Osly Ferreira Neto

O contribuinte que não paga em dia seus tributos paga juros sobre sua inadimplência. Em 1966, época da ditadura militar, o Código Tributário Nacional dispôs: “se a lei não dispuser de modo diverso, os juros de mora são calculados à taxa de um por cento ao mês” (artigo 161, § 1º).
Em 1994, Itamar Franco publicou a Medida Provisória n. 892 e o cálculo dos juros tributários ficou um pouco mais complicado: a alíquota passou a consistir na média dos juros remuneratórios que a União pagava para pegar dinheiro emprestado no mercado, na emissão de títulos da dívida pública.
Em 1995, Fernando Henrique Cardoso, também invocando seu poder de editar normas em situações de “relevância e urgência”, publicou a Medida Provisória n. 947, e a conta passou a ficar ainda mais complexa: os juros tributários federais passaram a ser “equivalentes à taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic) para títulos federais, acumulada mensalmente”.
A fórmula dessa taxa referencial não foi definida em “lei”, mas em uma Circular do Banco Central (Circular BACEN n. 3.671/2013):
<a href="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2015/02/fórmula.png"><img class="aligncenter size-medium wp-image-4725" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2015/02/fórmula-300x109.png" alt="fórmula" width="300" height="109" /></a>
Os dados que são computados nessa fórmula são bem específicos: a instituição financeira X compra um título da dívida pública federal da instituição financeira Y sob a promessa revendê-lo de volta à instituição Y no dia seguinte – apenas as taxas praticadas nesse tipo de operação são computadas na fórmula.
Além de a fórmula ser definida livremente pelo Poder Executivo, é o próprio Executivo, mediante reuniões do COPOM, que estabelece as metas para a taxa SELIC. Fixada a meta, são adotados os procedimentos necessários para provocar a manutenção, diminuição ou aumento da taxa.
Na última reunião do COPOM, em 21.1.2015, foi fixada a meta de 12,25% ao ano, de modo que a meta da taxa SELIC voltou a atingir patamar acima de 1% ao mês, precisamente 1,02% ao mês.
A taxa acima de 1% poderia despertar a curiosidade do contribuinte: “será que os cálculos que resultaram na taxa SELIC desse mês foram realizados da forma correta?”, perguntaria ele, para logo ser acusado de teórico da conspiração, pois o Sistema Especial de Liquidação e de Custódia seria absolutamente seguro, infalível e o governo jamais ousaria se equivocar na manipulação de tais dados.
Entretanto, a despeito do absurdo imputado, a curiosidade desse contribuinte estaria protegida pelo princípio do devido processo legal (CF, 5º, LIV): a taxa SELIC é utilizada para o cálculo de uma sanção tributária que atingirá diretamente seu patrimônio, e “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.
Por mais que se julgue descabida a curiosidade do contribuinte, a cláusula constitucional o protege; ele deve poder conhecer os dados e as provas (das operações overnight realizadas no SELIC) para saber se o cálculo da alíquota que atingirá seu patrimônio foi realizado corretamente.
Surge então o problema fundamental: se o contribuinte curioso tentar obter perante o Banco Central os dados e as provas para fazer seus cálculos de conferência, ele obterá resposta negativa, pois não se pode quebrar o sigilo das instituições financeiras (CF, 5º, X).
Então, sem esses dados, o que deveria fazer contribuinte? Deixar um cheque em branco na mão do Executivo e confiar cegamente no governo, pagando o que lhe fosse determinado sem questionar vírgulas?
Tal sistemática não viola apenas o princípio do devido processo legal, mas também o princípio da motivação e publicidade dos atos administrativos (CF, 37). Ao divulgar a taxa SELIC, o Banco Central fornece apenas o objeto do ato (a fixação da alíquota), mas omite seus motivos (os dados referentes às operações realizadas).
Bandeira de Mello ensina que motivação é “a fundamentação na qual são enunciados [...] os fatos em que o agente se estribou para decidir” – e “a invocação de ‘motivos de fato’ falsos, inexistentes ou incorretamente qualificados vicia o ato”.
Para que a taxa SELIC possa ser imponível como sanção contra o contribuinte, não basta a enunciação do objeto do ato (a divulgação da alíquota) e a identificação da fundamentação normativa (fórmula prevista na circular), mas é necessária a divulgação dos dados utilizados para alimentar a fórmula (as operações overnight).
Sem isso, o contribuinte fica de mãos atadas, sem poder verificar: (i) se os motivos de fato que justificaram a divulgação da taxa realmente existiram; e (ii) se há pertinência lógica entre a fórmula fixada pelo regulamento (premissa maior), os dados que a alimentaram (premissa menor) e a taxa divulgada (conclusão).
Não se defende aqui que o contribuinte tenha direito de conhecer as operações realizadas por instituições financeiras, o sigilo bancário é um direito fundamental e deve ser resguardado; o problema é a vinculação do cálculo de uma sanção tributária a informações sigilosas, inacessíveis ao contribuinte que pagará a conta.
Portanto, é preciso voltar ao artigo 161, § 1º, do Código Tributário Nacional, e analisá-lo com outros olhos: “se a lei não dispuser de modo diverso, os juros de mora são calculados à taxa de um por cento ao mês”.
Hoje os juros tributários são postos por atos administrativos (circulares do BACEN, atas de reunião do COPOM, cálculos feitos pela SELIC) fundamentados em uma medida provisória absolutamente desprovida de qualquer parâmetro objetivo. Vamos chamar isso de “lei”, como se estivéssemos num conto de fadas.
Na questão dos juros tributários, a sistemática da “lei” (taxa SELIC) que dispõe de modo diverso às prescrições do CTN (1%) é inconstitucional, pois impede que o contribuinte possa saber se os dados utilizados na fórmula estão corretos e se o cálculo foi realizado de maneira adequada.
Há violação do princípio do devido processo legal e da motivação dos atos administrativos e, por isso, o mínimo que deve ser feito é a conciliação dessa sistemática com o artigo 161, § 1º, do CTN (norma geral tributária): a taxa SELIC não pode ser utilizada na imposição de sanções tributárias quando exceder a alíquota de 1% – suporta-se a inconstitucionalidade da “lei” até o limite de 1% ao mês e nada mais.
O crescimento da razão entre o endividamento público e o PIB, a baixa credibilidade das contas públicas, as alterações normativas que autorizam o descumprimento da lei de diretrizes orçamentárias e o rebaixamento da classificação do Brasil fornecida por instituições de análise creditícia, indicam que o país terá de pagar juros cada vez mais altos; na mesma direção, o crescimento da inflação também indica que a taxa SELIC não diminuirá.
O contribuinte precisa ficar sujeito a tal instabilidade, com uma espada de Dâmocles sob a cabeça, sem sequer poder conferir se as alíquotas divulgadas foram calculadas corretamente? É tempo de discutir o tema.
* Advogado no escritório Machado &amp; Ferreira Neto. Doutorando em Direito Tributário pela PUC/SP. Mestre em Direito Processual pela UFES

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A taxa Selic acima de 1% e o contribuinte curioso

Cálculo de juros e tributos no Brasil