante no final do ano passado, se tornou tão aguda que operadores de importantes commodities, como arroz e açúcar, já vinham <a href="https://qz.com/2085371/supply-chain-issues-are-bringing-bulk-cargo-ships-back-into-style/">despachando suas mercadorias em graneleiros</a>, nos quais o processo de carga e descarga é cerca de 30 vezes mais caro.
A maioria das análises, como <a href="https://www.nytimes.com/2022/02/01/business/supply-chain-disruption.html">a do New York Times</a>, por exemplo, aponta para uma tendência de agravamento desse quadro, com um caos persistente nos portos ao redor do mundo, um aumento exponencial dos custos de fretes e ainda mais dificuldades de contratação de navios, pressionando, por sua vez, ainda mais as cadeias globais de suprimentos. O agravamento desse cenário, com um eventual aumento de tesões no Estreito de Ormuz, reforça a tendência do movimento de desglobalização, como viemos alertando <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-deglobalizacao-e-o-renascimento-do-lloyd-brasileiro-08042022">aqui nesta coluna</a>, materializado em uma <a href="https://www.natlawreview.com/article/chip-shortage-now-it-s-shipping-container-shortage">reorganização das cadeias produtivas em bases locais ou regionais</a>, para as quais são necessários outros tipos de navios, notadamente de dimensões menores, daqueles – imensos - utilizados para o transporte internacional de longo curso.
O abandono da tradição marítima pelo Brasil, como já analisamos <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/brasil-assumiu-fragilidade-logistica-virar-costas-tradicao-maritima-21012022">aqui nesta coluna</a>, coloca o nosso país em uma situação extremamente frágil nesse cenário. O Brasil tomou uma decisão política no final da década de 1990 de tornar-se a única potência agroexportadora 100% cargo, isto é, que não dispõe de navios de bandeira própria para o transporte internacional de longo curso de suas mercadorias e insumos. Em um cenário global de restrição do número de embarcações disponível para afretamento e com o acirramento de tensões em alto-mar, que pelos apresamentos restringem ainda mais a tonelagem disponível, o país poderá se ver rapidamente estrangulado ou pela total ausência de embarcações disponíveis ou pelo aumento insuportável dos preços dos fretes. Potência internacional alguma pode se dar ao luxo de abrir mão tão completamente de uma capacidade logística estratégica.
A solução mais rápida para essa situação de vulnerabilidade emergencial, que já apresentamos inúmeras vezes <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-deglobalizacao-e-o-renascimento-do-lloyd-brasileiro-08042022">aqui nesta coluna</a>, é o da reconstituição do extinto Lloyd Brasileiro, a companhia estatal de navegação que desempenhou um papel fundamental na interconexão aquaviária do território brasileiro e no desenvolvimento econômico nacional. O Lloyd Brasileiro foi extinto porque era uma empresa contabilmente deficitária, isto é, não gerava lucros no curto prazo. No longo prazo, porém, computados os ganhos de oportunidade e o papel estratégico crucial da empresa para o desenvolvimento nacional, o Lloyd Brasileiro era, sim, uma empresa economicamente lucrativa, ainda que contabilmente deficitária. Mas a diferença entre lucro contábil e lucro econômico é assunto para outra coluna. Que a leitora repare, no entanto, a estreiteza de visão de um país continental desfazer-se de um ativo estratégico porque não lhe dava lucro trimestral. O cenário parece trazer para muito próximo o dia em que vamos nos arrepender amargamente dessa péssima decisão. Non semper erit aestas <a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Nem sempre será verão.

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JOTA

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